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A legislação eleitoral e o homem cordial

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Atualizado em 17 de fevereiro de 2022 19:18

O conceito de homem cordial, desenvolvido por Sérgio Buarque de Holanda na clássica obra Raízes do Brasil, deveria ser objeto de muitos estudos.

Ele ajuda a compreender as mazelas brasileiras, em particular no que diz respeito ao modo como determinados agentes públicos tratam o Estado, sobretudo na condução da vida política.

Ao tratar do tema, Holanda afirma que o Estado não deve ser visto como uma ampliação do círculo familiar e, ainda menos, como uma integração de determinados agrupamentos que exprimem certas vontades de cunho particularista, dos quais a família seria o melhor exemplo.1

O homem cordial é uma forma de retratar o perfil típico da sociedade brasileira da época, cujo traço fundamental seria uma espécie de aversão a ritos.

Tal característica, segundo Holanda, favoreceu o desenvolvimento de uma cultura patrimonialista, marcada pela imensa dificuldade, sobretudo para os detentores de posições públicas de responsabilidade, em compreender a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público.2

O resultado, segundo o sociólogo, é que ao longo da nossa história acompanhamos o predomínio constante das vontades particulares, que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal.3

Os escritos de Holanda descrevem, com rara precisão, o que se tornou o Brasil a partir do domínio de diferentes corporações que se apoderaram da máquina pública.

Tome-se como exemplo, sem prejuízo de inúmeros outros, a classe política dominante, sempre ressalvando as louváveis exceções.

A atividade política tem sido um sonho para muitos. Isso se deve, em grande parte, ao acúmulo de benefícios e regalias que esse mundo proporciona, sem falar do fascínio que o poder desperta nas pessoas em geral.

A forma como os donos dos partidos fazem suas articulações e empregam recursos públicos praticamente infindáveis, bem atesta essa realidade.4

Para muitos, chegar ou permanecer na vida política é uma questão de sobrevivência, já que em raras atividades poderiam manter um status semelhante.

Isso faz com que as regras que ditam os sistemas eleitoral e partidário sejam moldadas justamente para privilegiar os que lá estão ou, ainda, aqueles que têm fortes conexões com o poder.

Esse é o motivo pelo qual a legislação eleitoral vem sendo alvo de tantas modificações casuísticas nos últimos tempos.

No lugar de reformas estruturantes, que poderiam depurar o sistema, introduzem-se costuras que estão longe de resolver os verdadeiros problemas.

Essas costuras acabam por originar uma representação política que, de forma geral, coloca os seus interesses pessoais em primeiro lugar, afastando-se das necessidades básicas da população.

É interessante observar que, desde o advento da CF/88, vale dizer, a partir da redemocratização, o Congresso Nacional aprovou e revogou inúmeras regras eleitorais.

São tantas idas e vindas que fica difícil, até mesmo para os juristas, especialistas no assunto, acompanhar tamanhas modificações. Imagine-se a dificuldade para o eleitor, principal interessado, em compreender tudo que lhe é empurrado.

Veja-se, por exemplo, as diferentes regras relativas às coligações nas eleições majoritárias e proporcionais, cláusula de barreira, publicidade, fidelidade e financiamento partidários.

O que vale para uma eleição dificilmente se perpetua. Na visão política preponderante, o que funciona agora não se mostra viável para o futuro.

Ora se prioriza a necessidade de uniformização das regras, em território nacional, ora se cede às chamadas peculiaridades regionais.

Normalmente, empregam-se as eleições municipais como laboratório. Os candidatos a Prefeitos e Vereadores testam as mudanças, que, frequentemente, são revogadas nas chamadas eleições gerais, como a que ocorrerá em 2022, já que nessas o círculo de poder é mais expressivo.

O quadro se agrava à medida que muitas inovações são judicializadas perante o STF, inclusive antes de serem testadas, passando o tribunal a decidir sobre assuntos relativos ao regramento eleitoral.

É o caso, por exemplo, das federações partidárias,5 uma nova regra que, ao que tudo indica, visa a burlar a proibição de coligações nas eleições proporcionais e as restrições relativas à observância da atual cláusula de barreira, favorecendo a manutenção de partidos pouco expressivos, cujo tema analisarei em nova oportunidade.

Por vezes, o resultado é negativo, como no caso da decisão do STF que julgou inconstitucional a chamada cláusula de barreira, no ano de 2006.

A intervenção do STF, que em juízo de posterior reflexão foi considerada indevida por ministros do tribunal,6 gerou uma proliferação exacerbada de partidos políticos no Brasil, inclusive com representação no Congresso Nacional.

O resultado foi o agravamento da crise política, considerando que um número exagerado de agremiações partidárias não contribui para governabilidade, tampouco para o bom andamento da dimensão processual da democracia.

Além disso, a proliferação partidária gera inegável prejuízo para as contas públicas, levando-se em conta o montante dos fundos eleitoral e partidário empregados para a manutenção e custeio dessas entidades.

Se poderia também ponderar que a decisão do STF, que julgou inconstitucional qualquer forma de financiamento empresarial de campanhas eleitorais, contribuiu para a inflação dos respectivos fundos.

Discutir a forma de financiamento, antes da discussão do melhor sistema eleitoral, parece um evidente engano.

Por vezes, intervenções do STF em matéria eleitoral são necessárias, a depender do assunto em tela. Entretanto, não raro, geram efeitos indesejáveis, motivo pelo qual a autocontenção deve ser o norte.

O que se verifica no modelo de democracia vigente no País, em termos de regramento eleitoral, é uma instabilidade de natureza político-jurídica constante.

O ideal seria que o Congresso Nacional se aproximasse mais da população, algo que, nos tempos atuais, mostra-se improvável.

Somente uma reforma profunda nos sistemas eleitoral e partidário poderá gerar uma representação polícia mais consciente, quanto às reais necessidades da população.7

Enquanto tais reformas não vêm, seguimos sobrevivendo, como dá, a tantas idas e vindas na legislação eleitoral, que por vezes melhoram em um ponto ou outro, por outras impõem verdadeiros retrocessos.

Não é engano sustentar que as regras eleitorais vigentes, em seu núcleo estruturante, nos mantêm estagnados.

Holanda estava certo, quando explicou que seria um engano supor que as virtudes relativas ao homem cordial pudessem significar boas maneiras ou civilidade.

Elas estão muito mais próximas do que se costuma denominar de "jeitinho brasileiro".

O Congresso, à cada legislatura, vive de seus jeitinhos, um atrás do outro.

Jeitinhos como: votações relâmpagos em temas polêmicos, de matérias de interesse próprio dos Congressistas, na calada da noite, desapego aos ritos do processo legislativo, engavetamentos seletivos de matérias cruciais, formas não republicanas de repartição do orçamento público pela via de emendas etc.

Está mais do que na hora de o eleitor deixar de ser cordial frente aos que abusam da sua paciência.

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1 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 141.

2 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 145s.

3 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 146.

4 Disponível aqui.

5 Disponível aqui.

6 Disponível aqui.

7 Disponível aqui.