Mundo digital: quando a inteligência também é ameaça
sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024
Atualizado às 08:36
Uma das funções mais importantes de uma Constituição é a de proteção.
Direitos fundamentais asseguram a defesa das pessoas contra agressões que violam bens jurídicos relevantes, como a dignidade humana, vida, liberdade, igualdade, segurança e a propriedade.
A busca de mecanismos jurídicos aptos a garantir a árdua tarefa de proteção é uma meta do constitucionalismo, em suas sucessivas fases e ideais.
Além dos consagrados constitucionalismos liberal, social e fraternal, atualmente fala-se de um constitucionalismo digital.
A ideia básica é garantir uma jurisdição constitucional apta a proteger direitos fundamentais no curso do mundo digital1.
Ela traz implicações significativas no controle de constitucionalidade dos atos do poder público e da iniciativa privada, a partir de uma maximização da eficácia horizontal dos direitos fundamentais2.
Embora seja uma denominação que guarda críticas na doutrina3, não se pode desconsiderar que o termo alerta para um dado que não pode ser desconsiderado: a agenda digital tem que ser incorporada pelo constitucionalismo, no sentido de que os direitos fundamentais não podem ser ameaçados pelo uso indevido das novas tecnologias.
O avanço digital é imprevisível. Não há como se atrever a fixar limites quanto ao que será possível atingir em termos de recursos em longo prazo, quiçá em médio.
Algo já é facilmente perceptível: o atual estágio tecnológico ao mesmo tempo que facilita nossas vidas, gera riscos cada vez mais acentuados.
Um dos mais preocupantes deriva da propalada inteligência artificial (IA).
Estudos mostram que cerca de um quarto do trabalho realizado nos Estados Unidos e na zona do Euro poderão ser automatizados por meio de sistemas de IA.
Significa que muitas frentes de trabalho tendem, em tempo não muito distante, a se tornarem dispensáveis, o que representa inegável abalo na economia global4.
Não se sabe até que ponto a mesma tecnologia que elimina postos de trabalho irá fomentar a criação de outros.
Também se ignora de que forma é possível compatibilizar objetivos constitucionais permanentes, como a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza, a redução das desigualdades sociais e regionais e a busca do pleno emprego contra algo que não pode ser freado: o desenvolvimento tecnológico que proporciona benefícios individuais e coletivos.
A mesma tecnologia que impulsiona vários setores econômicos pode acabar com tantos outros. Qual deverá ser a conta de chegada?
A tábua de risco cresce à medida que se fala da IA generativa. É a que cria conteúdos que não podem ser distinguidos da produção humana. Tarefa típica de sistemas como ChatGPT (OpenAI), Gemini (Google), dentre outros.
Os sistemas de IA generativa representam ameaças em outra face sensível para a sobrevivência das nações: seu sistema democrático.
As campanhas deliberadas de desinformação (fakenews) são incrivelmente potencializadas por recursos de IA.
Atualmente, qualquer pessoa, mesmo sem grandes conhecimentos técnicos, pode se valer de programas de fácil acesso, aptos a manipular, com grande eficiência e poder de convencimento, sons e imagens.
Refiro-me, em particular, às deepfakes5. Uma tecnologia que permite que nossas vozes e imagens sejam empregadas, sem autorização, para transmitir mensagens que jamais seriam por nós cogitadas.
E tudo de forma muito convincente. A detecção da manipulação torna-se cada vez mais difícil.
As deepfakes não funcionam como um filtro aplicado em uma fotografia, que torna uma imagem de baixa qualidade em algo deslumbrante, mas com fácil percepção do truque. Elas usam mecanismos mais evoluídos, pensados para agir da forma mais imperceptível possível.
Não é preciso ir longe para captar o risco que tais tecnologias impõem à democracia, por meio da manipulação do processo eleitoral.
Cada vez mais, no submundo do crime, as chamadas "milícias digitais" venderão seus serviços para destruírem reputações e minarem candidaturas de adversários políticos.
A guerra política avança para trincheiras não devidamente exploradas, em um cenário que pode ser disruptivo.
Há relatos do uso de deepfakes para manipular as eleições em vários países. Cita-se o ocorrido nos EUA, em 2024. Ligações telefônicas realizadas por robôs em call centers transmitiam a mensagem falsa, de que o Presidente norte-americano Joe Biden estaria solicitando aos seus eleitores que não participassem das eleições primárias do partido6.
O uso criminoso deste tipo de tecnologia favorece a desinformação e o rompimento da ordem democrática.
Esta realidade ameaçadora aponta que é preciso reagir, tanto de forma preventiva quanto repressiva. A prevenção é o caminho que costuma surtir melhores resultados.
Autoridades na área acertam quando afirmam que urge no Brasil a construção de uma estrutura regulatória moderna e eficaz, apta a fixar o compartilhamento de responsabilidades dos atores do mundo digital, visando a minimizar os riscos7.
Na vertente repressiva é fundamental que o TSE assuma a responsabilidade em punir, exemplarmente - e de forma não seletiva -, toda e qualquer agremiação política que empregue mecanismos de IA para prejudicar adversários políticos, sem prejuízo de outras sanções penais cabíveis.
Esta é uma das mais importantes missões deste novo constitucionalismo. O mundo digital possui relação indissociável com os direitos fundamentais de livre desenvolvimento da personalidade, por meio dos quais a dignidade humana deve se mostrar intangível.
Se por um lado as novas tecnologias facilitam o alcance dos objetivos do constitucionalismo liberal, como o controle e a regulação do poder político, elas também passam a exigir novas conformações protetivas de direitos fundamentais, que estão sob ameaça no ambiente digital8.
No Direito Constitucional a questão se projeta a partir do mandamento de proibição de insuficiência, que impõe ao legislador um dever de aperfeiçoamento constante, que o impede de ficar inerte ou de propor soluções que não se mostrem à altura dos problemas que visam a evitar9.
A prevenção dos riscos impostos pela IA configura um novo padrão para o controle de constitucionalidade dos atos do poder público e de condutas privadas, nos planos da ação e da omissão.
A inteligência também pode ser ameaça.
A proteção eficaz do gênero humano e da democracia não pode esperar.
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1 MENDES, Gilmar Ferreira; FERNANDES, Victor Oliveira. Constitucionalismo digital e jurisdição constitucional: uma agenda de pesquisa para o caso brasileiro. Disponível aqui.
2 DUQUE, Marcelo Schenk. Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais e Jurisdição Constitucional. 2 ed. revista e ampliada. São Paulo: Editora dos Editores, 2019.
3 PEREIRA, Jane Reis Gonçalves; KELLER, Clara Iglesias. Constitucionalismo Digital: contradições de um conceito impreciso. Disponível aqui.
4 Disponível aqui.
5 Disponível aqui.
6 Disponível aqui.
7 Vide a posição de Bruno Bioni, Virgilio Almeida e Laura Schertel Mendes. Disponível aqui.
8 MENDES, Gilmar Ferreira; FERNANDES, Victor Oliveira. Constitucionalismo digital e jurisdição constitucional: uma agenda de pesquisa para o caso brasileiro. Disponível aqui.
9 CANARIS, Claus-Wilhelm. Grundrechte und Privatrecht. Eine Zwischenbilanz. Berlin: De Gruyter, 1999, p. 20.