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O sistema além das pessoas

sexta-feira, 20 de maio de 2022

Atualizado às 07:54

Em matéria de debates políticos uma tendência salta aos olhos: passamos a maior parte do tempo debatendo pessoas e deixamos a análise do sistema de lado.

As discussões vêm sendo pessoalizadas ao extremo. Simpatizantes, quando não apaixonados por mitos, de um lado; detratores ou que antipatizam, de outro.

No meio, as vozes mais neutras são as que menos se fazem ouvir.

Hans-Georg Gadamer, um dos mais geniais filósofos da hermenêutica, ensinava que o objetivo de toda a compreensão é um entendimento prévio sobre o que está sendo analisado1.

Portanto, onde não há compreensão, ou quando ela foi distorcida, há que se tecer esforços para que venha a ser restabelecida.

Penso que há muito deixamos de compreender que o principal problema, que nos coloca em crises políticas permanentes, passa menos pelas pessoas que provisoriamente exercem o poder e mais por uma sucessão de equívocos institucionais, que no caso brasileiro, vêm se impondo há muito tempo.

Consequentemente, por mais que pessoas virtuosas cheguem ao poder, pouco se avançará em termos de correção de rumos.

Nas últimas décadas, chefes de governo, com os mais diferentes perfis, ascenderam legitimamente ao poder.

Independentemente das qualidades e defeitos de cada um, é forçoso reconhecer que ainda somos vítimas da manutenção de significativas mazelas institucionais, que perpassam as respectivas individualidades.

Essas mazelas iniciam nos sistemas de governo, eleitoral e partidário.

O sistema presidencialista de governo, tão festejado por alguns, centraliza na pessoa do Presidente da República poderes quase que mitológicos.

A autoridade é transformada em uma espécie de Messias, pois dela tudo se espera. Quando as coisas não funcionam a contento, tudo passa, quase que automaticamente, a ser sua culpa.

É verdade que pessoas mal preparadas ou de má índole contribuem para que esse indesejável estado de coisas, marcado pela disfuncionalidade, não apenas se perpetue, como também se agrave.

Todavia, não se pode perder de vista que mesmo pessoas virtuosas e tecnicamente competentes não conseguem, por si só, vencer um sistema que padece de vícios de toda a sorte.

Como ponto de partida pode-se referir uma das grandes disfuncionalidades do sistema presidencialista de governo: a eleição de uma única pessoa para chefiar o Estado, o governo e a administração de um país.

Ou seja, unem-se, em uma mesma autoridade, funções absolutamente distintas, que requerem perfis, vocação e responsabilidades igualmente diferenciadas.

Consequentemente, nenhuma delas acaba sendo exercida de modo eficaz.

Os problemas, contudo, não param aqui.

Esse mesmo sistema permite a eleição de um candidato, que não conta com maioria parlamentar minimamente apta à aprovação dos projetos centrais que integram o plano de governo vencedor nas urnas.

O que as pessoas em geral relutam em compreender, é que de nada adianta eleger um presidente, se ele não contar com uma maioria minimamente confortável no Congresso Nacional para lhe dar suporte.

Em verdade, o sistema constitucional brasileiro criou um paradoxo que inviabiliza qualquer governo eleito: é avesso à governabilidade.

Isso porque confere ao presidente a direção das políticas de governo, ao mesmo tempo em que transfere ao Congresso Nacional a responsabilidade pela sua aprovação, em grande parte dependente da edição de leis ou até mesmo de emendas constitucionais.

Como se não bastasse, ao prever um sistema eleitoral proporcional e exigências muito brandas para que partidos inexpressivos sejam representados no Congresso Nacional, acabou por produzir um ambiente hostil à formação de maiorias parlamentares e muito favorável, por outro lado, à formação de minorias.

Esta excessiva fragmentação partidária representa um obstáculo quase que intransponível à governabilidade.

Quase, pois há estratégias que favorecem acordos ou coalizões de plantão. O problema é que não costumam ser meios republicanos.

É justamente aqui que o sistema revela uma de suas facetas mais cruéis: ele favorece a prática de condutas que em nada correspondem aos ideais democráticos de um Estado de Direito.

Eu me refiro às diversas práticas, que em maior ou menor graus foram levadas a efeito em todos os governos, como distribuição de cargos na administração para compra de apoio político (inchaço da máquina pública), mensalão, corrupção em estatais e, mais recentemente, a farra orçamentária pela via das famosas emendas de relator2.

Em comum, trata-se de práticas mais ou menos engenhosas, algumas mais refinadas, outras menos, algumas mais disfarçadas de legalidade, outras que nem perto chegam.

O fato é que quando o sistema é ruim, ele induz as pessoas a se comportarem mal, fazendo com que as boas práticas, que deveriam conformar a boa política, sejam sufocadas.

É claro que com esse raciocínio não se pretende absolver ninguém por condutas inadequadas.

O que se quer é salientar que quando a organização política fundamental definida pela Constituição é inadequada, não se podem esperar bons frutos.

Esse é um dos motivos pelos quais os famosos centrões - e suas práticas - não apenas se perpetuam na política, como também se fortalecem, a cada eleição.

No caso, grupos suprapartidários, de representação heterogênea, mas que em comum demonstram apetite pela barganha política, pelo poder, patrimonialismo e, naturalmente, pelas benesses que são bem características, entre nós, da atividade política.

Estes grupos são os que, na prática, pela sua atividade no dia a dia do Congresso, decidem o futuro da nação.

Paradoxalmente, quase toda a atenção dos eleitores é voltada à eleição presidencial. A escolha dos membros do Poder Legislativo é tratada como assunto secundário, de menor importância.

O resultado não poderia ser diferente. Um déficit muito elevado na qualidade da representação política e uma carência expressiva de políticas públicas voltadas à solução dos problemas nacionais permanentes.

Enquanto o sistema eleitoral não evoluir para refinar a escolha dos membros do Congresso Nacional, poucos avanços serão verificados.

Nesse ponto, a adoção de um sistema eleitoral distrital seria um caminho muito mais seguro3.

Enquanto isso, o eleitorado fica brigando por seus mitos presidenciáveis, sem perceber que não existem salvadores da pátria na política.

O que existe, sim, são arranjos institucionais mais aperfeiçoados, que permitem às pessoas proporcionar o seu melhor.

Quando o arranjo é ruim, eventuais qualidades pessoais anulam-se em face de um comportamento coletivo inadequado, cujas exceções não dão conta de modificar.

Caberia, pois, a cada estadista e, sobretudo, a cada eleitor, perceber que a partir de um sistema ruim, pouco pode se esperar.

A saída para a crise passa pelo apoio às reformas que revertam as causas que levam à paralisia institucional, à manutenção de um status quo e de um establishment, que pouco agregam à nossa combalida democracia.

Os modelos atualmente praticados estão falidos!

Enquanto não se modificarem os sistemas de governo, eleitoral e partidário, o Brasil, no máximo, terá uma mudança de rostos na política, mas não de práticas e costumes.

Esse, creio, é o entendimento do estado de coisas vigente no país, a partir do qual temos que voltar a nossa compreensão.

__________

1 GADAMER, Hans-Georg. Wahrheit und Methode. Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Band. 1. Tübingen: Mohr, 1990, p. 297.

2 Disponível aqui.

3  Disponível aqui.