O economista e estudioso da finança pública sob à óptica jurídica Bevenuto Griziotti (1884-1956), citado no artigo "A Benção de Hamilton na Semiperiferia: Ordem Econômico-Social e os Juros da Dívida Pública Interna" do Prof. Alessandro Octaviani, propôs a denominada "análise funcional do direito financeiro", pela qual o fenômeno (factual) financeiro fosse analisado em suas dimensões econômica, social, política e técnico-jurídica. Esta "análise funcional" tem o claro objetivo de atrair os valores que determinam a formação dos contratos na sociedade, bem como o próprio sistema normativo. Foge-se, assim, do formalismo jurídico pelo qual se observa as formalidades e a estrutura do denominado "negócio jurídico" para entender como estes se formam e, com efeito, se se ingressa no campo mais abrangente do fenômeno jurídico que projeta a sua validade perante o bem comum e os fins sociais da lei os quais, por sua vez, podem engendrar o abuso de direito e o desvio de finalidade.
No direito empresarial, em geral, e no direito societário, em particular, estes conceitos já estão incorporados e, ademais, já dispõem em larga medida de positivação. O abuso do poder de controle (Fábio Konder Comparato), a função social do contrato e da empresa já são sinais visíveis daquilo que Griziotti preconiza na sua teoria funcional do direito financeiro.
A subtração histórica e gradativa do império da forma e da estrutura adquire nova substância quando adentramos no campo da legitimidade política. Cria-se, por assim dizer, uma lógica intrínseca da norma pela qual o meio (norma) se adequa à sua finalidade, a qual se traduz em uma imposição jurídica igualmente legítima. Nesta diapasão "a vontade interna dos agentes" se vê limitada pelo ambiente externo (social), criando assim a "função jurídica" que acaba por guiar a norma e o contrato (entendido como norma entre as partes que o compõe). No âmbito do direito financeiro e da própria teoria econômica, esta construção se torna essencial de vez que passa pela investigação da necessidade e do interesse público e a própria atividade do Estado frente à norma jurídica. Note-se que quando referimo-nos à norma de direito financeiro neste caso, estamos a nos reportar ao orçamento público. Este não pode ser visto como mera imposição normativa para a ação do Estado e de seus agentes: à luz da visão de Grizotti, trata-se de uma norma que necessita ser "funcional" frente aos interesses públicos. Logo, analisar as rubricas do orçamento implicam não apenas vê-las como uma "regra", mas também se estas estão inseridas numa visão lógica, programática e funcional. Este aspecto é muito mais relevante em países subdesenvolvidos, caso do Brasil, de vez que a superação de sua condição depende da utilização dos instrumentos financeiros (muitos deles plenamente normatizados e codificados no direito financeiro). Pode-se inclusive verificar que na recente crise de 2008, nos EUA, a utilização funcional do orçamento, independente da dogmática regulamentar que o cercava, foi fundamental para que o Estado pudesse implementar políticas de suprimento de recursos para debelar a depressão econômica pós-débâcle. Ninguém ousou tergiversar sobre "quebras de regras" ou de "contratos" quando o Banco Central norte-americano e o Tesouro passaram a adotar planos de "salvação" por todos os lados, especialmente as instituições financeiras e o mercado de capital.
No que se refere ao subdesenvolvimento, este caracteriza-se, dentre outros aspectos, pela ausência de capacidade estatal de se autodeterminar em diversos campos (tecnológico, administrativo, financeiro), bem como pela gravosa disparidade de renda e condições sociais entre as classes. Para estes aspectos, a superação depende da formação e instalação de instituições políticas que permitam ao Estado a aquisição de instrumentos para formular e executar políticas e programas que possam livrar o país do subdesenvolvimento por meio de processos endógenos de desenvolvimento (e.g. o tecnológico). Note-se que tais processos e instituições tem por norte aquilo que foi pactuado na Constituição de 1988. Portanto, não estão dissociados, à solta, relativamente à previsão jurídica que, a partir desta visão, adquirem o caráter de normas de aplicação imediata sem os "retardos ideológicos" quanto à sua eficácia (se contida, imediata, etc.). Assim sendo, ao proclamar os objetivos nacionais, a Constituição não pode ser analisada apenas como um documento declaratório com vista a nortear normas futuras que lhe darão eficácia (final). A Constituição per se já determina o que tem de ser feito, pois está a tratar de objetivos cristalinos, programáticos, direcionadores. Algo próximo da pregação jurídica de Bevenuto Griziotti, na determinação da norma pela sua função, sem delongas formalistas que, de fato, se constituem em verdadeiros empecilhos para a superação do subdesenvolvimento brasileiro. Ademais, estamos distantes mais de vinte anos do vigor pleno da Constituição e ainda estamos a debater a sua eficácia. Soa mal, digamos.
Neste contexto, a questão do elevado e caríssimo custo da dívida interna brasileira merece reflexão, sobretudo, nestes tempos eleitorais que se aproximam.
Alexander Hamilton (1755-1804), como primeiro secretário do Tesouro norte-americano, utilizou com arte e sabedoria, a capacidade de endividamento do Estado para criar as condições materiais para a transformação econômica da América pós-independência e contra as anteriores políticas britânicas que norteavam a economia americana pela dependência e subdesenvolvimento. Ora, foi por causa desta evidente constatação que Hamilton via a questão do endividamento em consonância com os objetivos desenvolvimentistas da política econômica de superação histórica da América. Estruturou a regulamentação e o direito financeiro sob a guarda destes interesses maiores e nacionalista. Na visão marxista, este processo dizia respeito à "acumulação primitiva do capital", aspecto essencial que é o crédito público para a alavancagem do desenvolvimento capitalista. O orçamento público, por sua vez, é manejado para manter o crédito público não apenas viável, mas também organiza o sistema público de tal sorte este seja compatível com a solvência do sistema financeiro (o pagamento de juros e a rolagem da dívida) e, ao mesmo tempo, tenham o mesmo caráter funcional para o desenvolvimento capitalista - utilizar recursos financeiros presentes para o desenvolvimento imediato, sendo os seus pagamentos realizados no futuro, remunerados por uma determinada taxa de juros.
De modo geral, pode-se dizer, que as despesas com os juros da dívida interna são uma rubrica orçamentária que tem de ser compatível com todo o sistema de direito financeiro, no qual o orçamento é uma expressão maior. Não pode-se tratar esta questão como se estivesse separada de toda a lógica econômica e financeira, inclusa aí a questão da viabilização do subdesenvolvimento. Seria por demais equivocado, para dizer o mínimo, separar o joio do trigo apenas na questão dos juros frente a todas as demais despesas e investimentos públicos.
Ora, o Brasil é campeão mundial de taxa de juros e, por conseguinte, tem como maior despesa de seu orçamento o pagamento de juros de sua dívida interna. O orçamento da previdência social, da saúde e da educação estão muito abaixo do nível alcançado pela "orçamento da dívida pública" brasileira. Portanto, não se pode atribuir "apenas" à saúde, educação, previdência, segurança, etc. o excesso de gastos do Estado brasileiro. A sociedade tem de investigar as causas e os efeitos do excessivo endividamento público (50% do PIB), o qual é absolutamente incompatível com o tamanho da taxa de juros real praticada pelo país. Interessante que todos aqueles que estão empenhados em adequar o controle dos gastos estatais à uma "política", usualmente requerida para reduzir os gastos correntes não admitem o mesmo para a dívida pública interna. Seria isso um mero "truque ideológico"?
De fato, a questão da taxa de juros no Brasil precisa ser analisada tendo em vista toda a lógica funcional da política econômica, bem como dos artifícios normativos do direito financeiro que dela resultam. Senão, perde-se a oportunidade histórica de operar o crédito público com o objetivo de servir ao desenvolvimento, tal qual Hamilton fez na América (e não na URSS). Este debate não é apenas necessário, pode-se dizer seguramente. Ele é condição sine qua non para que exista uma reorganização financeira do Estado brasileiro com vistas ao desenvolvimento. Não é pouca coisa, como se pode ver.