O ataque à democracia e a resposta no marco da Constituição
sexta-feira, 13 de janeiro de 2023
Atualizado às 07:35
A invasão e destruição dos prédios que abrigam os Poderes públicos, no dia 8 de janeiro de 2023, na capital federal, merecem total repúdio.
Barbárie, depredação e vandalismo não permitem relativização.
Pouco importa se não se concorda com o governo eleito. Vandalismo, depredação e selvageria nunca são soluções.
Aqueles que se julgam no "direito" de vandalizar instalações públicas consideram-se, na prática, mais brasileiros do que outros. Ou quem sabe, mais patriotas...
O patrimônio destruído não é do Presidente da República, dos políticos ou dos ministros do Supremo Tribunal Federal. É do Estado brasileiro.
Falta àqueles que depredaram o patrimônio público a noção elementar de estado de direito e, sobretudo, da distinção entre oposição e subversão.
Faz parte do direito de oposição democrática ir contra o governo do dia, por meio de protestos pacíficos, sem armas, em locais abertos ao público, mediante prévio aviso às autoridades competentes, para que possam organizar a segurança de todos.
Da mesma forma, integra o núcleo da democracia a possibilidade de livre pronunciamento e votações nos órgãos políticos de deliberação coletiva.
Contudo, quando se age contra o Estado, não se trata de oposição, mas sim de subversão!
A invasão violenta e a depredação, sem precedentes no Brasil, dos prédios dos poderes públicos representa verdadeiro ato subversivo, que deve atrair dura punição no marco da legislação vigente.
Os atos violentos não visam apenas à destruição física das instalações, mas, igualmente, ao enfraquecimento das instituições que representam.
Isto é inadmissível em uma democracia.
A violência não tem proteção constitucional. Eventuais descontentamentos devem ser manifestados de modo pacífico.
Qualquer entendimento contrário representa uma via - de mão única - para o caos.
Em uma democracia funcional a alternância de poder tem que ser vista com naturalidade. Os derrotados aceitam o resultado e rumam para a oposição.
O que se tem visto no Brasil, em particular a partir dos episódios violentos do início do ano de 2023, aponta para um estado de irracionalidade que, se não controlado, pode levar a consequências trágicas.
O momento é complexo, sensível e requer a atuação de lideranças com espírito estadista, no lugar daqueles que só se interessam por dividendos eleitorais ou pela manutenção no poder a qualquer custo.
Os acontecimentos foram graves e exigem investigação séria e profissional. As pessoas que danificaram o patrimônio púbico e que atuam para derrubar as instituições democráticas não podem fugir à responsabilidade. Elas estão em dívida com o povo brasileiro.
As dificuldades são consideráveis. Certamente, muitas pessoas que se faziam presentes nos protestos não tinham a intenção de agir como bárbaros. Alguns foram arrastados pelo chamado "efeito manada".
Entretanto, ao tomarem parte em atos deploráveis de vandalismo, devem ser chamados à justiça, na forma da lei. Aos órgãos competentes cabe a árdua tarefa de averiguar a participação de cada um, para efeitos de responsabilização.
Sem embargo, a tarefa principal dos órgãos judiciais é encontrar os financiadores desses atos, bem como as autoridades que, voluntariamente, se omitiram de cumprir seu dever legal. Aqueles que podiam agir para evitar os danos e nada fizeram.
Os primeiros são aqueles que agem nas sombras. Provavelmente, assistiram à barbárie no conforto das suas casas. Usam pessoas que são manipuladas para o atingir fins obscuros, que parte dos manifestantes sequer imagina, em nome de uma pretensa causa maior.
Os segundos são os que mais preocupam. Quando atos criminosos têm a participação de agentes estatais, na forma de omissão deliberada, fica claro que a criminalidade possui tentáculos no aparelho estatal.
Aqui está-se diante do quadro mais grave, que justifica a mais rigorosa punição.
Não resta dúvida que a democracia foi atacada e que necessita empregar os meios constitucionalmente assegurados para se defender.
O desafio, que se mostra presente, é compreender em que ponto erramos e quais aprimoramentos institucionais se fazem urgentemente necessários.
O momento é de serenidade. Há que se construir uma cultura estatal voltada à pacificação social.
É importante ter em mente que nenhuma democracia sobrevive, por mais consolidada que seja, quando a todo momento for submetida a uma crise sistêmica de legitimidade.1
No centro do debate está a sobrevivência do sistema democrático.
É fundamental que os atores políticos, assim como as autoridades constituídas, compreendam o seu papel no curso da delicada conjuntura que o país enfrenta. A escassez de estadistas cobra seu preço.
Deixar a justiça fazer o seu trabalho com eficiência, sem holofotes e discursos virulentos, é o caminho de ouro. Toda narrativa incendiária deve ser evitada.
Não se pode esquecer que um país dividido é um país estagnado.
Marcada a defesa contundente da democracia e do estado de direito, há que se trabalhar com menos exposição e mais profissionalismo na busca da integridade nacional.
Ao Supremo Tribunal Federal, particularmente, coloca-se o desafio de atuar nos estritos limites constitucionais. Uma tarefa árdua, considerando que ao chamar para si o encargo de responsabilizar criminosos, coloca-se, ao mesmo tempo, na condição de vítima e julgador.
É necessário perceber que por mais graves que tenham sido os atos criminosos, não se pode dar uma espécie de carta branca para qualquer instituição, em nome da repressão e da justiça, agir fora do devido processo legal.
Convém lembrar que quando um órgão estatal se acostuma a abusar do poder, ainda que em nome de uma "causa nobre", abre-se um perigoso precedente, que pode se converter em regra geral de conduta, difícil de ser superada com o passar dos tempos.
Lawfare, para usar um termo da moda - manipulação de procedimentos judiciais visando à perseguição de desafetos, mediante violação de direitos - não pode ser tolerado.
Não se combate um mal, recorrendo a instrumentos igualmente maléficos. Vale dizer: o recurso aos fins supremos do ordenamento jurídico não pode servir de meio para ludibriar a Constituição, no instante em que a eleição destes fins pode representar interesses, cuja hierarquia é controvertida2.
Isso significa que no curso da responsabilização daqueles que atuaram e atuam contra as instituições democráticas, a Constituição não pode ser abandonada por conta da insegurança gerada por uma luta permanente de poderes e de opiniões que, em sua argumentação, não logram êxito em referir-se a uma base comum3.
O direito constitucional, mesmo em momentos de crise, não admite aplicação seletiva. As respostas têm que ser buscadas na Constituição, não fora. É ela que possui os remédios adequados para cada tempo, mesmo os mais duros, em tempos difíceis.
Não se pode defender uma espécie de direito constitucional do inimigo, que defende garantias para apenas um dos lados. As punições devem incidir sobre os culpados, na medida das suas respectivas responsabilidades, mas sempre no marco do devido processo legal.
Se o caminho for outro, estaremos nos afastando da racionalidade e da funcionalidade do ordenamento jurídico.
É fato que o Brasil foi colocado em posição de vergonha mundial, pela ação de grupos bem articulados, verdadeiros artífices da desordem, que atuam para acabar com a democracia, em proveito próprio.
A democracia defensiva tem que agir para se proteger, sobretudo, daqueles que, em nome da própria democracia, atuam para eliminá-la.
Sempre dentro das regras, nunca fora.
Os bons exemplos são esperados de cima. Somente assim os espíritos serão apaziguados. A partir daí, todos devemos nos voltar aos aprimoramentos institucionais necessários.
Só as boas instituições nos colocam a salvo dos piores males.
__________
1 LYNCH, Christian; CASSIMIRO, Paulo Henrique. O Populismo Reacionário. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 189.
2 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auf. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 33.
3 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auf. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 33.