Não pode haver progresso e desenvolvimento sustentado
sem paz calcada nos sustentáculos da democracia.
No magnífico livro "Como as democracias morrem" (2017), dos professores de ciência política da Universidade de Harvard Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, no capítulo 3 "A grande abdicação republicana" encontramos uma construção sobre os quatro indicadores de comportamento autoritário. São eles, segundo esse estudo: (i) "rejeição das regras democráticas do jogo (ou compromisso débil com elas)", (ii) "negação dos oponentes políticos", (iii) "tolerância ou encorajamento à violência" e (iv) "propensão a restringir liberdade civis de oponentes, inclusive à mídia".
A reunião ministerial do ex-capitão que lidera o Poder Executivo brasileiro, no dia 22/4/2020 escancara, descortina de forma real, todos os elementos da essência desse governo. Vejamos algumas poucas e literais transcrições daquela reunião, confrontando com os indicadores de Levitsky e Ziblatt. (Perdoem-me o uso da linguagem presidencial. É chula e grotesca).
Sobre a "rejeição das regras democráticas do jogo (ou compromisso débil com elas)": Eu tô vendo o mais antigo aqui, o General Heleno aqui. Ele sabe o que é meia, o que foi meia quatro. Muitos aqui não sabem. Essa cambada que tentou chegar no poder em meia quatro, se . se tivesse chegado, a gente tava fodido todo mundo aqui. Cortando . ia tá felicíssimo se tivesse cortando cana, ganhando vinte dólar por mês. Não pode esquecer disso. Nós não podemos esquecer o que é esse povo (...)".
Sobre a "negação dos oponentes políticos": "O que esses caras fizeram com o vírus. Esse bosta desse governador de São Paulo, esse estrume do Rio de Janeiro, entre outros, é exatamente isso".
Sobre a "tolerância ou encorajamento à violência": No meu governo tá errado! É escancarar a questão do armamento aqui. Eu quero todo mundo armado! Que povo armado jamais será escravizado. E que cada um faça, exerça o teu papel.
Sobre a "propensão a restringir liberdade civis de oponentes, inclusive à mídia": "Pera um pouquinho, dá licença um pouquinho. A questão da imprensa. Eu acho que eu resumi hoje na frente do palácio em vinte segundos: "Eu não vou falar com vocês, porque vocês não deturpam, vocês inventam, e potencializam". Tem que ser o papel de cada um, não pode um sair daqui no cantinho "A, foi mais ou menos isso", não pode falar nada. Tem que ignorar esses caras, cem por cento. Senão a gente não, não vai para frente".
Como se pode verificar nesses poucos exemplos, vislumbramos o todo. Todavia, não é apenas isso. Vejamos o Ministro da Economia Paulo Guedes em plena ação, livre e solta: "Ô presidente, esses valores e esses princípios e o alerta aí do Weintraub é válido também, como seu . sua evocação é que realmente nós estamos todos aqui por esses valores. Nós tamos aqui por esses valores. Nós não podemos nos esquecer disso. Nós podemos conversar com todo mundo aqui, porque é o establishment, é porque nós precisamos dele pra aprovar coisa, mas nós sabemos que nós somos diferentes. Nós temos noção que nós somos diferentes deles (...). Vale mencionar que essa fala de Paulo Guedes segue as bravatas do messias sobre "armar o povo", bem como, a "erudita" digressão do Ministro da Educação Abraham Weintraub sobre "prender os bandidos do STF".
Um dos mais brilhantes juristas alemães do século XX foi Carl Schmitt. Intelectual de porte, Schmitt rivalizou com Hans Kelsen em certa época acerca da "guarda da Constituição". Em sua obra "O Guardião da Constituição" (Der Hüter der Verfassung), Schmitt caiu na tentação intelectual de minimizar o papel do "Tribunal Constitucional" enquanto guardião da Constituição de Weimar e valorizar, provavelmente por conclusão intelectual própria, que o Presidente da República seria melhor guardião da Constituição porquanto ele era mais "político". Schmitt não relutou em afirmar que o leimotiv dessa visão: a Constituição era para ele um diploma político e não essencialmente jurídico, mesmo que tratasse de direitos e deveres com efeitos claros e evidentes de natureza jurídica. Caberia ao Executivo a guarda da Constituição. Em 1933, Carl Schmitt ingressa no Partido Nazista e nele permanece até o fim da guerra em 1945. Nesse período a Constituição de Weimar não foi oficialmente revogada, mas o Tribunal Constitucional não interpretava e guardava a Constituição. Esse era o papel do Führer Adolf Hitler. Todos sabem aonde foi a Alemanha. Schmitt tornou-se um jurista esquecido, muito embora fosse brilhante e suas ideias, paradoxalmente, jamais tenham sido aceitas completamente pelos nazistas.
A adesão às ideias reacionárias é sempre um perigo atroz, muito embora se deva reconhecer que a tentação para tal, muitas vezes não é pequena, especialmente quando se defronta com o "outro", "o diferente", "o contraditório", "o oponente" e assim vai. Ocorre que essa adesão é, usualmente, realizada sem reflexão e por meio da passividade que justifica a ilusão de que "as coisas melhorem". Na Alemanha nazista muitos intelectuais e membros da elite, dentre tantos, se somaram ao "cabo Hitler", um populista que usou das armas, via suas milícias de assalto (as SA, comandada por Ernst Röhm, assassinado em 1934 pelo próprio Hitler), fechou o parlamento (Reichstag), censurou a imprensa, impôs uma "revolução cultural e de valores" (pangermanismo e antissemitismo) e restringiu a liberdade individual e civil.
Vale salientar que Adolf Hitler, antes do desastre final, foi excelente para o "mercado" e para os "capitalistas". Hjalmar Schacht, Ministro da Economia de Hitler e membro honorário do Partido Nazista, foi o "garante de Hitler" perante a burguesia alemã. Promoveu grandes obras, fez reformas financeiras e monetárias que controlaram a hiperinflação e transferiu para os capitalistas alemães muitos bens e demandas para a "máquina de guerra" do cabo Hitler. O "tal do mercado" adorava Schacht. Grave devaneio.
A história não se repete vez que os fatos são outros, os contextos e as variáveis. Todavia, certos valores, sobretudo aqueles que ligam a civilização à liberdade, ao progresso e ao desenvolvimento integral da economia e dos seres humanos, permanecem como basílicas da democracia. A transigência com os fundamentos dos valores sócio-políticos mais caros é erro grosseiro. Ademais, a separação entre "política" e "economia" é equívoco primário. Não pode haver progresso e desenvolvimento sustentado sem paz social calcada nos sustentáculos da democracia. Ninguém está a salvo de um reacionário ou ditador.
Há quem não queira encontrar naquela reunião do governo do capitão os fatos e atos que identificam os ingredientes e os indicadores antecedentes da "morte da democracia". A tertúlia ministerial foi gravíssima. Não há como minimizar.
Para não deixar que a democracia se esvaia como a vida de muitos doentes desse vírus maldito, o covid-19, será necessária muita ação política. É preciso que se retire do atual presidente o virtual monopólio da atividade política. É preciso que os democratas se mobilizem, que protestem, que inviabilizem os planos desse governo. Não se pode capitular perante a tentativa de cercear a liberdade, de singrar os mares da ruptura política e, estimular a violência via os meios de comunicação tradicionais e virtuais e o armamento do povo. Trata-se de completa insanidade. Os eventuais defeitos de nossa democracia brasileira, e esses são muitos, não podem justificar a palidez, a flacidez e a passividade diante do que está diante de nossos sentidos. Não pode haver oposição à democracia e à liberdade, bem como, às instituições democráticas. Os políticos precisam se unir em torno de princípios básicos e extirpar, sem tergiversações ou piedade, o que atenta contra os nossos valores. Na paráfrase de Mario Vargas Llosa, é "preciso que a realidade não nos empobreça e que não comprovemos que somos menos do que sonhamos".