125 emendas constitucionais: ainda possuímos uma Constituição rígida?
sexta-feira, 22 de julho de 2022
Atualizado em 28 de julho de 2022 08:30
Ao atingir a marca de 125 emendas constitucionais, é possível afirmar que ainda possuímos uma Constituição rígida?
A doutrina costuma enquadrar a CF/88 como rígida, por exigir um procedimento dificultoso de alteração, em relação ao que se mostra necessário para alteração das leis infraconstitucionais.
Em pensamento clássico, Pinto Ferreira afirmava que a supremacia da constituição decorre do seu caráter rígido, considerada como "pedra angular em que assenta o edifício do moderno direito político"1.
O ponto diz respeito às limitações procedimentais ao poder de reforma da Constituição.
Pelas regras vigentes, a Constituição somente poderá ser emendada por meio de quatro votações, duas na Câmara dos Deputados, duas no Senado, exigindo-se em todas aprovação por pelo menos três quintos dos respectivos membros (art. 60, § 2º CF/88).
Aparentemente, trata-se de exigência que confirma o caráter rígido da lei Maior. Contudo, a prática não confirma esta realidade.
O primeiro semestre da sessão legislativa de 2022 bateu o recorde de alterações na Constituição, em um único ano.
Até o início do recesso parlamentar de inverno (julho de 2022) foram aprovadas onze emendas constitucionais.
O cardápio das EC aprovadas no primeiro semestre de 2022 é amplo2 e evidencia que o processo de alteração da Constituição está banalizado.
O Congresso Nacional chegou à proeza de promulgar três emendas constitucionais em um único dia (EC 123, 124 e 125).
Algumas são votadas e aprovadas de forma relâmpago e, por vezes, na calada da noite.
Esta forma de alterar a Constituição, de afogadilho, independentemente de maior debate ou reflexão, é preocupante e revela como o princípio da rigidez constitucional encontra-se ameaçado no Brasil.
O Estado democrático de direito encontra seu fundamento na legitimidade de uma Constituição rígida, dotada de supremacia3.
A ideia de um procedimento diferenciado para aprovação das emendas deriva da necessidade de cautela no momento de promover alterações na Constituição.
Visa a garantir a permanência da identidade da lei maior, que define a conformação essencial do Estado.
Quando se percebe a facilidade com que são aprovadas emendas constitucionais no Congresso Nacional, fica claro que essa cautela não mais se verifica.
As sucessivas alterações da Constituição seguem a lógica da conveniência e oportunidade políticas. Os debates costumam ser esvaziados e pouco transparentes.
Os ritos são constantemente atropelados por meio de manobras regimentais. A regra das duas votações em cada casa legislativa não adota um lapso temporal mínimo para o amadurecimento das ideias. A estratégia é a pressa.
Ao exigir duas votações em cada casa legislativa para aprovação de uma emenda, a Constituição parte de uma constatação evidente: a necessidade de um consenso amadurecido sobre os respectivos temas.
A aprovação relâmpago de emendas constitucionais vai em direção oposta, ignorando que a limitação do poder decorre de sua sujeição irrestrita à Constituição4.
Quando a Constituição passa a ser sistematicamente alterada, de forma descompromissada, sem o devido debate, abre-se caminho para um processo de erosão da identidade constitucional de uma nação.
Além disto, a prática reforça o caráter analítico do texto constitucional.
Esta é outra questão, típica da realidade constitucional brasileira, cuja análise não pode ser deixada de lado.
O elevado número de emendas está diretamente relacionado à natureza prolixa da Constituição. O problema é que a opção por uma Constituição analítica está longe de ser a mais acertada.
Ela favorece um sentimento de banalização constitucional, à medida que matérias importantes passam a dividir espaço na Constituição com outras, que não detêm natureza constitucional propriamente dita.
Na prática, quanto mais analítico for o texto da Constituição, maior será o número de emendas que enfrentará.
Uma Constituição analítica não se limita a se ocupar dos direitos fundamentais, da organização estatal e do estabelecimento das linhas basilares para a atuação dos poderes públicos.
Pelo contrário, ingressa em detalhes, que poderiam estar devidamente albergados pela legislação infraconstitucional.
Como os detalhes são mais suscetíveis a alterações no decorrer do tempo, nenhuma Constituição analítica costuma sobreviver sem um número considerável de emendas.
Na realidade brasileira, a questão atingiu contornos desproporcionais, originando a máxima de que a nossa lei maior é uma "colcha de retalhos".
Um equívoco que normalmente se comete é confundir a relevância de um tema com a necessidade de sua constitucionalização.
Deve ficar claro que nem todo tema juridicamente relevante merece o status de norma constitucional.
A hierarquia constitucional não decorre apenas e tão somente da relevância da matéria jurídica.
Se o critério fosse apenas o de relevância, boa parte das regulamentações do CC/02, por exemplo, deveria ser transportada para o plano constitucional, o que não é de se cogitar.
A questão está na vocação normativa.
Existem matérias que estão vocacionadas, por sua natureza, ao ideal de garantia de direitos fundamentais e aos elementos básicos da configuração estatal. Outras não.
As constituições prolixas, como a brasileira, chamam ao debate a questão de que nem tudo que está no texto constitucional mereceria, em rigor, a dignidade formal da Constituição5.
O problema é que toda matéria, quando formalmente inserida na Constituição, passa a gozar do status de norma constitucional, passando a se sujeitar às limitações impostas à manifestação do poder constituinte derivado.
Ou seja, para serem alteradas, dependem da aprovação de emendas constitucionais.
Além disso, o excesso de constitucionalização deturpa, de certo modo, a própria democracia, pelo fato de retirar da deliberação ordinária do poder legislativo uma série de assuntos, que lá poderiam estar bem acomodados.
A análise de quais matérias deveriam estar presentes na Constituição esbarra na dificuldade de que não existem critérios seguros capazes de permitir, em todos os casos, a distinção entre o que é verdadeiramente constitucional e o que não é6.
É inegável a existência de um elemento de tensão entre a rigidez e a elasticidade da ordem constitucional7. Está em jogo a preservação da substância, expressa pela manutenção da identidade da Constituição8.
Todavia, uma certa flexibilidade é a chave para uma interpretação do sistema que assegure o equilíbrio9.
Isso porque se por um lado não se deve exagerar nas alterações, sobretudo as que são aprovadas de forma irrefletida, por outro, há a necessidade de se manter a Constituição aberta ao tempo.
A elasticidade é que possibilita a superação de uma grande diversidade de situações problemáticas, que se transformam ao longo da história, adaptando a ordem constitucional às mudanças advindas da evolução e do desenvolvimento10.
Esta realidade não nega que uma das distinções do campo de atuação dos poderes constituintes originário e derivado reside na constatação de que o último - que promove as emendas - atua como um poder apoiado pela Constituição (verfassungsgestützter Gewalt)11.
Porém, quando se passa a modificar o texto constitucional com uma facilidade cada vez maior, suprimindo o debate democrático, passa-se a adentrar em um terreno perigoso, que considera a Constituição uma mera formalidade.
Nesta hipótese, o poder constituinte derivado deixa de se manifestar apoiado pela Constituição, passando a atuar como um poder desvinculado.
De fato, a seguir assim, deixaremos de ter uma constituição rígida, se é que ainda possuímos uma.
O tema abre o debate para a necessidade de um enxugamento das matérias constitucionais, que aposte na qualidade e não na quantidade.
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1 PINTO FERREIRA, Luiz. Princípios Gerais do Direito Constitucional Moderno. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1983, p. 90.
2 Direito fundamental à proteção de dados pessoais, imunidade de IPTU em favor de templos religiosos, regras para promoção da participação política das mulheres, autorização de emprego de radioisótopos para pesquisa e uso médicos, mitigação dos critérios de responsabilidade fiscal dos entes federativos, política remuneratória em favor dos agentes comunitários de saúde, regime especial das zonas francas, elevação da idade máxima para a nomeação de magistrados em tribunais, reconhecimento do estado de emergência decorrente da elevação extraordinária e imprevisível dos preços do petróleo, instituição do piso salarial das carreiras de enfermagem e, finalmente, demonstração da relevância das questões de direito federal como critério de admissão de recursos especiais junto ao STJ.
3 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37 ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 124.
4 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Princípios Fundamentais do Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 116.
5 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6.ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1.125s.
6 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6.ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1.126.
7 HERDEGEN, Matthias. Grundgesetz Kommentar (Art. 79 GG). In: DÜRIG, Günter; HERZOG, Roman; SCHOLZ, Rupert et. al. Grundgesetz Kommentar. München: Beck online. 96 EL. November 2021, Rdn. 62.
8 KIRCHHOF, Paul. Die Identität der Verfassung. In: Isensee, Josef; Kirchhof, Paul. (Hrsg.). Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik Deutschland (HStR). 3, völlig neub. und erw. Auf. Heidelberg: Müller, Band II, 2004, § 21, Rdn. 1ss.
9 HERDEGEN, Matthias. Grundgesetz Kommentar (Art. 79 GG). In: DÜRIG, Günter; HERZOG, Roman; SCHOLZ, Rupert et. al. Grundgesetz Kommentar. München: Beck online. 96 EL. November 2021, Rdn. 62.
10 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auflage. Heidelberg: Müller, 1999, Rdnr. 23 e 36ss.
11 HERDEGEN, Matthias. Grundgesetz Kommentar (Art. 79 GG). In: DÜRIG, Günter; HERZOG, Roman; SCHOLZ, Rupert et. al. Grundgesetz Kommentar. München: Beck online. 96 EL. November 2021, Rdn. 74.