A devastação, a humildade e a sabedoria
terça-feira, 22 de dezembro de 2020
Atualizado às 09:23
"E vou mostrar-te uma coisa bem diversa
De tua sombra de manhã a correr atrás de ti
Ou de tua sombra à tarde a se erguer ao teu encontro;
Vou mostrar-te o medo num punhado de pó." (Terra Devastada - T.S. Eliot)
Escrever sobre 2020 causa a sensação íntima de que estamos desprovidos de ideias e pensamentos diante de um papel em branco, tanto é o ineditismo do que vivemos e, ao que se pode ver, ainda viveremos.
De fato, o vírus marcado por uma coroa, não conformado com sua própria virulência, não quis apenas reinar: fez-se imperador do mundo.
O coronavírus, queiram ou não os políticos, intelectuais e cientistas, demonstrou que a humanidade necessita de mais humildade e compaixão, empática e coletiva.
O que de fato aprendemos em matéria de política e economia ultrapassou as fórmulas áridas e consagradas em tempos não tão idos.
Os governos e os mercadores das finanças aprenderam que déficit público per se não é causa de inflação ou colapso de crédito, quando combinado com um ambiente de recessão e desagregação dos fatores de produção. Ou seja, a ciência econômica não pode e não deve ser dogmatizada porquanto ciência social (e humana) que é. Todavia, não faltam tentativas de escravizar a economia em modelos fechados.
Da mesma forma, as sociedades aprenderam que a taxa de juros, mesmo que negativa em termos reais (descontada a inflação) é ineficaz e inútil diante de perspectivas não apenas incertas, mas sobretudo diante da possibilidade de que a produção possa adentrar a um cenário disruptivo. Nesse 2020, os bancos centrais, de uma forma geral, se apequenaram perante uma realidade inexistente por um século. Os relatórios das autoridades monetárias se tornaram inúteis diante das possibilidades materiais e factuais da economia. Os relatos médicos foram melhores referências de estudo.
Também foi tempo de descobrir que o vírus inoculou aqueles descrentes no Estado. Não fosse a finança pública e os instrumentos estatais, a comemorada "economia de mercado" teria entrado no inferno dantesco. Os tais dos liberais da economia podem até vocalizar os seus dogmas, mesmo que inúteis, mas a sobrevivência dos privados tem sido garantida com o dinheiro dos erários. Os ministros das fazendas apelaram para os gastos excessivos para salvar, em primeiro lugar, as empresas e os mais ricos. De resto, as sobras dos argumentos têm natureza ideológica e distante da mais viril realidade.
Também desmoronou por terra a ideia de que é possível que as nações prevalecentes possam agir como se fossem únicas na Terra. Pudemos ver nações ricas construírem containers nas portas dos hospitais para acumularem os cadáveres que sequer puderam ser atendidos nos hospitais. Ademais, os sistemas de saúde não resistiram às pretensões de que estavam asseguradas pelos seus participantes ou pelos seus mantenedores. O colapso evidenciou que "PIB de primeiro mundo" não é garantia para que países ricos possam se sentir insulados da miséria que prevalece na maioria dos povos do globo.
Impressionou ainda em 2020 que o populismo político pudesse ainda mostrar os seus dentes. A grosseria de suas ideias, a recusa em aceitar a ciência como uma das saídas dessa pandemia maldita, as demonstrações públicas de líderes contra as normas sanitárias mais básicas e o distanciamento social cravado por máscaras de proteção simbolizam o quanto pode ser cruel a prática política e seus praticantes. Por vezes, ficou claro que a coragem dos populistas deve ter raízes fortalecidas na sua própria ignorância.
Joe Biden se constitui, a despeito de sua própria vontade ou história, em renovada esperança. Fosse o outro, o vencedor do pleito na América, o mau exemplo daquele ser ainda propagaria muita maldade e muita assombração à humanidade. E aqui vale dizer que a existência de considerável séquito a certos líderes não retira a necessidade de que se encontre uma saída honrosa para a política. Não precisamos ler a teoria do conhecimento de Bertrand Russel para aprendermos que o que vimos nos Estados Unidos pode ser o caminho para que aprendamos aqui que o populismo é manifestação paradigmática da bestialidade política.
A pandemia também nos abriu os olhos para a necessidade de uma ética em relação ao meio ambiente. Não haverá sobrevivência neste Planeta Azul se não houver consciência coletiva e individual de que moramos na mesma casa e dela temos de prestar cuidados. A economia da quarta e quinta geração necessita da inclusão dos consolidados valores éticos da solidariedade e do respeito mútuo. Senão, não haverá preservação.
O financismo que impera nos mercados financeiro e de capital permanece como o risco mais perigoso para a estabilidade econômica mundial. Os preços dos ativos nos píncaros é sinal dos excessos em relação à concentração da riqueza, dos imóveis às obras de arte, e evidência da pouca valorização do investimento que gera novos bens. A produtividade permanece em queda há mais de três décadas em quase todas as economias ocidentais. Somente a China guarda para si um desempenho notável, mas geopoliticamente obscuro em termos da estabilidade do cenário mundial.
O ano de 2021 será, por certo, o ano da vacina. Embora não se saiba todos os efeitos dessa esperança redentora, aprendemos que a cura se tornou uma necessidade cognoscível, mesmo que os seres, sobretudo os líderes, ainda não sejam plenamente cognoscentes. As previsões estão muito dependentes da aplicação desse remédio. Se o império desse maldito vírus declinar e, por fim, tombar, a humanidade, a economia e a política têm a chance concreta de seguir em frente. Resta saber se a humildade exigida nessa hora terá se sedimentado como sabedoria. Feliz 2021.