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O maior risco do momento

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Atualizado às 09:37

A ideologia falsamente libertária que prevalece se soma ao novo paradigma tecnológico 

No último artigo que escrevi ("Olhai os espinhos do mundo"), elenquei uma série de observações sobre o desenvolvimento dos fatos que estrutural e conjunturalmente podem afetar as economias e os mercados. Aquele artigo não teve a pretensão de exaurir analiticamente o que abordou. Foi tão-somente um exercício. Todavia, a importante conclusão que propus à reflexão foi que a capacidade de se elaborar previsões está bastante diminuta, diante dos riscos atuais.

Aqui prossigo na exploração dos fatos e processos que, de forma curiosa e inquietante estão a prevalecer no capitalismo atual. Vejamos.

O visível declínio da forma de gestão (e criação de valor) baseada na produção e no crescimento orgânico das empresas, forma que prevaleceu até meados dos anos 80, deu lugar à obtenção de resultados e valorização de ativos por meio de "transações", notadamente as cisões e fusões corporativas, bem como, por meio de crescente uso de instrumentos do mercado de capital e de derivativos, processo esse intensificado a partir do novo milênio. Poderíamos dizer que o foco dos gestores das corporações se deslocou da empresa em si para a sua "representação" no mercado. Com efeito, o valor de mercado passou a ser mais relevante que o "valor intrínseco" do negócio, dois valores que deveriam ser compatíveis entre si, mas a realidade concreta aponta que há excesso de goodwill, valores intangíveis nas empresas.

A crise de 2008, fato muito especial desde a crise de 1929, demonstrou que essa visão sobre as empresas e os negócios (i) prosperou em frágil ambiente regulatório (que foi essencial para superar os estragos pós-1929) e (ii) que foram os bancos que iniciaram a crise por causa dos ativos (das próprias empresas) que tinham em seus balanços ou que lançaram no mercado.

Depois do terremoto de 2008, cujas consequências foram minoradas pela atuação dos Estados (bancos centrais e erários) das economias relevantes do capitalismo, a regulação permaneceu frágil e ideologicamente démodé. Antes de 1929 os administradores de muitas empresas europeias e norte-americanas praticavam, com certa liberdade, falcatruas corporativas para obter "resultados". A regulação pós-crise, sobretudo no pós-II Guerra, permitiu que ajustes de largos efeitos estruturais fossem construídos para que o desenvolvimento capitalista prosseguisse.

Do ponto de vista sócio-político, o incremento da regulação no mundo capitalista pós-1929 também propiciou o aumento da participação das classes laborais no processo de acumulação de renda e no aumento do consumo, notadamente nos EUA. Politicamente, transformou a democracia e afastou a decepção com a democracia liberal que forjou duas guerras mundiais. A política foi salva pelo Estado do Bem-Estar Social.

No período pós-2008, a regulamentação dos mercados financeiro e de capital apresentou poucos progressos para se evitar colapsos como o do subprime. De fato, a condução dos 'negócios' (e não somente das 'empresas') permaneceu com regulação favorável aos detentores do "poder transacional": os banqueiros, os investidores, os gestores de ativos financeiros. As soluções de mercado para os negócios corporativos permaneceram semelhantes ao que acontecia desde os anos 1980s: a engenharia da produção foi trocada pela engenharia financeira.

Politicamente, essa realidade financista refletiu-se em processos eleitorais, dos poderes Executivos e Legislativos, cada vez mais marcados pela plutocracia. Foi revigorada a percepção anterior à I Guerra Mundial de que a democracia liberal é, de fato, a "democracia dos ricos". Na prática, o contrato social do Welfare State rompeu-se na sua essência vez que essa construção política não decorre da "ordem econômica", mas de uma "ordem jurídica-política" que corrige eventuais distorções no processo capitalista. No mundo atual, a "ordem jurídica-política" é vista como distorção ao postulado de que os mercados são eficientes e que a expansão do capitalismo financeiro implica na "popularização do capital" e na "retirada de milhões da pobreza". Ocorre que essa pregação, digamos, política-ideológica dos benefícios dos mercados eficientes, não encontra respaldo na observação dos indicadores econômicos: e.g. a renda per capita dos países capitalistas cresceu pouco desde os anos 1990s, nos EUA algo como 2%, menos que na "década perdida" dos anos 70 (+2,5%) e o dobro desde 1945. Outros indicadores sociais impressionam: os EUA têm hoje cerca de 13% de sua população ativa na pobreza (41 milhões), cuja expectativa de vida é declinante. (Dados do Banco Mundial e do Instituto Brookings)

Obviamente, a nem tudo no Welfare State foi perfeito: as melhorias econômicas e sociais propiciaram a criação de interesses e direitos pouco flexíveis para o desenvolvimento. Se a renda aumentou, também as distorções econômicas apareceram. Contudo, o que aqui se chama a atenção é que o resultado relativo e absoluto dessa construção é amplamente favorável à redução da desigualdade e ao crescimento econômico.

O cenário atual que revive a "liberdade dos mercados", trouxe de volta o populismo político e o agrupamento social de parcelas excluídas que desprezam os processos eleitorais, as instituições políticas e os próprios políticos. Lembra os anos 1920s e 1930s, de triste memória.

A ideologia falsamente libertária que hoje prevalece se soma ao novo paradigma tecnológico, recheado de conexões cybers que, em tese permitiria à maioria, inclusão social mais plena e capacitação mais eficiente (sem trocadilhos) para suportar as transformações econômicas e corporativas. A título de ilustração, a Internet das Coisas (IdC) que reúne bilhões de dados discretos ao sensor permite a tomada de decisões e o controle direto dos atores do mundo real, de geladeiras a prédios. Aqueles que dominarem os processos de coleta e análise de dados serão os detentores do poder da IdC. Os perdedores serão aqueles sem esse acesso e que não entendem a nova era. Não é difícil perceber se a maioria estará apta a se "apropriar" desse conhecimento. A desigualdade pode até aumentar. As derivadas políticas desse novo cenário não combinam com a presunção de que os "mercados" resolverão dilemas éticos, sociais e políticos.

O populismo político, a aversão às instituições políticas e a destruição da autoridade do Estado na consecução da "regulação" econômica são incompatíveis com o processo disruptivo que se apresenta. Se de um lado, o padrão coletivo das sociedades pode se elevar, de outro, é preciso evitar a acumulação de conhecimento e riqueza nas mãos de poucos, bem como, a precariedade das relações pessoais, inclusa as de trabalho. A liberalização dos mercados, fenômeno crescente desde os anos 80, se levado à cabo, produzirá uma hecatombe política na nova era tecnológica. Sem regulação que preserve valores, o ser humano e a isonomia de seus direitos, teremos o caos político e social. É o populismo do livre mercado o maior risco do momento.