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Melhor reforma é a mudança de mentalidade

sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Atualizado às 09:30

Quando uma sociedade entra em crise consigo mesma porque não consegue mais se reconhecer no seu modo concreto de viver com os outros e no modo de se organizar institucionalmente, surge, como necessidade interna, a exigência de refletir criticamente e de se explicar teoricamente quanto aos valores e representações que configuram essa sociedade.1

Para começar o ano, esta é uma reflexão de peso.

Aceitamos as mazelas da nossa organização política, como se estivéssemos condenados a jamais delas nos libertar.

Em perspectiva filosófica fica claro o interesse da razão nas seguintes questões: O que sabemos? O que nos é permitido esperar? O que devemos fazer?

As respostas, nada simples, passam por projeções. Seu acerto depende do senso de realidade de quem analisa os fatos, aliado à sorte de quem arrisca prever algo, em um cenário político-institucional tão complexo.

Se por um lado a geopolítica acaba por influenciar a realidade nacional de forma imprevisível, por outro, a não realização do dever de casa insere-se no rol das situações que, embora previsíveis, não costumam ser contornadas.

Um exemplo é aceitar que a agenda das reformas estruturantes, mesmo longe da ideal, está na velocidade do Brasil. Um raciocínio pragmático, espécie de rendição às circunstâncias da política.

A aprovação da reforma tributária pelo Congresso Nacional no ano de 2023 foi um feito político memorável. Pode-se debater se foi a reforma correta ou não.

Todavia, o fato de ter sido aprovada após anos de estagnação da matéria nos escaninhos do Congresso mostra que, quando há vontade política, consensos sobre o principal podem vencer os dissensos sobre o acessório.

A questão é que em outros temas cruciais, tão ou mais importantes que a reforma tributária, consensos acabam não sendo produzidos, gerando uma estagnação constante.

Grande parte das reflexões dos modernos pensadores centra-se na questão do conhecimento.

Quem se ocupa do estudo das instituições políticas sabe - e bem - que praticamos uma arquitetura de baixa qualidade.

É por isso que a principal reforma é a de mentalidade.

Evoluir para priorizar os grandes temas da agenda política, que devem convergir para o aprimoramento das instituições permanentes, deixando de lado questões menores, cuja eficácia costuma ser cosmética.

É neste ponto que empacamos e, por mais que os analistas se esforcem em prever soluções, não estamos conseguindo enfrentar os grandes problemas.

A consolidação das contas públicas, em um cenário de racionalização das prioridades de investimentos do erário, é uma espécie de nó górdio que ainda não foi objeto de corte.

Neste ponto, a reconfiguração das instituições políticas brasileiras, a começar pela reforma dos sistemas eleitoral, partidário e de governo, é o maior desafio.

José Murilo de Carvalho fez uma genial alusão para descrever as relações políticas no Brasil: política e teatro têm algo em comum.

A representação política tem elementos comparáveis à teatral pelo fato de serem exercidas em palcos montados, por meio de atores que têm papéis conhecidos. Há enredo e, principalmente, ficção.2

A maior ficção está em acreditar que o sistema presidencialista de governo, uma usina permanente de crises, será capaz de tirar o país do atoleiro fiscal.

Esta ficção se projeta em diferentes níveis.

O primeiro é eleger um Presidente da República que cumula funções de natureza diversa - chefia de Estado, de governo e da Administração federal - que requerem habilidades distintas, inviabilizando o seu exercício a contento por uma única autoridade.

O segundo é normalizar a eleição de um chefe de governo que não tem a sua disposição maioria parlamentar para aprovar os projetos que compõem sua plataforma de governo.

O terceiro é insistir em uma arquitetura institucional que não combina com o modelo de Estado social preconizado pela Constituição de 1988. No atual modelo, a governabilidade passa a depender do loteamento de cargos públicos e da distribuição de generosas emendas parlamentares, fomentando a irracionalidade no emprego de verbas públicas.

Uma verdadeira disrupção na ideia de representação política.

O presidencialismo de coalizão foi dragado pelo de cooptação.

A ficção, na linguagem teatral de Murilo de Carvalho.

É como se o país conduzisse, na prática, a preponderância do Legislativo, típica de sistemas de governo parlamentaristas, mas com as amarras típicas do presidencialismo, com chefe de governo sem responsabilidade política perante o parlamento.

A lógica de uma representação política que empareda o Executivo, por força da cooptação do orçamento público, cujo emprego volta-se a fortalecer a presença dos seus atores nos respectivos redutos eleitorais, é o quadro de uma disfuncionalidade permanente,3 com reflexos negativos na economia nacional.

No apagar das luzes de 2023, o Congresso Nacional aprovou a Lei Orçamentária Anual (LOA) prevendo despesas de R$ 5,5 trilhões, cujo maior montante se refere ao refinanciamento da dívida pública.4

Se não se estrangulam as causas que comprometem a saúde financeira do país, não se pode evoluir.

Um exemplo prático: no bolo da LOA está prevista a cifra de R$ 4,9 bilhões para compor o Fundo Eleitoral, ou seja, parte da verba que irá financiar as campanhas para as eleições municipais no corrente ano.

A justificativa é o surrado bordão de que a democracia não tem preço.

Tudo isso quando se fala que a meta fiscal do orçamento de 2024 é a de zerar o déficit público.

Não há como reorganizar as contas públicas neste quadro de perversão institucional.

Invariavelmente, a conta acaba caindo nos colos da sociedade, na experiência coletiva de aceitar o que não se consegue mudar.

Implica compreender que sem instituições políticas racionais não se chega a resultados positivos.

Se pode dizer que o Brasil está percorrendo um lento caminho das reformas, mas não que temos uma construção institucional capaz de grandes e duradouros avanços nas prioridades.

Portanto:

O que sabemos?

Que a arquitetura político institucional vigente não se mostra apta a resolver os complexos problemas do país, esvaziando os objetivos estatais permanentes, cristalizados como objetivos fundamentais da República (art. 3.º CF).

O que nos é permitido esperar?

Se mantivermos a atual arquitetura institucional, os problemas que há muito vivemos não serão resolvidos. Pode-se avançar aqui ou acolá, ou até mesmo retroceder, mas a estagnação que nos acompanha desde a República velha permanecerá, apenas sob nova roupagem.

O que devemos fazer?

Coragem para avançar nas reformas. Acima de tudo, compreender que a principal reforma é a de mudança de mentalidade. Investir em uma má configuração institucional é uma passagem só de ida para o caos.

Construir consensos mínimos, que priorizem o país, no lugar de tentações eleitoreiras rasas. Fortalecer a democracia pelas instituições.

O Direito Constitucional vivo exige que se pense o país sob a perspectiva da viabilidade das suas instituições, sob pena de sempre permanecermos reféns dos nossos condicionantes.

Um pensamento muito pobre, para uma nação tão exuberante.

A evolução começa pela mudança de mentalidade, a principal reforma.

__________

1 HERRERO, Xavier. A razão kantiana entre o Logos socrático e a pragmática transcendental. Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 18, n. 52, jan./mar. 1991, p. 37.

2 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política imperial. 3.ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 420.

3 Disponível aqui.

4 Disponível aqui