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Considerações preliminares sobre a vinculação administrativa da ANPD ao Ministério da Justiça e Segurança Pública

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Atualizado às 14:41

A previsão de um órgão regulador de proteção de dados com atribuições fiscalizatórias e sancionatórias sempre esteve presente na idealização de uma legislação protetiva de dados pessoais. Era intenção declarada tanto pelo Governo federal, como desejada por academia e entidades de representação da sociedade, dada a relevância do tema e a importância que os direitos de personalidade, em particular a privacidade e a própria proteção de dados pessoais, alcançam em uma sociedade informacional e hiperconectada.

Não por outra razão, esse órgão já vinha sendo discutido desde os estudos preliminares do Ministério da Justiça, ainda em 2005, ainda sob a nomenclatura provisória de Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais. Com a evolução das consultas públicas e a entrega prematura do anteprojeto de lei ao Congresso, em 2016, por ocasião do processo de impeachment, a criação do órgão acabou omitida no texto apresentado à Câmara dos Deputados, embora tenham sido mantidas dezenas de referências normativas a um "órgão competente", conferindo-lhe competências e atribuições diversas.

Ao longo do processo legislativo, porém, a Câmara alterou o texto proposto para prever a instituição da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), denominação que perseverou. A despeito do veto jurídico por vício de inconstitucionalidade que a lei sofreu no ponto, foram editadas normas jurídicas posteriores que promoveram a criação e a transformação da ANPD como é hoje conhecida.

Até recentemente, a ANPD era ainda um órgão pertencente à administração pública federal direta. Seu vínculo administrativo, como se sabe, era com a Presidência da República, órgão que até então integrava, conforme previsão da Medida Provisória 869, de 2018, posteriormente convertida na lei 13.853, de 2019 (art. 55-A). Em sequência, sobreveio o decreto Federal 10.474, de 26 de agosto de 2020, organizando sua estruturação regimental nos moldes definidos pelo legislador, seguido por mensagens de indicação de seus membros diretores submetendo-os à sabatina no Senado Federal.

Posteriormente, com a edição da Medida Provisória 1.124, de 2022, promulgada, no mesmo ano, na forma da lei 14.460, a ANPD foi transformada em autarquia de regime especial.

Um detalhe notável: a medida provisória, tanto quanto a lei que dele decorreu, deixaram de tratar, expressamente, da vinculação administrativa da nova autarquia. O quadro a seguir evidencia a evolução legislativa em relação a esse ponto:

Tendo em vista, ainda, a organização administrativa que a Medida Provisória 869 promoveu, ainda ao final de 2018, e a mudança de governo decorrente do processo eleitoral daquele ano, foi editada a Medida Provisória 870, de 1º de janeiro de 2019, posteriormente convertida na lei 13.844, de 18 de junho 2019, que, trata da organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios, reforçou a integração da ANPD à Presidência da República em seu art. 2º, inc. VI.

Como se nota, a própria lei 13.844, de 2019, sofreu derrogação pela MP 1.124, deixando de prever a ANPD como órgão integrante da Presidência da República.

Dessa maneira, desde a edição da MP 1.124, não mais subsiste a relação vinculante da ANPD - prevista em lei -, tornando a questão resoluta apenas em norma infralegal.

Com a mais recente alternação de governo, novas mudanças vêm sendo promovidas na organização da administração pública que, de forma inadvertida, afetaram o sistema de proteção de dados.

Em 1º de janeiro deste ano, foi editada a Medida Provisória 1.154, estabelecendo nova configuração da organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios. Seu art. 35, inc. XXIII, deixa claro que o vetor de coordenação de políticas públicas sobre o tratamento de dados pessoais será o próprio MJSP, inclusive expressando competência material que o constituinte reformador entregou à União, quando da promulgação da Emenda à Constituição n.º 115, de 20221.

Em sequência, foi editado o decreto Federal 11.348, de 1º de janeiro deste ano. Seu art. 2º, inc. IV, alínea "b", vincula a ANPD à estrutura organizacional do MJSP, para onde arrasta, expressa e destacadamente, também o Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade (CNPD), este como órgão colegiado (art. 2º., inc. IV, alínea "i").

Essa reorganização administrativa atende à expectativa constitucional, uma vez que estabelece tanto o órgão formulador de políticas públicas como vetor de coordenação e organização do assunto em território nacional (MJSP), como aquele que executará, com os atributos de autonomia e independência que lhe foram concedidos pelo legislador, serviço público relacionado a essa área de interesse nacional.

Como primeira e mais evidente consequência dessa alteração estruturante, importa esclarecer que, uma vez que o tratamento de dados pessoais se encontra, agora, sob as atribuições do Ministério, a formulação e a própria coordenação da Política Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade (PNPD), prevista expressamente pela LGPD, também será de incumbência ministerial, com a participação preponderante da ANPD2 e, mais particularmente, com auxílio do CNPD3, mediante a propositura e a elaboração de diretrizes estratégicas, encerrando, no Ministério, grande responsabilidade com o futuro da proteção de dados pessoais no Brasil.4

É preciso deixar claro, porém, que essa vinculação administrativa não significa subordinação de qualquer espécie, particularmente em razão da natureza jurídica da ANPD, que fora transformada em autarquia de regime especial e órgão da administração pública indireta ao final de 2022. Inclusive, é preciso rememorar que a própria LGPD conferiu o atributo de autonomia decisória à Autoridade, o que reforça esse caráter.

Obviamente, e o tema não será objeto de discussão neste texto, essa autonomia não é absoluta, o que atrai um dos debates doutrinários mais controvertidos do direito administrativo contemporâneo, no que diz respeito à relação de entes autárquicos com a autoridade central. Discussão que, aliás, transborda inclusive para o Poder Judiciário e que, mais recentemente, foi formulado em jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

Ainda assim, ao tempo em que a organização da administração pública reclama essa vinculação para fins estruturantes, também confere ao Ministério o papel de supervisão5, que não se confunde, no caso, com controle hierárquico propriamente dito, tema sempre controverso da doutrina administrativista.

Em outras palavras, passam a conviver o órgão de formulação de políticas públicas e o órgão de regulação setorial responsável por sua execução.

Um cenário indesejado, portanto, seria eventual distanciamento, desarticulação ou falta de integração entre esses órgãos, colocando em risco o sistema como um todo e, em último grau, a fragilização do direito fundamental à proteção de dados, evidenciando, por fim, a ineficácia de proteção de bens fundamentais. Seria, como adverte Ingo Wolfgang Scarlet, um risco real de inadimplência do dever geral de efetivação atribuído ao Estado6.

Espera-se, agora, que, internamente, o Ministério organize-se para definir a gestão do tema, especialmente o(s) órgão(s) com competência para subsidiar o trabalho de coordenação e de supervisão dessa nova área de competência.

Não apenas: com a mudança de governo, o CNPD também pode sofrer ajustes em sua composição e, provavelmente, em sua organização interna, uma vez que, nos termos do decreto 10.474, de 2020, cabe ao membro indicado pela Casa Civil presidir o colegiado. Uma vez que o MJSP passou a ter vínculo com a ANPD, e, por conseguinte, com o Conselho, parece-nos mais adequado que o Decreto sofra alteração nesse sentido também, provavelmente conferindo a presidência nata ao membro Conselheiro indicado pelo Ministério.

Dessa maneira, inclusive, o Ministério assumiria função de efetiva supervisão não somente da ANPD, como também do próprio CNPD.

Tendo em vista, inclusive, a interdisciplinaridade do assunto e sua inegável transversalidade, um Ministério técnico e de competência correlata a temas plurais que tocam a proteção de dados, como o direito do consumidor e o direito da concorrência, para citar alguns, é sem dúvida positivo, performando, inclusive, nas relações interinstitucionais com órgãos e entes de outros Poderes e níveis federativos.

Também é possível que haja melhor coordenação técnica e política, em nível nacional, inclusive para alocação e aplicação de recursos materiais em torno do assunto, especialmente no âmbito do setor público, que hoje está excessivamente fragmentado e disperso.

O que se constata, ao contrário, é que os entes federativos e os órgãos e entidades que integram tanto a administração pública direta, como indireta, de todos os Poderes da República realizam a própria adequação, entre erros e acertos, sem uma diretriz uniforme e harmônica, a despeito de esforços hercúleos de órgãos como o Conselho Nacional de Justiça (quanto ao Poder Judiciário) ou o Conselho Nacional do Ministério Público, no âmbito de suas competências constitucionais. E não se está referindo aqui às questões regulatórias, pois respeitada a atividade regulatória finalística da ANPD.

Não raro, constata-se que parte expressiva do setor público parece não atentar sequer às orientações emanadas da ANPD, especialmente pela natureza não vinculante de seus Guias Orientativos, levando a autarquia a ter de suportar um duplo e passivo regulatório: de um lado, de ordem omissiva (fiscalizando aqueles que não procuraram se adequar à LGPD) e, de outro, corretiva (fiscalizando os que buscaram a adequação, mas o fizeram de maneira indevida adotando equivocadas interpretações legais).

A discussão, portanto, em torno da vinculação administrativa da ANPD ao MJSP não é, como se vê, assunto lateral e de baixa relevância. Pelo contrário, merece a devida atenção da comunidade de proteção de dados pessoais, uma vez que, dessa integração, decorrerão os próximos passos rumo à efetividade do direito fundamental à proteção de dados pessoais no Brasil.

__________

1 Art. 21, inc. XXVI.

2 LGPD, art 55-J, inc. III.

3 LGPD, art. 58-B, inc. I e II.

4 A esse respeito, inclusive, a ANPD publicou sua agenda regulatória para o biênio 2023-2024, por meio da Portaria ANPD nº 35, de 4 de novembro de 2022, em que ostensivamente inseriu a elaboração de diretrizes para a PNPD na Fase 2, ou seja, como atividade cujo processo regulatório deverá iniciar-se até o final de 2023.

5 Art. 19, decreto-lei 200, de 25 de fevereiro de 1967.

6 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 13. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018.