A Lei das Estatais sob ataque no STF - Parte I
sexta-feira, 24 de março de 2023
Atualizado às 07:47
O sistema presidencialista de governo, imerso em um cenário hiperpartidário, é avesso à governabilidade.
Não há outra forma de governar o Brasil, sem se obter apoio político junto ao Legislativo.
Em um cenário de dezenas de agremiações representadas no Congresso Nacional é impossível que um Presidente eleito possua, junto ao seu partido, uma maioria de parlamentares apta a lhe garantir a aprovação dos projetos de interesse do governo.
Um velho e insuperável dilema do presidencialismo de coalizão. Ou se formam coalizões políticas, ou o Presidente não governa.
O problema sempre foi o preço destas coalizões políticas.
Quem acompanha a política sabe que o apoio ao governo do dia não costuma ser dado por simpatia aos projetos, respeito à figura presidencial, ou até mesmo por apego ao interesse público.
O apoio costuma ser dado em troca de benesses que a política proporciona. Dentre as mais comuns, emendas parlamentares e a distribuição de cargos na administração pública, tribunais de contas etc.
Trata-se de uma cultura corruptora. Empregam-se órgãos públicos como moeda de troca para a governabilidade, em total desrespeito ao interesse público.
Esvai-se, assim, a independência da administração1. A máquina administrativa tende a ser inflada, para acobertar os aliados de plantão.
O custo desta prática é elevadíssimo. Gasta-se muito para manter uma estrutura desnecessária, em detrimento de setores carentes de investimentos.
Ao mesmo tempo, pela falta de capacidade técnica de muitos indicados, a qualidade dos serviços é atingida em cheio.
Muitos se aproveitam da permanência temporária em funções de direção, chefia ou assessoramento, para se locupletarem, favorecendo as práticas de improbidade administrativa.
O escancaramento do uso da máquina pública por parte de indicações políticas foi tão intenso nos últimos anos, que o próprio Congresso Nacional foi instado a reagir.
No ano de 2016, foi aprovada a lei 13.3032, conhecida como Lei das Estatais, que traz uma importantíssima conquista para a sociedade brasileira: o estabelecimento de critérios mais rígidos para as indicações políticas nas empresas que contam com capital público.
A lei visou a quebrar o costume de alocação de pessoas sem os mínimos critérios de competência ou idoneidade para atuarem nas estatais, no curso de cargos comissionados.
Quando o endurecimento das regras passou a dificultar a obtenção de apoio político, surgiu um conjunto de iniciativas parlamentares voltadas a retomar o status quo ante.
Projetos de lei voltados à flexibilização das novas regras3, passando pela tentativa de declarar a inconstitucionalidade das restrições perante o STF.
Um destes movimentos foi o ajuizamento da ADI 7.331, proposta pelo PCdoB. Referida ação visa a impugnar o enrijecimento das indicações de natureza política nas estatais.
O relator da ação, Min. Ricardo Lewandowski, por meio de decisão monocrática, deferiu medida cautelar voltada a suspender a parte da norma que impede indicações de conselheiros e diretores que sejam titulares de determinados cargos públicos, ou que tenham atuado, nos três anos anteriores, na estrutura decisória de partido político ou na organização e na realização de campanha eleitoral4.
Trata-se de grave equívoco, que desconsidera a realidade da política brasileira.
O Jornal Estado de São Paulo, em editorial datado de 18/03/2023, intitulado "O STF precisa respeitar a Lei das Estatais", fez uma análise cirúrgica do fato: "Tem horas que o STF se esforça por ser parte do problema, e não da solução".
Não há nada na Lei das Estatais que contrarie a Constituição. Pelo contrário, ela realiza os princípios constitucionais da moralidade e da eficiência, em defesa do interesse público.
Nos termos da ordem constitucional vigente, o Congresso tem competência para definir critérios e restrições para os cargos nas estatais. É matéria que cabe ao Legislativo decidir.
Na ausência de restrições desproporcionais por parte do Legislativo, a interferência do Poder Judiciário configura ativismo judicial, medida equivocada, apta a perturbar a separação dos poderes.
No entendimento do Relator, a Lei das Estatais criou discriminações desproporcionais contra pessoas que atuam na esfera governamental ou partidária, sem levar em conta nenhum parâmetro de natureza técnica ou profissional que garanta a boa gestão.
O argumento não resiste à melhor análise constitucional.
Os parâmetros levados em conta pelo Poder Legislativo derivam de prognoses de natureza política, que impõem ao Poder Judiciário considerável autocontenção no momento de confrontá-las com a Constituição, cujos princípios que tratam da matéria são marcados por vagueza e abstração5.
Princípios constitucionais apontam para fins que devem ser alcançados, ou seja, uma direção, de modo a prover um estado ideal de coisas6.
Admitem realização em diferentes graus, o que aponta para uma inegável margem de discricionariedade, vale dizer, um juízo de conveniência e oportunidade por parte da esfera política.
Assim, a apreciação constitucional do caminho eleito pelo legislador passa a depender do quão acertadas são tais suposições, no que diz respeito a seu real desenvolvimento futuro, no âmbito da regulamentação normativa.7
Como observado no referido editorial, no caso da lei 13.303/2016, foi a própria política quem definiu os limites para a política.
Outro argumento empregado para fulminar a lei foi no sentido de que restrições de direitos dessa ordem somente poderiam ser estabelecidas pela própria Constituição.
É justamente a Constituição, quando consagra os princípios que devem reger a administração pública, que legitima a intervenção do legislador para proteger a probidade e a eficiência do agir administrativo.
É por esta razão que, além da Lei das Estatais, existem outras previsões no ordenamento jurídico que, visando a proteger o patrimônio público, a eficiência e a moralidade administrativa, justificam a prática de restrições à liberdade de profissão.
Cite-se, por exemplo, a lei 9.986/2000, que dispõe sobre a gestão de recursos humanos das Agências Reguladoras, que também impõe critérios temporais rígidos, de modo a impedir o aparelhamento político nas respectivas autarquias8.
O próprio direito fundamental de liberdade de profissão (art. 5.º XIII CF) é uma típica norma de eficácia contida, no dizer de José Afonso da Silva9, já que condiciona o exercício das profissões às qualificações que a lei estabelecer.
Um típico caso de reserva legal qualificada, que autoriza o legislador a impor restrições ao exercício das profissões, sempre que presente risco social.
Não há risco social mais evidente, que o nefasto aparelhamento político das estatais, em detrimento do interesse público.
Longe de ser uma prognose falsa por parte do legislador, deriva da comprovada experiência dos riscos que as indicações políticas têm causado à máquina administrativa.
Voltaremos a este assunto na próxima dinâmica constitucional.
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1 Disponível aqui.
5 DUQUE, Marcelo Schenk. Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais e Jurisdição Constitucional. 2 ed. revista e ampliada. São Paulo: Editora dos Editores, 2019, p. 238ss.
6 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 12 ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 78.
7 GRIMM, Dieter. Die Verfassung und die Politik: Einsprüche in Störfällen. München: Beck, 2001, p. 207.
8 Lei 9.986/2000, art. 8-A: Art. 8º-A. É vedada a indicação para o Conselho Diretor ou a Diretoria Colegiada: I - de Ministro de Estado, Secretário de Estado, Secretário Municipal, dirigente estatutário de partido político e titular de mandato no Poder Legislativo de qualquer ente da federação, ainda que licenciados dos cargos; (Incluído pela lei 13.848, de 2019). II - de pessoa que tenha atuado, nos últimos 36 (trinta e seis) meses, como participante de estrutura decisória de partido político ou em trabalho vinculado a organização, estruturação e realização de campanha eleitoral; (Incluído pela lei 13.848, de 2019).
9 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37 ed. São Paulo: Malheiros, p. 260s.