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Presidencialismo de joelhos

sexta-feira, 2 de junho de 2023

Atualizado às 08:23

A crise na aprovação da medida provisória (MP 1.154/2023) que definiu a organização dos Ministérios do Governo Lula1 é o retrato da falência do sistema presidencialista de governo.

A MP previa 31 ministérios, além de seis órgãos com status de ministério, totalizando 37 ministros.

A Câmara dos Deputados introduziu modificações no organograma ministerial definido pelo Poder Executivo, em particular na pasta responsável pelo meio ambiente, que teve suas competências esvaziadas.

Parte das competências originalmente previstas pelo governo foram realocadas para outras pastas. O COAF, unidade de inteligência para prevenção e combate à lavagem de dinheiro e à corrupção, originalmente incorporado ao Ministério da Fazenda, que a partir de agora deverá retornar à alçada do Banco Central.

A vigência da MP encerraria no final do dia 01/06/2023. A Câmara dos Deputados aprovou o texto no dia 31/05/2023, obrigando o Senado, horas depois, a converter a MP em lei, de forma relâmpago, no último dia do prazo, sob pena de comprometer a estrutura ministerial.

Ao ponto, pois.

Como um sistema de governo pode funcionar a contento, quando o Presidente da República eleito não dispõe, sequer, do poder de decidir com quantos ministérios quer governar?

Dito de outro modo: o sistema político vigente permite a eleição de um chefe de governo que não tem poder para estabelecer, por conta própria, a estrutura do seu ministério, já que tal decisão toca, em última análise, ao Congresso Nacional.

Trata-se de debilidade - ou incoerência - considerando que a Constituição Federal prevê que o Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado (art. 76 CF) e que, dentre as tarefas dos Ministros, está a de praticar os atos pertinentes às atribuições que lhe forem outorgadas ou delegadas pelo Presidente (art. 87, § único, IV CF).

Os ministérios são órgãos de assessoramento direto da Presidência da República. Isso faz com que uma relação de confiança com o chefe do Executivo seja fundamental na boa condução dos trabalhos.

A extensão da relação de confiança resta subtraída pelo Congresso Nacional, que pode decidir, soberanamente, o número de pastas e o tipo de atribuições que cada uma deve possuir.

Apesar de o Presidente da República ser o chefe da Administração federal, quem determina a sua extensão, e até mesmo pormenores de competências, é o Poder Legislativo.

Pode-se até não concordar com decisões do governo do dia, isto faz parte da democracia.

Contudo, impedir que um governo democraticamente eleito decida com quantas pastas quer governar, bem como as atribuições de cada uma, parece incompatível, em demasia, com a chefia da Administração.

Temos, de verdade, um sistema presidencialista de governo? Ao menos um que funcione?

Há muito se percebe que o presidencialismo brasileiro está coberto de disfuncionalidades.

A começar pelo fato de que a pessoa que é eleita Presidente da República não conta com maioria política para governar.

Elege-se o(a) Presidente da República, cujo partido não possui maioria nas Casas Legislativas para levar à frente o seu programa de governo.

Surge um nó muito difícil de desatar.

O sistema político ancorado na Constituição não garante ao eleito boas chances de governabilidade dentro de uma conjuntura de estabilidade política.

A Constituição atribui ao Presidente da República a Chefia de Governo (juntamente com as Chefias de Estado e da Administração) ao mesmo tempo em que confere ao Congresso Nacional o poder para aprovar, reprovar ou até mesmo bloquear grande parte dos projetos de governo, bem como os assuntos mais relevantes para o país.

Na prática, o Poder Legislativo tem enorme primazia de decisão em relação ao Executivo.

Os cidadãos são levados a acreditar que o poder de decisão e influência do Presidente da República nas grandes questões nacionais é muito maior do que, de fato, é.

O motivo que leva a esta má percepção é que, inegavelmente, por força da configuração político-institucional vigente, cabem aos Deputados e Senadores as decisões sobre a maior parte dos assuntos relevantes para o país.

A questão que se coloca é: como se governa sem apoio político majoritário no Congresso Nacional?

A resposta, do ponto de vista pragmático, é a seguinte: neste disfuncional sistema, ou se compra apoio político majoritário ou não se governa. O que varia é a moeda de troca.

As mais comuns, para ficar dentro do quadro da aparente institucionalidade, são o loteamento dos milhares de cargos na Administração e a irracional concessão de ementas parlamentares em troca de um apoio político volátil e transitório.

Não é por menos que os órgãos e imprensa, na questão da crise da referida MP, noticiaram: em apenas um dia, o governo liberou R$ 1,7 bilhão de reais em emendas parlamentares, cujos valores foram empenhados quando havia a expectativa de votar a MP que reorganiza os Ministérios.

Detalhe: grande parte dessa verba foi para os partidos do chamado Centrão.2

Daí o título desta coluna: presidencialismo de joelhos. Ou cede, ou não governa.

Para alguns, isto faz parte da democracia. Para outros, dentre os quais eu me incluo, representa grande disfunção, já que a governabilidade fica à mercê de práticas contrárias ao interesse público, normalizando a irracionalidade do emprego de verbas escassas e extremamente relevantes para o desenvolvimento nacional.

Em um Estado democrático de direito o exercício do poder só se legitima quando dirigido à obtenção dos fins, que justificam as atribuições de competência no marco da Constituição.3

Daí se compreende que um sistema de governo não é um fim em si mesmo, já que a sua manutenção deve estar orientada ao bem comum e à realização dos objetivos constitucionais permanentes.

Vale dizer, o arbítrio desconhece e desafia o direito.4

O presidencialismo de coalizão, na clássica expressão cunhada por Sérgio Abranches5, está falido.

Grande parte das pessoas que apoia o sistema repousa na figura mística do ser presidencial. A autoridade que veste a faixa, que toma posse em carro aberto, que discursa à nação.

A defesa de um sistema, quando fica preponderantemente orientada aos atributos pessoais de quem o exerce, passa a se tornar irracional.

Nunca é demais lembrar que uma Constituição não é apenas uma compilação de regras, por meio das quais os órgãos estatais se relacionam. Ela é, em primeiro lugar, o autoentendimento de um povo acerca de sua existência política e a afirmação dos traços essenciais da ordem social.6

Está na hora de compreender que a governabilidade passa, inegavelmente, pelo Legislativo, de modo que as instituições democráticas que levam à construção do Congresso Nacional devem ser objeto de grande esforço de aprimoramento.

Várias são as instituições que podem potencializar ou desfigurar os sistemas de governo.

Não há como negar que os mecanismos de solução de crises no presidencialismo são muito complexos, já que as crises se retroalimentam pela lógica do próprio sistema.

Um quadro de dilemas permanentes, que ameaçam o próprio Estado.

Urge a implantação de um novo sistema de governo, apto a funcionar com base na realidade parlamentar brasileira.

Voltado à funcionalidade, com características que permitam governar, com mais eficiência, livre do clientelismo político.

Neste quadro, blindar a Administração contra o loteamento de cargos públicos é medida irrenunciável, bem como a racionalização do emprego do orçamento público, oposta à sistemática atual de distribuição de emendas parlamentares no varejo.

Somente instituições políticas bem configuradas são capazes de sufocar as más práticas, ao passo que o inverso as potencializa.

Vamos debater o parlamentarismo ou o semipresidencialismo, cientes de que o atual modelo não mais se mostra suportável.

É isso, ou seguir levando todos os Presidentes a se ajoelharem perante o Congresso, até mesmo para escolher com quantos ministérios querem governar.

__________

1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

3 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 151.

4 CIRNE LIMA, Ruy. Princípios de Direito Administrativo. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p. 111.

5 ABRANCHES, Sérgio Henrique Hudson de. Presidencialismo de Coalizão: O Dilema Institucional Brasileiro. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 31, n. 1, 1988, p. 5ss.

6 GRIMM, Dieter. Die Verfassung und die Politik. Einsprüche in Störfällen. München: Beck, 2001, p. 51.