O novo ano legislativo: entre os discursos e a cegueira
sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024
Atualizado às 07:34
Por que foi que cegamos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem1.
A frase está imortalizada no notável romance de José Saramago. Uma metáfora atemporal, aplicável a vários contextos. Um deles, é a nossa organização político-institucional.
A cada ano, o início do mês de fevereiro marca a abertura do ano legislativo.
Como de praxe, é realizada uma sessão solene no Congresso, na qual mensagens dos chefes dos três poderes são lidas.
Boa parte dos discursos contém aquilo que se gosta de ouvir2.
O Executivo salientou que o diálogo é condição necessária para a democracia, devendo superar filiações partidárias, preferências políticas ou disputas eleitorais, uma obrigação republicana a ser cumprida por todos.
O Judiciário ponderou que os magistrados não podem carregar suas paixões ao decidir, devendo agir pelas virtudes da equidistância e da imparcialidade, o que torna sua atuação, em boa medida, diferente da política.
Bradou, ainda, o princípio da separação dos poderes: ao Judiciário, o que é do direito, ao Legislativo o que é do Parlamento, ao poder Executivo, o que toca a administração pública.
E o Legislativo, em tom mais provocativo, sobretudo pelas palavras do Presidente da Câmara dos Deputados, ressaltou a defesa das prerrogativas do Congresso Nacional, acentuando a competência para aprovação da peça orçamentária.
Do todo, o que é realidade, o que é ficção?
Ano após ano, discursos polidos são proferidos, porém nem sempre conectados com as ações concretas.
De um lado as palavras, do outro a vida como ela é.
A parte mais sensível nas mensagens de abertura do ano legislativo situa-se no recado do Presidente da Câmara dos Deputados, relativo à peça orçamentária.
O Orçamento da União para 2024 foi aprovado pelo Congresso com significativo aumento nos valores das emendas parlamentares.
Eis os dados3:
De R$ 37 bilhões em 2023 para R$ 53 bilhões em 2024. São verbas cujo destino fica a cargo dos congressistas, sem interferência dos demais poderes.
O presidente da República vetou R$ 5,6 bilhões das chamadas emendas de comissão, gerando tensão política com o Legislativo.
Na versão aprovada pelos parlamentares, estas emendas somariam R$ 16,6 bilhões. Com o veto, a previsão caiu para R$ 11 bilhões, valor superior ao do ano de 2023 (R$ 7,5 bilhões).
Os outros tipos de emendas parlamentares, que são as emendas individuais obrigatórias (R$ 25 bilhões) e as emendas de bancada (R$ 11,3 bilhões), não sofreram modificação de valores.
Há uma crítica generalizada por parte da sociedade quanto à inviabilidade de se tratar parcelas significativas do orçamento público sob a lógica das emendas parlamentares.
As críticas não sensibilizam o Presidente da Câmara. No discurso deixou claro a sua visão de que o orçamento não pode ser de autoria exclusiva do Executivo, tampouco de uma burocracia técnica, que não foi eleita para definir as prioridades da nação4.
Do ponto de vista constitucional, há um equívoco na forma como o tema foi abordado.
A aprovação do orçamento, indiscutível competência do Congresso Nacional, não se confunde com a sua elaboração e execução.
Cabe ao Poder Executivo encaminhar ao Legislativo a proposta de lei orçamentária e a este cabem os ajustes que entender pertinentes.
Ocorre que nos últimos anos a atuação do Congresso em relação ao orçamento tem extrapolado, e muito, sua competência para ajustar e fiscalizar os gastos públicos.
O Legislativo marcha para uma espécie de cooptação do orçamento público, pelo emprego de diferentes tipos de emendas parlamentares.
A estratégia é concentrar, cada vez mais nos parlamentares, a decisão quanto ao modo e montante de aplicação das verbas em redutos eleitorais, por meio de um calendário de pagamento de emendas.
Parte-se da visão - não necessariamente correta - de que os parlamentares, por estarem mais próximos da população, têm melhores condições de definir prioridades no momento de aplicação dos recursos.
Nas palavras do Presidente da Câmara, são os parlamentares - e não os técnicos do Ministério da Fazenda - que "gastam a sola do sapato" percorrendo os pequenos municípios brasileiros.
Este modo de ver as coisas desconsidera um dos mais elementares princípios orçamentários, que é o da programação, que tem a ver com planejamento.
O fim do orçamento público é a entrega de bens e serviços para satisfazer as necessidades da população, cujos meios sãos os recursos, as dotações autorizadas pelo Legislativo, que permitem a realização das ações5.
A lógica das emendas parlamentares desconsidera, em grande parte, tal princípio.
Quando fatias generosas do orçamento passam a ser aplicadas de acordo com a discricionariedade de políticos, independentemente de estudos mais aprofundados sobre as prioridades, o resultado não pode ser satisfatório.
Orçamento segue a lógica da escassez, o que em linguagem popular se chama de "cobertor curto".
Empenho técnico, precisão e certa dose de criatividade são ferramentas essenciais na administração dos recursos públicos. Em suma: planejamento de gastos.
É fazer o máximo possível, mediante critérios de racionalização dos recursos disponíveis.
No rumo das chamadas despesas discricionárias, marcadas por elevada ingerência política no destino, tais vetores costumam ser desconsiderados.
O rito é a relação entre padrinhos e apadrinhados. Quanto maior for a proximidade com um congressista, maior será a chance de ter um pedido atendido.
Esta relação de dependência compromete até mesmo o bom desempenho parlamentar. Os representantes acabam tendo sua atuação - que deve ser macro - desfocada frente a interesses paroquiais.
As emendas guiam-se por interesses eleitoreiros. Servem para fortalecer a base política dos que as subscrevem. Sua finalidade é a perpetuação no poder, por meio de sucessivas reeleições.
O modus operandi é avesso até mesmo ao ideal democrático, à medida que favorece a reeleição dos que têm o poder de alocar verbas públicas em seus redutos eleitorais.
O livre jogo da disputa política sofre considerável perturbação.
Por vezes, para atender eleitores, recursos são alocados independentemente de requerimentos de prefeitos.
Nesta lógica não costuma haver planejamento ou qualquer estudo detalhado acerca das prioridades da população.
A prática é refratária ao equilíbrio fiscal, à fixação de prioridades e, sobretudo, à correta fiscalização do destino das receitas tributárias.
A aprovação do orçamento não pode se confundir com a sua execução.
A proposta e execução são competências típicas do Poder Executivo, a quem cabe, por meio de um corpo técnico especializado (ministérios), definir os critérios de emprego das verbas, visando a realizar os objetivos fundamentais da República, como a redução das desigualdades regionais.
Na atual sistemática, as desigualdades só tendem a aumentar. Se um município não possui bons padrinhos, está fadado a viver apartado de parcela do orçamento público.
Nesta ótica as emendas parlamentares desconsideram até mesmo o traço marcante da forma federativa de Estado, que é a autonomia financeira dos respectivos entes da federação.
O fato é que a cada ano vem crescendo o apetite do Congresso sobre o montante destinado às emendas parlamentares. Vale dizer, um considerável avanço do Legislativo sobre as prerrogativas do Executivo.
Dados revelam que dos R$ 222 bilhões de livre destinação no ano de 2024, R$ 44,6 bilhões se referem a emendas parlamentares (20,05% do total)6.
Se for considerada a realidade que era praticada antes da criação das emendas impositivas (2014), ao Legislativo cabia indicar apenas 4,65% do valor dos gastos discricionários7.
Tudo isso dentro de um sistema de governo presidencialista, no qual o Executivo resta cada vez mais enfraquecido.
Tivéssemos um sistema de governo parlamentarista, com as vantagens que lhe são peculiares, como a responsabilidade política do chefe de governo, separação entre chefia de Estado e de governo e funcionamento voltado à governabilidade, o protagonismo do Legislativo na execução orçamentária poderia ser pensado de forma diferente.
Não é o caso do atual sistema presidencialista de governo.
Enquanto isso, inicia o novo ano legislativo, com lindos discursos.
De volta ao início: Por que foi que cegamos?
__________
1 SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 310.