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Diretrizes sobre criptoativos como instrumentos financeiros na UE

sexta-feira, 3 de maio de 2024

Atualizado em 2 de maio de 2024 15:08

"Se um criptoativo que não for classificado como instrumento financeiro, a estrutura da MiFID II não lhe será aplicável. Nesse caso, o regime jurídico estabelecido pela MiCA via de regra será o adequado, salvo em algumas situações excepcionais."

A importância da classificação de um ativo digital como instrumento financeiro 

Embora muitos não considerem importante, definir se um token ou ativo digital é, ou não, um criptoativo e se este, por sua vez, pode ser considerado, ou não, um instrumento financeiro, tal classificação é fundamental. 

Isto porque, instrumentos financeiros se enquadram no escopo da Diretiva de MiFID II - Mercados de Instrumentos Financeiros, enquanto o MiCA - Mercados de Criptoativosse aplica à maioria dos criptoativos que ainda não são cobertos pela legislação existente da UE e, em especial, pela MiFID II. 

Logo, a classificação de um criptoativo como instrumento financeiro, ou não, possui reflexos diretos no tratamento regulatório aplicável. É por isso que as diretrizes da ESMA - Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e dos Mercados sobre criptoativos são tão aguardadas. 

A ESMA e a supervisão dos mercados de criptoativos da UE

ESMA possui importância ímpar na supervisão dos MiCA. Dentre os pontos chave de sua atuação, podemos citar:

ESMA - European Securities and Market Authority, junto com a Autoridade Bancária Européia [EBA, European Bank Autority] têm poderes de intervenção para proibir ou restringir a prestação de serviços criptoativos pelos provedores de serviços de criptoativos [CASPs, Cripto Assets Service Providers], bem como a comercialização, distribuição ou venda de criptoativos, em caso de ameaça à proteção do investidor, integridade do mercado ou estabilidade financeira.

A ESMA também exerce um papel de coordenação significativo, sendo responsável por uma abordagem consistente à supervisão dos maiores CASPs [exchanges, corretoras de criptoativos, etc.], isto é, aqueles com uma base acima de 15 milhões de clientes como a Binance e a Kraken.

Além disso, a ESMA está encarregada de desenvolver uma metodologia e indicadores de sustentabilidade para medir o impacto dos criptoativos no clima e no meio ambiente, bem como classificar os mecanismos de consenso usados para emitir criptoativos, analisando seu uso de energia e estruturas de incentivo.

A ESMA também é responsável por efetuar o registro de empresas, que operam na UE sem autorização e com sede em outros países, com base nas informações submetidas pelas autoridades competentes, supervisores de terceiros países ou identificados pela ESMA. Isto viabiliza que as autoridades competentes exerçam poderes de longo alcance contra as entidades listadas pela ESMA.

Por fim, a ESMA é responsável por definir as diretrizes de classificação da natureza jurídica dos criptoativos como instrumento financeiro, nos termos do artigo 2(5) do regulamento do MiCA:

Art. 2(5) da MiCA: "Até 30/12/24, a ESMA deverá, para fins do parágrafo 4, alínea (a), deste artigo, emitir diretrizes de acordo com o art. 16 do Regulamento (UE) 1.095/10 sobre as condições e critérios para a qualificação de criptoativos como instrumentos financeiros."

Os destinatários e o escopo das diretrizes da ESMA sobre criptoativos

De acordo com este art. 2(5) da MiCA, a ESMA tem o mandato para emitir diretrizes sobre as condições e os critérios para a qualificação de criptoativos como instrumentos financeiros, conforme definido no art. 4(1), ponto (15), da Diretiva de MiFID II. 

O objetivo das diretrizes é esclarecer melhor as NCAs - Autoridades Nacionais Competentes e os participantes do mercado sobre a delimitação entre os respectivos escopos de aplicação da MiCA e da MiFID II, garantindo abordagens consistentes em nível nacional em relação aos criptoativos que devem ser considerados instrumentos financeiros e, portanto, estar sujeitos às estruturas regulatórias setoriais e, principalmente, à estrutura da MiFID II. 

Essas diretrizes devem ser publicadas até 30/12/24.

Aqui, importante destacar que não se espera que a ESMA esclareça todo o escopo do que constitui um instrumento financeiro, mas apenas quais produtos que atendem à definição de criptoativos da MiCA se qualificam como instrumentos financeiros.

Como avaliar adequadamente se um ativo digital é um criptoativo? 

Antes de mergulhar neste tópico, uma ressalva: para compreender este tópico, é necessário saber a diferença entre ativo digital, criptoativo, token e criptomoeda.

Basicamente, a classificação da natureza jurídica de um ativo digital é feita na prática, tendo em conta recursos específicos, o design e os direitos associados do ativo digital sob análise [abordagem caso-a-caso].

De início, é importante esclarecer que a estrutura tecnológica de um ativo é irrelevante para a finalidade dessa avaliação [neutralidade tecnológica]. 

Isto é, se um ativo é emitido por meio de uma DLT - Distributed Ledger Technology, ou de uma Blockchain, isso não o torna legalmente um criptoativo por padrão. Os instrumentos financeiros tokenizados [no sentido da MiFID II, com a única diferença de que são emitidos em um livro-razão digital] continuam a ser considerados instrumentos financeiros para todos os fins regulatórios.

Outro ponto importante a considerar é que a classificação de um ativo digital deve ser orientada por suas características reais, em vez de depender exclusivamente do rótulo dado pelo emissor ou ofertante [substância sobre a forma].

Por fim, se um ativo digital apresentar características de um instrumento financeiro, essa característica deverá ter precedência em sua classificação [abordagem hierárquica]. 

Em resumo, os princípios gerais para classificar a natureza jurídica de um ativo digital são:

  • Abordagem caso-a-caso
  • Neutralidade tecnológica
  • Substância sobre a forma
  • Abordagem hierárquica

Neste contexto, os criptoativos devem ser classificados como instrumentos financeiros caso estejam alinhados com a definição de instrumentos financeiros da MiFID II. 

E cada tipo de instrumento financeiro, conforme previsto na seção C do anexo I da MiFID II [títulos transferíveis, instrumentos do mercado monetário, unidades de empreendimentos de investimento coletivo, derivativos e permissões de emissão], deve ser excluído antes de se concluir de que um token é de fato um criptoativo.

O que deve ser considerado para avaliar se um ativo financeiro é um criptoativo utilizado como instrumento financeiro?

Segundo as diretrizes propostas pela ESMA para classificar um criptoativo como instrumento financeiro, os seguintes critérios devem atendidos:

  1. Título transferível
  2. Instrumento do mercado monetário
  3. Unidade em um empreendimento de investimento coletivo
  4. Derivativo 

Para ser considerado um título transferível, o criptoativo deve:

  • conferir a seus detentores direitos semelhantes àqueles associados a valores mobiliários: por exemplo, direitos a dividendos, direitos de voto no processo de tomada de decisões do emissor, direito sobre uma parte dos ativos da empresa ou direitos sobre o produto da liquidação;
  • não ser usado como um instrumento de pagamento;
  • ser transferível [negociável] nos mercados de capitais2, o que deve ser interpretado de forma mais ampla: por exemplo, o ativo pode ser transferido ou negociado em locais de negociação?
  • ser intercambiável [fungível], no sentido de que é capaz de expressar as mesmas características por unidade.

Para ser considerado um instrumento do mercado monetário [art. 4(1)(17) da MiFID II c.c. art. 2(1)(o) da UCITSD c.c. Artigo 3 da Diretriz da Comissão 2.007/16/EC], o criptoativo deve:

  • ter um período de vencimento curto e predefinido, conforme exigido pelo Regulamento de Fundos do Mercado Monetário (MMFR);
  • apresentar valor estável e volatilidade mínima; e
  • alinhar os retornos com as taxas de juros de curto prazo.

Como nada melhor que um exemplo para se compreender algo... Já há algumas plataformas que oferecem contas de poupança de curto prazo para criptoativos com o objetivo de manter um valor estável como, por exemplo, aqueles criptoativos atrelados a moedas fiduciárias estáveis como o euro ou o dólar americano. 

Ora, se tais arranjos de poupança tiverem vencimento e proporcionarem retornos aos usuários, eles podem ser classificados como ativos análogos aos instrumentos tradicionais do mercado monetário.

Para ser considerado uma unidade em um empreendimento coletivo [Anexo I, seção C, ponto (3) da MiFID II], o criptoativo deve fazer parte de um projeto cripto:

  • que envolva o agrupamento de capital de vários investidores;
  • com o objetivo de investir de acordo com uma política de investimento definida para o benefício desses investidores; e
  • cujos investidores não tenham controle sobre a gestão diária dos ativos incluídos no pool: muito pelo contrário, em vez disso, a gestão é controlado por terceiros ou por código de software / por algoritmos / por contratos inteligentes.

Assim, na hipótese dessas condições serem atendidas, o criptoativo será qualificado como uma unidade em um fundo, enquanto o emissor do criptoativo será qualificado como um empreendimento de investimento coletivo.

De outro lado, antes de vermos os critérios necessários para um criptoativo ser considerado um instrumento financeiro derivativo [art. 4(1)(49) da MiFID II c.c. Artigo 2(1)(29) do MIFIR c.c. Anexo I c.c. seção C de C(4) a (10) da MiFID], é essencial distinguir entre contratos de derivativos que tenham como subjacente um criptoativo, uma cesta de criptoativos ou um índice de criptoativos. Esses devem ser qualificados como instrumentos financeiros.

Esclarecido isto, um criptoativo pode ser classificado como "instrumento financeiro derivativo" - independentemente de qual seja o meio subjacente  - se as seguintes condições forem atendidas:

  • "Representação digital" de um contrato, o que significa que há algum tipo de acordo entre as partes envolvidas, detalhando os termos, o vencimento (se houver), o preço e outras condições do contrato;
  • Uma referência subjacente, que determina seu valor (pode ser um ativo, um índice, uma commodity);
  • Seu valor flutua com base em alterações nesse ativo de referência; e normalmente,
  • envolve liquidação financeira, em que as partes trocam pagamentos em dinheiro com base na diferença entre o preço do contrato e o valor de mercado da referência subjacente.

No caso de títulos que servem principalmente a uma função de investimento [derivativos securitizados], onde o investidor busca o desempenho de um ativo subjacente [como, pex., comodities, títulos transferíveis, criptoativos], não há uma reivindicação direta sobre o "ativo em si". Isso é especialmente importante no âmbito dos criptoativos, em que o direito de propriedade direta pode ser complexo ou indesejável para os investidores.   

Nesse passo, os criptoativos comparáveis a esses tipos de instrumentos securitizados devem ser tratados como títulos transferíveis de acordo com a estrutura da MiFID II.

Qual regime jurídico aplicável aos criptoativos que não forem considerados instrumentos financeiros?

A regra geral é que a MiCA se aplicará à maioria dos criptoativos que não são considerados instrumentos financeiros e, portanto, não estão no perímetro da MiFID II. 

Se um criptoativo que não for classificado como instrumento financeiro, a estrutura da MiFID II não lhe será aplicável. Nesse caso, o regime jurídico estabelecido pela MiCA via de regra será o adequado, salvo em algumas situações excepcionais. 

  • A MiCA não se aplica a ativos digitais não transferíveis a outros titulares e àqueles que são aceitos apenas pelo emissor. 
  • Criptoativos exclusivos e não fungíveis (NFTs) também não se enquadram no âmbito de aplicação da MiCA - art. 2(3) da MiCA -  e permanecem não regulamentados até o momento.

Os critérios para classificação de NFTs fornecidos nas diretrizes da ESMA

Especificamente no caso dos tokens não fungíveis [NFTs, Non Fungible Tokens], é fundamental conduzir um "teste de valor interdependente", com base nos critérios fornecidos nas diretrizes da ESMA, para verificar se um determinado criptoativo é um verdadeiro NFT. Por que?

Porque, em essência, um criptoativo que não tenha exclusividade genuína devido à presença de atributos comparáveis e intercambiáveis deve estar sob a alçada regulatória da MiCA.

A ESMA estabelece critérios para avaliar a exclusividade e a não fungibilidade de um criptoativo. Em essência, um criptoativo pode ser considerado exclusivo e não fungível - e portanto, é um NFT verdadeiro - se suas características e/ou os direitos que ele oferece o distinguirem de outros tokens emitidos pelo mesmo (e por qualquer outro) emissor.

Aqui, cabe um parênteses para destacar como é importante a distinção entre criptoativos realmente exclusivos e aqueles que podem parecer exclusivos devido a identificadores ou padrões técnicos específicos. Nesse sentido, o critério de exclusividade não deve se basear nas especificidades técnicas do criptoativo. 

Ou seja, a atribuição de um identificador exclusivo a um criptoativo não o qualifica automaticamente como não fungível. As características técnicas [por exemplo, código de identificação de token, ID de token exclusivo] e os padrões usados [por exemplo, padrão ERC-721, padrão BEP-721] podem continuar sendo um indicador, mas não devem ser de importância primordial para as autoridades nacionais competentes e os participantes do mercado ao avaliarem a fungibilidade e a exclusividade do criptoativo.

O critério da não fungibilidade é decisivo, porque criptoativos emitidos "em uma grande série ou coleção", mas que podem ser consideradas "fungíveis", estão cobertas pela MiCA.

Da mesma forma, o critério do valor próprio também é fundamental, porque um "NFT fracionável" pode ser qualificados como criptoativos no sentido da MiCA -  especialmente se as partes fracionadas, quando consideradas separadamente, não forem consideradas únicas e não fungíveis. 

Esclarecidos os critérios de classificação dos NFTs, como a ESMA enquadra os criptoativos que se enquadram em mais de uma classificação legal?

As diretrizes da ESMA sobre tokens híbridos

Os criptoativos podem ser estruturados como "híbridos" que combinam, abrangem ou associam várias características, componentes e finalidades (por exemplo, meios de pagamento, tipo de utilidade, tipo de investimento) e podem desempenhar funções distintas após a emissão. Isso torna a classificação desses criptoativos particularmente difícil.

Por isso, as diretrizes da ESMA estabelecem que as Autoridades Nacionais Competentes [NCAs, National Competent Authorities] devem examinar as formas híbridas de criptoativos, independentemente de como o criptoativo é designado, e seguir os princípios gerais de classificação dos criptoativos que vimos nos parágrafos anteriores.

Note que, devido à natureza evolutiva dos arranjos de criptoativos no mercado, fazer uma classificação exaustiva e atualizada seria excessivamente abrangente.

A determinação de uma classificação regulatória exige uma avaliação minuciosa das circunstâncias e dos atributos distintos de cada caso.

Nesses casos, a classificação dos tokens híbridos pode não ser conclusiva, mesmo que sua classificação, como instrumento financeiro ou tokens de utilidade, possa oferecer uma indicação inicial da natureza do criptoativo.

Quanto aos critérios associados aos tokens híbridos, definidos pela ESMA, o processo de classificação de tokens híbridos não deve apenas considerar sua natureza multifacetada, mas também priorizar sua identificação como instrumentos financeiros, quando aplicável.

Nessa linha, quando um token híbrido apresenta características de um instrumento financeiro, essa característica deve ter precedência em sua classificação.

Ter características de um instrumento financeiro, prevalente em sua classificação, garante clareza regulatória e consistência com a estrutura abrangente da MiCA. 

Considerações finais

As diretrizes da ESMA afetarão todas as empresas financeiras, além daquelas ativas no espaço das criptomoedas.

Fixar premissas para classificar determinado ativo digital, ou serviços prestados em relação a esses ativos, como um instrumento financeiro ou um criptoativo, é um importante passo à frente para a clareza jurídica e a redução da incerteza regulatória.