Quem vota em Jair Bolsonaro
não pensa no futuro como perspectiva
Senão a principal característica dessa eleição, certamente está entre as mais corriqueiras: trata-se da utilização pelo eleitor das suas crenças pessoais ou das próprias emoções como forma de decidir sobre o próprio voto. Análise mais fria dos fatos mostra que somente nessa semana tivemos três sinais evidentes da barafunda brasileira: (i) os resultados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) que mostram que apenas 1,6% dos alunos do ensino médio tem aprendizagem adequada em português; (ii) o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil tem a década com o pior crescimento em 100 anos e (iii) o incêndio do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista expôs o descaso da nação com a sua própria história. Aqui não cabe tergiversação. Está claro e cristalino o caminho que toma o país.
Em meio a tudo isso temos um personagem que adorna a cena eleitoral e demonstra que não é exatamente a razão que guia o voto popular. Trata-se do capitão Jair Messias Bolsonaro que tem 22% das intenções de votos segundo o Instituto Datafolha e lidera a corrida eleitoral sem Lula (com Lula é 19%).
A questão inquietante é: por que um candidato como Bolsonaro conquista o coração do eleitor? Objetivamente sabemos que ele é parlamentar medíocre (2 projetos aprovados de 170 apresentados), político profissional (29 anos no parlamento!) que prega contra a própria política. Ataca virulentamente direitos fundamentais (das mulheres aos gays). Briga pelo voto quando defende a ditadura e um golpe de Estado (seu vice, General Mourão, já vociferou pela intervenção militar). Assume que sabe pouco sobre políticas públicas, de fato, terceiriza o próprio cérebro ("sobre economia quem decidirá é o Ministro da Fazenda"). Diz-se líder conservador, mas casou-se três vezes e tem dois filhos fora do casamento. Multiplicou o patrimônio ao longo dos anos em que atuou na política e tem três filhos eleitos pelo voto popular, apesar da defesa da ditadura militar (1964-1985). Nem nas forças armadas encontrou respeito, afinal atuou em detrimento da hierarquia na busca por melhores salários para a classe castrense.
Ora, pode-se levantar dados e mais dados nas pesquisas, mas a explicação para presença tão significativa de Bolsonaro nessa eleição não parece repousar em informações objetivas. Temos de refletir criticamente para além das pesquisas as quais pouco ensinam sobre o capitão.
Chega a ser repetitivo informar aqueles que estão preocupados com o Brasil que a aversão à política chegou aos limites mais elevados em toda a história do país. A admissão desse fato contrasta com o pouco que foi feito para mudar essa realidade. Aquela multidão que frequentou a avenida Paulista em meados de 2013 ficou por ali mesmo: quem alterou o padrão foi a política profissional de Brasília que fez uma reforma que concentrou o poder dos barões dentro dos partidos políticos e que resultará na manutenção do poder nas mãos dos mesmos. A Paulista se iludiu na crença de que podia mudar a realidade pelas redes sociais. A novidade que veio foi o velho, lá da Praça dos Três Poderes.
Se é verdade que certa maioria nada conseguiu, também é verdade que essa maioria aceita o jogo da minoria privilegiada que tomou conta do Estado e do governo. Tanto é assim que quem quer seja o próximo presidente seu poder será minúsculo perante o que se instalará no Congresso, representação do corporativismo, do poder econômico, das elites.
Bolsonaro é a figura que de forma paradoxal surge desse cenário: corre para ganhar as eleições (ação política que ilustra a democracia), mas não se submete aos padrões de análise objetiva e intelectual e muito menos aos ditames do que seria realmente importante ao país. O capitão nasce de certo princípio-geral das eleições vindouras: a destruição necessária para o "que está aí". Para ele não cabe nenhuma ambição particular sobre temas específicos. Ele pode fazer qualquer coisa, desde que destrua a classe política com a realização daquilo que hoje é apenas ameaça (seu discurso). Diante de tanta desonra e desesperança, o povo clama pelo capitão que reinará sobre as classes sociais e, especialmente, a política, para tirar da cena o que atrapalha a agenda de cada cidadão. Aqui um detalhe: mesmo que seja à bala, as coisas têm de mudar.
Vale notar que essa "esperança" do povo reside na convicção de que o capitão tem os meios para mudar a realidade vigente. Afinal de contas, seus "princípios" são tão legítimos que todos a eles aderirão, sem que haja necessidade do natural esforço de convencimento exigido pela política, ora rejeitada pelo povo. De forma mais direta: o povo conta com Bolsonaro para mudar a política e nada sabe sobre os meios para cumprir a tarefa.
Está evidente que essa equação aceita a antinomia pela qual o princípio adotado pelo eleitor de Bolsonaro ("é preciso mudar a política") contrasta diametralmente com a lógica da política ("negociar com os políticos para buscar resultados"). Saliente-se que, nesse sentido, Bolsonaro tem de ter o "poder total" para que se livre da impotência causada pela política. Se isso não ocorrer virá a frustação e Bolsonaro será identificado com aquilo que diz rejeitar: a turma de Brasília.
Temos de admitir, objetivamente, que dentro dos atuais limites e regras da democracia brasileira, nenhum governo prosperará com soluções compatíveis com a dimensão de nossos problemas, nem mesmo o capitão, se vier a ganhar. Logo, votar em Bolsonaro, figura que se consagra como o antipolítico, significa aceitar intrinsecamente que ele tem de ter condições objetivas para mudar o cenário.
Há, como decorrência da análise acima, dúvida severa: será que o que quase 1/4 do eleitorado espera ("a política sem os políticos") é compatível com o que deseja ("a manutenção da liberdade")? Hum....não estou certo. É possível que se aceite, diante do caos que se tornou a República, algum nível de perda de liberdade. Afinal de contas, o cidadão está tão oprimido pela violência, ausência de condições básicas para "ser feliz" ou, ainda, pela corrupção, que a redução da liberdade política não lhe pareça tão cara. Há probabilidade relevante que o poder de Bolsonaro, caso seja eleito, seja equacionado por meio da transmutação do "poder recebido do povo" em "poder concedido sobre o povo".
Por fim, quem vota em Jair Bolsonaro não pensa no futuro como perspectiva. O eleitor está preso ao passado de transtornos criados pela classe política e ao presente que demonstra que as opções de mudança pela via democrática são escassas ("os candidatos são ruins, sobretudo fracos"). Como se sabe, a política tem de ser depositária de planos e projetos. Em palavras outras, a política tem de estar calcada em esperança. Nesse caso, a escassez é evidente. Votar em Bolsonaro significa negar a liberdade como princípio e aceitar que a soberania do futuro presidente virá da destruição da política. A crença do eleitor pode aceitar essa premissa absurda. Estamos no fundo do poço.