IA e Poder Judiciário: Mudanças, diversidade e a nova resolução do Conselho Nacional de Justiça
quinta-feira, 6 de março de 2025
Atualizado em 5 de março de 2025 10:51
Quem sonha por Morfeu? (ou quem fiscaliza o Conselho Nacional de Justiça?)
Cabe à sociedade, e principalmente àqueles que concentram seus estudos e a atuação neste campo, acompanhar o trabalho das instituições. Essa dupla fiscalização, interna e externa, não se anula. Pelo contrário, elas se complementam. Ambos os campos, o de colaboradores do Conselho Nacional de Justiça e a sociedade como um todo, buscam a melhor experiência.
Também não podemos falar sobre "lados". Fazem parte das asas do mesmo pássaro.
É do interesse do Conselho Nacional de Justiça construir as melhores "diretrizes para o desenvolvimento, utilização e governança de soluções desenvolvidas com recursos de inteligência artificial no Poder Judiciário"1.
Tanto é que a portaria 338/23, que "Institui Grupo de Trabalho sobre Inteligência Artificial no Poder Judiciário"2, contou com um grupo de mais de 30 especialistas de diversas áreas. Tivemos colaboradores do próprio Conselho Nacional de Justiça, de juízes de Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais, do STF e STJ, do Ministério Público, da advocacia, do campo da academia, entre outros.
E é do interesse da sociedade colaborar com suas visões e subsídios técnicos para as instituições estarem em melhores posições na tomada de decisões. A audiência pública realizada pelo Conselho Nacional de Justiça em setembro de 2024 demonstra bem isso3.
Contudo, acredito que temos pontos a melhorar. A participação pode ser ampliada.
Sobre a fiscalização externa, a criação de um canal formal e permanente para que outros grupos de especialistas, como centros de pesquisa e organizações da sociedade civil, e indivíduos tenham seus subsídios técnicos analisados e efetivamente levados em consideração permitiria essa ampliação.
A nova resolução chega a prever, em alguns momentos, algo nessa direção, mas sem grandes detalhes. O art. 16, IV, prevê que compete ao Comitê Nacional de Inteligência Artificial do Judiciário "consolidar padrões de governança e mapeamento de riscos conhecidos e não conhecidos que permitam a definição e a reavaliação contínua do grau de risco adequado para cada hipótese de aplicação, ouvidos os tribunais, especialistas externos e a sociedade civil".
A resolução não detalha como se dará a participação desses atores. Podemos imaginar, naturalmente, audiências públicas e editais de tomadas de subsídios. Contudo, sabemos que ambos os instrumentos não acontecem com grande frequência. Assim, este canal colaborativo com o Conselho Nacional de Justiça em matéria de uso de sistemas de IA se coloca como uma sugestão relevante.
Sobre a fiscalização interna, gostaria de destacar três pontos.
O primeiro diz respeito à composição do Grupo de Trabalho sobre Inteligência Artificial no Poder Judiciário, instituído pela portaria 338/23 e que comentei há pouco no texto. Considerando as inclusões realizadas pela portaria 41/24, também do CNJ, tivemos 30 pessoas dedicadas aos trabalhos. Sobre a qualidade técnica, não restam dúvidas sobre serem ótimos nomes. Contudo, algo me chamou a atenção. Dentro dos 30 nomes, mulheres representam aproximadamente apenas 26% da composição. São 22 homens e 8 mulheres.
O segundo se volta à composição dos 14 membros titulares e 13 suplentes do Comitê Nacional de Inteligência Artificial do Judiciário, prevista no art. 15, §1º. Entre Conselheiros do CNJ, magistrados de diferentes partes do Poder Judiciário e das escolas da magistratura, temos os representantes da OAB - Ordem dos Advogados do Brasil, Ministério Público, Defensoria Pública e da sociedade civil. Contudo, conforme o §3º do mesmo artigo, somente o primeiro grupo terá direito a voz e voto. Para o segundo grupo, foi reservado somente o direito a voz.
Reconhecer a importância da efetiva colaboração de todos os grupos, inclusive com direito de voto por estes que também participam da prestação jurisdicional e da administração da Justiça, é tomar a direção do melhor interesse público.
O terceiro está relacionado com a chamada "composição de equipes para pesquisa, desenvolvimento e implantação das soluções computacionais que se utilizem de Inteligência Artificial". Tanto a resolução 332/20 como a resolução aprovada em fevereiro destinam um artigo para o assunto.
Na primeira resolução, o art. 20 previa que a "composição de equipes para pesquisa, desenvolvimento e implantação das soluções computacionais que se utilizem de Inteligência Artificial será orientada pela busca da diversidade em seu mais amplo espectro, incluindo gênero, raça, etnia, cor, orientação sexual, pessoas com deficiência, geração e demais características individuais."4. O §2º, do mesmo artigo, previa a dispensa da diversidade pela "ausência de profissionais no quadro de pessoal dos tribunais".
Se comparamos com a nova resolução, notamos uma redação muito semelhante, mas com a adição do termo "sempre que possível" no caput e o acréscimo expresso no §2º de uma circunstância autorizadora de dispensa da diversidade, a "necessidade de garantir eficácia e a velocidade na implementação das soluções a curto prazo".
Será que não avançamos nos campos da diversidade e representatividade de 2020 a 2025? O "melhor" que fizemos foi enfatizar ainda mais termos como "sempre que possível", "tanto quanto possível" e acrescentar expressamente mais uma previsão de dispensa de diversidade?
Sobre mudanças
É importante que todos estejam abertos a visões distintas e à evolução dos modelos que adotamos. Atualizações normativas são necessárias. Em alguns momentos, e assim desejamos ser na maioria deles, podemos ter que decidir entre duas ótimas opções ou "entre o certo e o certo", como me dizia o sempre ministro, professor e poeta Carlos Ayres Britto em suas aulas de Direito Constitucional.
Em outros momentos, podemos ter que enfrentar a decisão entre duas opções, com uma um pouco mais trabalhosa que a outra, mas mais alinhada com o progresso. Trabalho esse eventualmente associado às suas consequências orçamentárias, financeiras, políticas e do seu impacto na linha de produção de alguma atividade. Porém, não devemos temer o trabalho se estamos com boas intenções.
Contudo, há algo imprescindível para todos os momentos, Como também me dizia o Ministro Ayres Britto, é "ter um novo par de olhos sempre". A certeza, como é tratada de forma cirúrgica no recém lançado filme O Conclave, é a grande inimiga da união e a inimiga mortal da tolerância.
1 Ementa da Resolução aprovada pelo Plenário do Conselho Nacional de Justiça em 18 de fevereiro de 2025. Disponível aqui.
2 Ementa da Portaria 338, de 30/11/23, do Conselho Nacional de Justiça. Disponível aqui.
3 A audiência pública, conforme o seu edital de convocação, tinha como objetivo "colher contribuições da sociedade, especialistas, instituições públicas e privadas sobre as normas e as diretrizes que possam aprimorar a regulamentação [...]". Os documentos relacionados com a audiência pública e as gravações das apresentações estão disponíveis aqui.
4 Resolução 332/20, do Conselho Nacional de Justiça. Disponível aqui.