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Discurso e retórica

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Atualizado em 3 de fevereiro de 2022 19:12

Belos discursos, bem escritos e articulados, são sedutores e por vezes nos inspiram. Contudo, têm pouco impacto se isolados da realidade concreta.

Quando se convertem em pura retórica, a sua utilidade é praticamente nula.

O mês de fevereiro é marcado pela abertura dos anos legislativo e judiciário. Como de praxe, os presidentes dos respectivos poderes transmitem suas falas, recheadas de esperanças e metas.

Em comum, os discursos têm tom conciliatório, exaltam os valores democráticos e pluralistas, dentro do mais puro espírito republicano. São, em tese, irretocáveis.

Veja-se, por exemplo, o discurso de abertura dos trabalhos legislativos, proferido pelo Presidente da Câmara dos Deputados.1

Ele inicia com a afirmação de que "os membros dos três Poderes têm consciência do peso de suas atribuições e de suas responsabilidades perante o povo brasileiro."

Essa frase, por si só, revela um distanciamento inegável entre as palavras e a realidade.

Começando pelo Congresso Nacional.

Passados três anos da atual legislatura percebe-se, claramente, que o Poder Legislativo Federal está muito distante das prioridades do povo brasileiro.

De fato, a prioridade da maioria dos congressistas é assegurar a sua reeleição.2

Faltam verbas para as reais e mais prementes necessidades do povo, a começar pelo fortalecimento do SUS, da educação e da segurança pública.

Entretanto, para irrigar os fundos eleitoral e partidário, não faltam recursos. Afinal de contas, a máquina de reeleição não pode parar. Tudo sobre a lógica de que a manutenção da democracia não tem preço.

 O mesmo se diga para abastecer as polêmicas emendas parlamentares, que são um dos instrumentos mais hábeis a garantir a reeleição, em total desconformidade com os princípios constitucionais da administração pública.3

A aprovação das reformas estruturantes está longe de assumir a condição de pauta prioritária no Congresso Nacional.

Faltam, ainda, vontade e espírito republicano para aprovação de uma reforma política consistente, destinada a qualificar e a racionalizar o funcionamento das instituições democráticas. Essa, considerada a mãe das reformas, ano após ano, não consegue decolar.

O combate aos privilégios e regalias em todos os Poderes, custeados pelo contribuinte, foge, de igual forma, do radar do Poder Legislativo.

Tradicionalmente, o Congresso Nacional não consegue mover-se pautado por um sentimento mínimo de igualdade, republicanismo e moralidade, cedendo ano após ano às pressões de poderosas corporações, cuja articulação supera o fato de representarem minorias não apenas na população, como também no próprio serviço público.

Em ano eleitoral, os movimentos do Legislativo ficam praticamente paralisados, já que a prioridade, mais do que nunca, passa a ser a coordenação das campanhas eleitorais.

Portanto, é difícil acreditar que a manifestação proferida pelo presidente da Câmara dos Deputados, no sentido de que os parlamentares devam deixar os interesses políticos para o momento da eleição e focar o presente para aprovação das medidas que são necessárias para a população, aponte para algo que corresponda à realidade concreta dos fatos.

Do lado do discurso proferido pelo presidente da República, nos termos de mensagem enviada ao congresso,4 a realidade atropela, igualmente, as palavras.

A postura do governo no enfrentamento da pandemia, o abandono das pautas relativas às reformas estruturantes e de combate à corrupção, a aproximação com as velhas práticas de barganha dos centrões, bem como o constante tensionamento com os demais poderes e instituições, além de outros problemas, evidenciam que as palavras constantes da mensagem presidencial soam como um discurso vazio.

Por sua vez, o discurso proferido pelo presidente do STF segue a mesma linha. Em pronunciamento alusivo à abertura do ano judiciário5 exaltou a necessidade de combater a polarização em ano eleitoral, bem como de defesa da democracia, primando pela estabilidade institucional.6

Por sua vez, por ocasião da sessão solene de abertura da 4ª sessão legislativa, afirmou, ao lado dos chefes dos demais poderes, que o Poder Judiciário se reinventou durante a pandemia.7

Essa reinvenção pode ser interpretada de várias maneiras. Todavia, é inegável que o Poder Judiciário, na senda dos demais poderes de República, carece de reformas estruturais para que cumpra, de forma eficaz, a sua missão constitucional.

Essas reformas passam por medidas concretas que diminuam a morosidade da justiça e a tornem mais acessível aos cidadãos comuns.

É bem verdade que a legislação processual vigente dificulta a razoável duração do processo.

Sem embargo, grande parte dos problemas também se deve a gargalos de organização interna, que passam por longos períodos de recesso, férias, falta de investimento estrutural, sobretudo em digitalização e padronização de procedimentos.

A pandemia agravou, consideravelmente, a morosidade processual. Em particular, as instâncias que não investiram em digitalização geraram um contingenciamento de processos cuja repercussão para as partes e advogados é praticamente incalculável.

Não é exagerado falar que a pandemia praticamente paralisou a atuação do Poder Judiciário em determinadas regiões do país, fazendo com que muitos direitos perecessem por força da doença.

Para além dos contingenciamentos impostos pela pandemia, há muito se percebe que o Judiciário ainda é inacessível a grande parte dos cidadãos, sobretudo em sede de tribunais superiores, cujas grandes causas costumam ficar a cargo de advogados que atuam a serviço de uma elite econômica.

Da mesma forma, os órgãos de cúpula do Poder Judiciário deveriam refletir para verificar em que medida a sua atuação vem contribuindo para manter uma sensação perene de impunidade no país.

Processos que são feitos para jamais encerrarem, nos quais filigranas jurídicas muitas vezes assumem destaque em relação ao mérito dos feitos, fazem com que a certeza mais próxima seja a prescrição.

A dificuldade de punir criminosos poderosos por crimes de corrupção, cujos efeitos são extremamente prejudiciais à ordem econômica e social, faz com que o Poder Judiciário alimente um sentimento de descrédito das instituições jurídicas perante os jurisdicionados.

Por fim, a verdadeira reinvenção do Poder Judiciário também passaria pelo corte de privilégios em determinados setores das carreiras jurídicas, que fazem com que a tarefa de promover a justiça seja algo de difícil compreensão pela população.

Em resumo, a sensação é que os poderes da República e o estado de direito não andam atuando na mesma frequência. O quadro é uma das definições do que se costuma denominar de estado de coisas inconstitucional.

Todas essas questões, trazidas à reflexão de forma exemplificativa, servem para demonstrar que meros discursos não mudam a realidade.

Somente instituições bem equilibradas e pautadas pela racionalidade podem fazê-lo.

O caminho para o aprimoramento institucional passa, necessariamente, pela conscientização do povo brasileiro quanto ao seu papel no fundamento de exercício da democracia, que é a cidadania ativa.

Quanto mais a população se omitir de seus deveres cívicos, vale dizer, se afastar do seu dever de eleger pessoas realmente comprometidas com as necessidades gerais que dizem respeito ao bem comum, mais perto estaremos de ouvir belos discursos, que muito se afastam da realidade.

A mudança começa por um sentimento de indignação com a realidade, que, por sua vez, atrai um sentimento de responsabilidade cidadã.

O conformismo deve ceder lugar à atitude de cobrança, dentro dos limites impostos pela democracia e civilidade.

As eleições que ora se aproximam são a mais autêntica oportunidade de modificar o estado atual das coisas.

Tratá-las com indiferença, por sua vez, é a mais rápida oportunidade para deixar as coisas como estão. Para quem se contenta apenas com belos discursos, isso basta.

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1 Disponível aqui.

2 Dispnível aqui.

3 Disponível aqui.

4 Disponível aqui.

5 Disponível aqui.

6 Disponível aqui.

7 Disponível aqui.