Stablecoins: Status da regulação no Reino Unido e União Europeia
sexta-feira, 21 de junho de 2024
Atualizado em 20 de junho de 2024 12:59
Por que as stablecoins estão no topo da agenda dos esforços legislativos globais?
As stablecoins abundam no espaço dos ativos digitais como meio de troca, reserva de valor, ativo comercial e forma de efetuar pagamentos. Para se ter uma ideia, a Tether ($USDT), stablecoin mais utilizada no mercado, é o terceiro em valor de mercado geral, atrás apenas do bitcoin ($BTC) e Ether ($ETH) no espaço de ativos digitais.
Quando olhamos para as negociações de ativos digitais em Tether, no entanto, seu token $USDT possui um volume de negociação maior do que o $BTC e o $ETH combinados. É aqui que reside a primeira preocupação dos reguladores: A utilidade de stablecoins, como $USDT e $USDC (esta última, administradas pela empresa norte-americana Circle que recentemente anunciou sua vinda para o Brasil), levou a uma situação em que o funcionamento contínuo do espaço de ativos digitais depende excessivamente da retenção de valor dessas moedas.
Aqui, importante abrir um parênteses para destacar que as stablecoins diferem de tokens especulativos como as "MeMe Coins" (tokens, não necessariamente emitidos em uma blockchain, que são inspirados em memes ou piadas na internet e nas mídias sociais). Isto porque, o valor das stablecoins está atrelado 1:1 (um pra um) a um ativo mais estável - normalmente uma moeda fiduciária, ou uma cesta de moedas fiduciárias e títulos públicos.
No caso das stablecoins $USDT e $USDC, é o dólar americano. Portanto, em teoria, deveriam fornecer ao espaço dos ativos digitais uma alternativa menos volátil para liquidar negociações e efetuar pagamentos.
Aqui, surge o segundo ponto de preocupação dos reguladores: a confiabilidade das stablecoins em si, bem como dos sistemas que as sustentam. É necessário que o mercado financeiro tenha confiança de que as stablecoins são totalmente garantidas, seguras e resgatáveis ??- o que não é um dado adquirido. Segundo os legisladores, a única maneira de garantir que as stablecoins são e continuem sendo o que afirmam ser, mantendo seguros os mercados que as facilitam, é regulamentá-las.
Some-se a isto os riscos à estabilidade financeira que advém do fato de um terceiro - além de um banco central - estar emitindo um ativo que está fora do alcance da política monetária liderada pelos bancos centrais.
Tais preocupações, reais ou não, são a razão pela qual os reguladores de todo o mundo estão finalizando suas abordagens conceituais sobre como gostariam de regular e supervisionar as stablecoins.
No entanto, embora os legisladores estejam de acordo que as stablecoins devem ser regulamentadas, não existe um consenso sobre como exatamente essa regulamentação deveria ser.
O atual panorama regulatório diversificado e fragmentado das stablecoins
Hoje, nos encontramos em uma situação não ideal, com abordagens variadas à legislação sobre stablecoins, a tal ponto que em abril desde ano, o FSB - Conselho de Estabilidade Financeira do BIS - Banco de Compensações Internacionais - uma instituição financeira internacional de bancos centrais - sentiu a necessidade de publicar um estudo - no sítio1 lamentando a falta de uniformidade e solicitando a uma abordagem mais consistente à regulamentação das stablecoins a nível global.
No texto, o BIS ressalta que apesar dos pontos comuns nos esforços regulatórios, o panorama regulatório permanece diversificado e fragmentado. As diferentes abordagens da União Europeia (UE), do Reino Unido (Reino Unido) e dos Estados Unidos (EUA) servem como exemplo desta fragmentação, que pode representar desafios significativos para um sistema financeiro integrado.
Nesse passo, para termos uma ideia de como o atual panorama regulatório das stablecoins é diversificado e fragmentado, veremos a seguir as abordagens da União Europeia (UE) e do Reino Unido (RU).
Nesta coluna, tratamos da legislação nos Estados Unidos (EUA) nos artigos "O movimento regulatório americano em direção às stablecoins" e "Stablecoins algorítmas na mira do Senado americano". Nos EUA, o avanço da regulação permanece estagnado em razão da preparação para as eleições de novembro, que darão o tom dos futuros esforços regulatórios.
Aqui, vale a pena esclarecer que nem todas as stablecoins são criadas iguais e algumas preocupam mais os legisladores do que outras - como vimos ao tratar das "Stablecoins algorítmas na mira do Senado americano".
Regulação das stablecoins na União Europeia (UE)
A UE lidera o caminho de grande parte da legislação relacionada a ativos digitais, através das disposições sobre stablecoins no MiCA - Regulamento do Mercados de Criptoativos, que estão previstas para entrar em vigor no final deste mês.
Em 2021, ao traçar sua proposta para regular stablecoins, a UE considerou três opções:
- Tomar medidas legislativas específicas;
- Incluí-las na EMD 2 (a segunda directiva sobre moeda electrônica, desenvolvida para alinhar os requisitos da UE e supervisionar as instituições de moeda electrônica), e/ou,
- Limitar seu uso.
No final, decidiu pelas duas primeiras opções: Tomar medidas legislativas específicas e utilizar legislação secundária para complementar os requisitos aplicáveis ??aos prestadores de serviços de ativos digitais; e para regular certas stablecoins específicas sob o EMD 2 - nomeadamente stablecoins atreladas a uma moeda fiduciária, ou o que a UE chama de tokens de dinheiro eletrônico - Eletronic Money Tokens (EMTs).
Quando as regras de stablecoin do MiCA entrarem, os emissores de tokens referenciados a ativos (ARTs) - stablecoins que pretendem manter um valor estável referenciando outro valor ou direito - e EMTs terão as seguintes obrigações regulatórias:
- Exigência de autorização do Banco Central e publicação de white paper contendo informações sobre o token relevante para investidores;
- Requisitos de conduta e governança em torno de marketing, divulgação de informações e tratamento de conflitos de interesse;
- Requisitos prudenciais para garantir liquidez suficiente e capacidade de satisfazer pedidos de resgate;
- Nenhuma stablecoin pode ser oferecida ao público ou admitida à negociação numa plataforma de negociação de ativos digitais, a menos que o emitente esteja autorizado na UE e publique um "white paper", aprovado pela autoridade nacional competente (NCA).
- Emitentes de EMT também devem cumprir as obrigações existentes do EMD 2, que incluem informar as autoridades sobre como salvaguardam os fundos recebidos em troca de moeda eletrónica emitida, garantindo que podem "resgatar a qualquer momento e pelo valor nominal" o valor monetário da moeda eletrónica detida, as instituições de moeda eletrónica devem deter um capital inicial não inferior a 350.000 EUR no momento da autorização , e as instituições de moeda eletrónica estão sujeitas à legislação europeia contra a lavagem de capitais.
Alguns TAR ou EMT também podem ser considerados significativos devido ao seu tamanho ou outros fatores e, como resultado, podem apresentar um risco sistêmico aumentado.
Para estes, o MiCA exige medidas adicionais, que foram comparadas ao regime aplicado para classificar bancos globais sistemicamente importantes. Como tal, a EBA - Autoridade Bancária Europeia terá responsabilidades de supervisão para os emitentes de stablecoins que se considerem enquadrados nesta categoria.
De acordo com o MiCA, uma stablecoin é classificada como significativa ou sistêmica se atender a três dos sete critérios, incluindo ter mais de 5 bilhões de euros (6,28 bilhões de dólares) em reservas, mais de 10 milhões de usuários ou processar mais de 500 milhões de euros diariamente. Outras considerações incluem se está interligado com o sistema financeiro e se é utilizado para pagamentos à escala global.
Note que os reguladores europeus admitiram na própria legislação que as diretrizes legais sobre stablecoins no MiCA não é um "produto final acabado." Tanto que já está programado na legislação que as regras sobre stablecoin no MiCA precisará ser revisto, adequado e atualizado.
Esta ideia de que as regras de stablecoins do MiCA, na sua forma atual, talvez não sejam exatamente o produto acabado, refletiu-se de alguma forma na reação do mercado.
Em fevereiro, um artigo publicado pelo emissor de stablecoins Circle ($USDC) classificou a abordagem da UE como falha, afirmando que apenas afastaria os emitentes do bloco europeu.
Na mesma linha, o CEO da stablecoin Tether, Paolo Ardoino também sinalizou seu descontentamento com as regras da UE em uma entrevista em abril deste ano, quando declarou sua relutância em obter permissão para operar sob a estrutura do MiCA. Nas palavras de Ardoino, "estou bastante pessimista sobre o desenvolvimento cripto na Europa" e o MiCA sinalizou que "a Europa não quer cripto com regulamentação que limita amplamente o acesso a ela, especialmente para investidores de varejo".
O MiCA tornou-se lei em 30/6/23, e a nova estrutura começará a ser aplicada em duas fases: A parte do regulamento MiCA que contém regras específicas aplicáveis ??a ARTs e EMTs começará a ser aplicada a partir de 30/6/24, e as regras aplicáveis ??a os provedores de serviços de ativos digitais começarão a se inscrever a partir de 30/12/24.
Outras jurisdições com atraso na regulamentação provavelmente acompanharão o progresso do MiCA com grande interesse.
Apesar das críticas acima, a grande maioria do mercado cripto vê que a União Europeia está em uma situação muito melhor com uma regulação como o MiCA do que estaria no Reino Unido ou nos EUA, onde há muita incerteza jurídica.
O Reino Unido, por sua vez, não fica muito atrás, com legisladores anunciando regras sobre stablecoins para julho, mas retendo maiores detalhes.
Os debates sobre a regulação de stablecoin no Reino Unido
Em abril de 2024, após o primeiro ministro britânico manifestar sua intenção de regular stablecoins, o secretário econômico do Reino Unido anunciou planos para introduzir novas leis para regular a emissão e uso de stablecoins até julho de 2024.
"Estamos agora a trabalhar a bom ritmo para entregar a legislação que colocará em prática as nossas propostas finais para o nosso regime", disse Afolami. "Assim que entrar em operação, toda uma série de atividades de criptoativos, incluindo a operação de uma bolsa, a custódia dos ativos dos clientes e outras coisas, entrarão no perímetro regulatório pela primeira vez."
O secretário econômico não disse em detalhes sobre como será exatamente a nova legislação, mas é certo é que ela se baseará nas diretrizes estabelecidas pela aprovação da FSMA - lei de serviços e mercados financeiros em junho de 2023 - que permitiu o tratamento de stablecoins e ativos digitais como atividades regulamentadas no Reino Unido -, bem como será influenciada pelas recentes discussões sobre o assunto do BoE - Banco Central da Inglaterra e da FCA - Autoridade de Conduta Financeira.
Da aprovação da FSMA 2023 e dos documentos do BoE e FCA publicados em novembro de 2023 - que juntos, provavelmente formarão a espinha dorsal da regulamentação de stablecoins do Reino Unido -, extrai-se o seguinte:
1. A aprovação da FSMA 2023 alargou as regras bancárias da iteração anterior da FSMA - tais como a manutenção de capital adequado para resistir a choques financeiros, a implementação de práticas robustas de gestão de risco e o fornecimento de informações claras e transparentes aos clientes - a stablecoins e ativos digitais.
2. A FCA - o principal regulador do setor financeiro do país - e à PRA - Autoridade de Regulação Prudencial - órgão de fiscalização bancária do RU - receberam os poderes necessários à implementar os objetivos do tesouro do Reino Unido, definidos na sua consulta de fevereiro de 2023 sobre a futura regulamentação do regime para criptoativos.
3. Para o BoE, o quadro regulatório dos sistemas de pagamentos sistêmicos que utilizam stablecoins ??e prestadores de serviços conexos BoE deveria basear-se nas stablecoins ??denominadas em libras esterlinas, eis que estas são os ativos de liquidação digital com maior probabilidade de serem amplamente utilizados para pagamentos. Tal quadro regulatório deveria ter uma abordagem de "mesmo risco, mesmo resultado regulamentar", que incluiria as seguintes exigências:
- A existência de uma entidade em toda a cadeia de pagamento que possa ser identificada como o operadora do sistema de pagamento. Esta entidade teria a competência para supervisionar e avaliar todos os riscos decorrentes das diferentes partes da cadeia de pagamento, garantindo a existência de controles adequados;
- Garantia integral pelos emissores da oferta de stablecoins com depósitos no BoE, sem juros a serem pagos sobre esses depósitos;
- Garantia pelos fornecedores de carteiras de que os direitos legais dos detentores de stablecoins e a capacidade de resgatar stablecoins ao valor nominal sejam protegidos em todos os momentos.
4. Para a FCA, é necessária que as atividades de stablecoin sigam seus vários padrões regulatórios já existentes como, por exemplo, a adesão aos 'princípios para negócios' abrangentes da FCA e às regras do livro de referência de conduta da FCA (relativas à incentivos, categorização de clientes e divulgação de custos e encargos).
5. Além da aplicação de suas disposições regulamentares já existentes, a FCA ainda está a considerar regras específicas adaptadas à natureza única dos emitentes e custodiantes de stablecoins, como:
- Garantia pelos emitentes de que suas stablecoins mantenham consistentemente o seu valor em relação à moeda de referência designada e que os detentores possam resgatar prontamente o seu valor ao par;
- Depósito, pelos emissores de stablecoins, de ativos de garantia que não sejam apenas estáveis ??em valor, mas também suficientemente líquidos - um problema potencial para qualquer stablecoin que não seja garantida por moeda fiduciária -, permitindo o rápido resgate pelos consumidores;
- A segregação das stablecoins dos clientes dos ativos próprios do custodiante;
- A manutenção de registros pelos custodiantes para estabelecer claramente a propriedade dos ativos e a implementação de controles organizacionais eficazes para mitigar o risco de perda ou diminuição dos ativos de custódia dos clientes.
Perspectivas
A atual regulação das stablecoins - pelo menos na UE e Reino Unido - é um trabalho em andamento, iminente, abrangente e ainda pendente.
Se estamos caminhando para um mercado verdadeiramente global, no entanto, o ideal seria que o esforço legislativo global que buscasse a convergência regulatória.
De todo modo, em um espaço tecnológico em rápida evolução - onde dado momento todos pensam que sabem qual é o objetivo final, mas o objetivo final continua a evoluir -, a regulamentação é uma jornada.
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1 Disponível aqui.