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Democracia defensiva na visão de um membro do TCF alemão - Parte I

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Atualizado às 07:42

No dia 16/8/2023, o juiz do Tribunal Constitucional Federal alemão (TCF), Dr. Josef Christ, proferiu uma palestra no TSE sobre o tema da democracia defensiva,1 organizada pelo Fórum Jurídico Brasil-Alemanha.2

O assunto é atual e desperta diferentes perspectivas, em cenários nos quais condutas extremistas de todos os tipos crescem.

A pergunta central proferida pelo magistrado alemão na conferência foi: pode o Estado garantir liberdade aos inimigos da liberdade?

Ela foi descrita como um verdadeiro dilema que as democracias livres enfrentam ao redor do mundo.

Christ iniciou o seu pronunciamento com uma manifestação que para muitos é surpreendente. Segundo a jurisprudência do TCF, a liberdade de expressão também pode ser invocada por aqueles que rejeitam valores fundamentais da Constituição.

Uma das linhas construídas pela jurisprudência protege opiniões que visam à extinção da democracia liberal, desde que manifestadas pacificamente. Uma construção que se ampara na crença do livre embate de ideias como a arma mais eficaz contra a disseminação de ideologias totalitárias.

Ou seja, desde que afastados meios agressivos combativos, a liberdade de se expressar proporciona uma ampla esfera de proteção. Todavia, Christ pondera que esta visão somente faz sentido quando a Constituição se mostra capaz de desenvolver instrumentos aptos a proteger a liberdade contra os inimigos da liberdade.

Uma ideia nitidamente baseada na noção de riscos, pois se por um lado a liberdade pode servir para aniquilar a própria liberdade, por outro a sua contenção demasiada pode chegar ao mesmo resultado.

Ciente desta realidade, Christ define a teoria da democracia defensiva a partir das seguintes observações.

A ordem estatal prevista na Constituição parte do pressuposto de que a democracia, a liberdade e o estado de direito devem estar permanentemente garantidos e protegidos.

Este pressuposto justifica o fato de que a Constituição não pode conceder liberdades para extinguir a ordem constitucional. Destaca-se o argumento de que o exercício da liberdade não pode se tornar um risco para a própria liberdade.

A ideia inerente ao conceito de democracia defensiva é que não se pode tolerar condutas que visam a ameaçar, prejudicar, destruir a ordem constitucional ou a existência do próprio Estado.

Trata-se da consolidação de um princípio que, segundo o TCF, deriva da expressão da vontade político constitucional consciente de solucionar um problema típico das democracias: como tolerar diferentes concepções políticas e o compromisso com valores fundamentais tidos como invioláveis em um Estado de direito?

Nesta perspectiva, a necessidade de proteção deve agir frente aos ataques advindos do próprio Estado, como também por parte da sociedade. Algo semelhante a uma proteção multidirecional, típica das concepções de eficácia vertical e horizontal dos direitos fundamentais.3

Foi destacado que a Alemanha, em particular, tem razões histórias claras para o desenvolvimento de uma teoria da democracia defensiva.

Assume destaque a dolorosa experiência em torno da violação dos princípios mais elementares da existência humana durante o período de terror imposto pelo regime nacional-socialista.

Foi esta terrível experiência que levou à construção de uma institucionalidade voltada à limitação do poder, com parâmetro na garantia de inúmeros direitos fundamentais.

Um dos pontos altos da palestra foi a observação de que é difícil entender os limites da democracia defensiva sem que se olhe para o passado.

Christ apontou que a República de Weimar serviu de contraste para a promulgação da Lei Fundamental de 1949. Aquele modelo fora construído a partir de uma noção positivista, que se vinculava muito mais ao método jurídico, do que para seus objetivos centrais.

E foi exatamente a aplicação deturpada de um método que, ao se impor, levou à quebra dos pilares elementares à civilização. O resultado foi a construção de uma democracia frágil, que relativizada valores.

Os intérpretes da Constituição de Weimar partiam do pressuposto de que uma democracia, para permanecer fiel a si mesma, também deveria tolerar movimentos voltados à destruição da própria democracia. "Era preciso permanecer fiel à sua bandeira, ainda que o navio afundasse". Uma estratégia perigosa, que não foi capaz de resistir aos anseios totalitários.

Uma concepção de Estado presa a um relativismo axiológico, aliada à ausência de proteção perante maiorias parlamentares antidemocráticas, no bojo de uma Constituição flexível, levou, naquele momento histórico, a uma erosão do tecido constitucional.

Na época, vigorava a noção, baseada na doutrina de Gerhard Anschütz, de que a Constituição não estaria acima do Poder Legislativo, mas à sua disposição. Algo que, segundo Christ, estaria sofrendo uma espécie de reedição em vários países, por força de movimentos políticos que visam a afrouxar a densidade do controle exercido pelos tribunais constitucionais no interesse de uma suposta vontade popular.

Percebe-se que a partir da história vivida, projeta-se um arcabouço de concepções voltadas ao presente.

Um aspecto sensível, quando se leva em conta que, por vezes, os próprios tribunais constitucionais também contribuem para desestabilizar os sistemas democráticos, quando se deixam pautar por condutas ativistas em grau incompatível com a separação dos poderes. Um tema, aliás, muito debatido entre nós.

Feita esta observação, retomo o ponto central levantado por Christ: como é possível se proteger contra abusos praticados em nome de uma democracia defensiva?

Dependendo da forma como se emprega a noção de democracia defensiva, pode surgir uma restrição desproporcional à liberdade de expressão e a outros relevantes direitos fundamentais ligados à própria noção de liberdade.

O risco é a exclusão de determinados pontos de vista que são apresentados no marco de possíveis soluções para os problemas institucionais.

Portanto, a própria noção de democracia defensiva não está livre de abusos e deturpações. Eles ocorrem, particularmente, quando a teoria é empregada para combater adversários políticos ou críticas indesejadas.

Um fenômeno comum em um universo de narrativas votadas à disseminação de visões parciais de fatos, muitos deles com propósitos tão ou mais obscuros do que aqueles que aparentemente visam a combater.

__________

1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

3 DUQUE, Marcelo Schenk. Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais e Jurisdição Constitucional. 2 ed. revista e ampliada. São Paulo: Editora dos Editores, 2019.