O movimento regulatório americano em direção às stablecoins
sexta-feira, 26 de agosto de 2022
Atualizado às 08:25
"Existe uma falta de consenso sobre como regular 'stablecoins' tanto no Congresso Americano, quanto no vasto número de agências que desejam ser responsáveis por sua supervisão; isto sem falar nos inúmeros conflitos sobre regulamentos internos. Estes são os obstáculos que devem ser superados para tão desejada aprovação até o final de 2022."
Hoje, veremos o movimento regulatório americano em direção às stablecoins. Antes disso, contudo, vamos traçar um panorama geral sobre as stablecoins.
O que são stablecoins? Por que não se confundem com bitcoin ou criptomoedas?
Stablecoins são uma representação digital da moeda fiduciária que vive em blockchains. Elas são "tokens programáveis" e foram criadas para serem ativos mais estáveis em termos de valor. Elas geralmente estão atreladas a alguma moeda fiduciária como, por exemplo, a USDT que são indexadas ao preço do dólar americano.
Já Bitcoin é um "token nativo" do blockchain bitcoin que, por sua vez, não é "programável", nem está vinculado ao preço de nenhuma moeda fiduciária. Como o preço do bitcoin depende única e exclusivamente de fatores como demanda e oferta, ele está sujeito à maior volatilidade que as stablecoins.
Bem por isso, é correto dizer que stablecoins não são uma criptomoeda.
Uma criptomoeda é um ativo digital "nativo ou incorporado" em determinada blockchain, que representam uma unidade monetária. Você "não" consegue programar uma criptomoeda; isto é, você não consegue alterar as características de uma criptomoeda, que são determinadas no seu blockchain nativo. O valor de uma criptomoeda é a oferta e a demanda, lembrando que algumas moedas como Bitcoin possuem escassez.
Já as stablecoins são "tokens" programáveis. Isto é, são um ativo digital "personalizável / programável" que rodam em um blockchain de 2ª ou 3ª geração que admite contratos inteligentes (códigos de software) mais avançados como o ethereum, tezos, rostock (RSK), solana, dentre outros.
Por qual razão surgiram as stablecoins?
Após o bitcoin, muitos se questionaram se era possível que criptomoedas (tokens nativos de plataformas blockchain) seriam usadas como meios de pagamento na Internet.
Hoje, no entanto, apesar de avanços na escalabilidade das blockchains públicas estarem em franca expansão - como a Lightning Network e as soluções de segunda camada - , as criptomoedas ainda estão em estágio embrionário de maturação e, assim como as redes blockchain públicas, ainda não possuem a velocidade exigida por uma Economia Digital.
Particularmente, com relação à volatilidade, quando a maioria dos comerciantes passa a aceitar uma criptomoeda como meio de troca, seu maior desejo hoje, ainda é sempre migrar para um ativo digital mais estável para, assim, proteger seus lucros e o capital da alta volatilidade do mercado cripto.
Foi pensando neste cenário que foram criadas as Stablecoins - "moedas estáveis".
Quando surgiram as stablecoins
As primeiras stablecoins começaram a aparecer em 2014, e em 2017 surgiu uma das stablecoins smais conhecidos atualmente, o Tether (USDT). Em geral, as primeiras stablecoins se concentravam em resolver o problema de pagamento para plataformas baseadas em blockchain.
Pois bem, depois que as pessoas começaram a perceber as utilidades das stablecoins, principalmente nos mercados de ativos tokenizados, uma segunda geração de projetos de stablecoin surgiu. Essa segunda geração de stablecoins passou a ser emitida tanto por entidades públicas como privadas, muitas vezes como parte de consórcios e com a participação de fornecedores de tecnologia de peso - como por exemplo, o JP Morgan (JPM), Binance USD (BUSD), o dólar Gemini, Circle (USDC) e o projeto DC/EP da China.
A que se destinam das stablecoins?
O propósito das Stablecoins não se esgota na proteção contra a alta instabilidade de preços das criptomoedas. Elas também tem sido usadas ??por aqueles que desejam transferir dinheiro entre as corretoras sem sair do ecossistema de criptoativos.
É preciso destacar, aqui, que converter criptomoedas em moedas fiduciárias (euro, dólar, yuan) tem consequências em muitas jurisdições, que vão desde questões regulatórias até implicações fiscais.
Acrescente-se a isto o fato de que as stablecoins têm sido particularmente importantes para as corretoras não regulamentadas, que não têm acesso ao sistema bancário fiduciário.
Por fim, stablecoins lastreadas em dólares americanos também são importantes para pessoas em países com acesso restrito a moedas estrangeiras, como por exemplo a Rússia, que atualmente encontra-se sob embargo econômico mundial.
Neste contexto, a resposta encontrada pelo mercado foram as stablecoins - tokens ou ativos criptográficos que são indexados a moedas fiduciárias, ou que mantêm um valor supostamente "estável" por algum outro meio.
Agora que já estamos todos na mesma página, vamos voltar ao tema de nosso artigo.
O movimento regulatório americano em direção às stablecoins surgiu bem antes do que se pensa
The Stable Act
The Stable Act (Stablecoin Tethering and Bank Licensing Enforcement), foi a primeira iniciativa legislativa para regular as stablecoins nos Estados Unidos, apresentado na Câmara de Representantes dos EUA em 2 de dezembro de 2020.
A minuta para discussão do The Stable Act foi apresentada por três parlamentares do partido Democrata: a congressista Rashida Tlaib, pelo congressista Jesús "Chuy" García e pelo presidente da Força-Tarefa sobre Tecnologia Financeira, Stephen Lynch.
O principal motivo citado por tais congressistas para justificar tal proposição legislativa foi a proteção do consumidor, especificamente aqueles provenientes de comunidades de baixa renda. Para Tlaib, García e Lynch, os consumidores seriam vulneráveis ??à exploração de emissores de stablecoins e prestadores de serviços, especialmente durante a pandemia do COVID-19.
Segundo consta do próprio texto do the Stable Act: "é fundamental não permitir que Wall Street e o Vale do Silício sejam donos do futuro dos pagamentos digitais, razão pela qual Rep Tlaib está introduzindo o STABLE Act".
Ao ler os detalhes da proposta, todavia, não fica muito claro como isto se dará.
Conforme comunicado à imprensa, essa proposição legislativa dispunha que:
- Qualquer potencial emissor de um stablecoin precisa obter uma licença bancária;
- Qualquer empresa que ofereça serviços de stablecoin deve seguir as devidas regulamentos bancários sob as jurisdições regulatórias existentes;
- Qualquer empresa ou banco emissor de um stablecoin deve notificar e obter a aprovação do FED, do FDIC e da agência bancária apropriada 6 (seis) meses antes de sua emissão, bem como manter uma análise contínua dos impactos e riscos sistêmicos potenciais;
- Todos os emissores de stablecoins obtenham seguro FDIC ou de outra forma mantenham reservas no Federal Reserve para garantir que todos os stablecoins possam ser prontamente convertidos em dólares dos Estados Unidos, mediante solicitação.
Cumpre destacar, aqui, que três dos quatro requisitos principais do Stable Act, citados acima, se referem aos "emissores" de stablecoins, enquanto apenas um dos requisitos atinge os prestadores de serviços de stablecoin.
Nesse passo, no mesmo dia em que o projeto foi apresentado na Câmara de Representantes dos EUA, surgiram fortes críticas de líderes da indústria Blockchain, como Jeremy Allaire(CEO da Circle), Meltem Demirors (Diretora de Estratégia da Coinshares) e Peter Van Valkenburgh (membro do Coin Center).
Aqui, importante mencionar que em resposta à proposta do STABLE Act, o Coin Center lançou uma postagem em seu blog, "The Unintended (?) Consequences of the STABLE Act" , apontando que o projeto de lei "poderia transformar até mesmo operadores de nodes em criminosos".
Com o tempo, o the Stable Act perdeu força, principalmente após a oposição ao projeto feita por Emmer e Davidson, congressistas do partido Republicano e membros do Blockchain Caucus.
A retomada do debate regulatório das stablecoins em 2021
Depois do the Stable Act, os debates em torno da necessidade de supervisão às stablecoins voltaram à tona nos EUA em junho de 2021, principalmente depois que Eric Rosengren, Presidente do Federal Reserve Bank of Boston, listou a stablecoin Tether em uma lista de "disrupção" que imprime "desafios à estabilidade financeira".
Rosengren defendeu na época que era preciso pensar mais amplamente sobre o que poderia impactar negativamente os mercados de crédito de curto prazo ao longo do tempo, e certamente as stablecoins são um fator.
Do mesmo modo, o Presidente da SEC, Gary Gensler, e o Presidente da Reserva Federal, Jerome Powell, pediram uma regulamentação mais rígida às stablecoins.
Conquanto inúmeros veículos tenham mencionado que uma legislação sobre stablecoins pode vir até o final do ano, com destaque aqui para o Grupo de Trabalho do Presidente Biden (PWG) que se reuniu para discutir a legislação sobre stablecoins, a verdade é que não é a primeira vez que isto acontece.
A recomendação do Grupo de Trabalho do Presidente sobre Mercados Financeiros (PGW).
O Grupo de Trabalho do Presidente sobre Mercados Financeiros (PGW), grupo que inclui vários reguladores financeiros, emitiu seu primeiro relatório sobre stablecoins em novembro de 2021.
E a recomendação do PWG, neste relatório, foi para que o Congresso Americano aprove legislação para fortalecer a supervisão das stablecoins, no sentido de exigir que emissores não bancários sigam regras semelhantes às dos bancos, e para esclarecer a responsabilidade de diferentes reguladores.
Todavia, antecipando que o Congresso poderia não agir com a urgência que o tema requer, tal relatório também estabelece as bases para a regulamentação federal direta, um curso que enfrenta a oposição da indústria de stablecoins e do Partido Republicanos, como já mencionado nos parágrafos anteriores.
A urgência por uma rápida clareza regulatória após o colapso do Ecossistema Terra/Luna
Janet Yellen, Secretária do Tesouro dos Estados Unidos, pressionou para que houvesse regulamentação durante seu testemunho anual perante o Comitê Bancário do Senado, um dia depois que o consumidores foram prejudicados pelo colapso no preço da stablecoin algoritma Terra (UST).
Este também foi o posicionamento do Federal Reserve em relatório publicado no mesmo dia da audiência pública de Yellen (9 de maio de 2022), do qual constou a conclusão de que "o setor de stablecoin continuou a crescer rapidamente e continua exposto a riscos de liquidez".
Durante o Consensus 2022, um mês depois o relatório do FED (Banco Central Norte Americano), legisladores mostraram preocupação no sentido de que a falta de clareza regulatória pode estar colocando freios no setor, além de destacarem que o recente colapso do TerraUSD (UST) só mostrou a urgência da aprovação de regras de supervisão às stablecoins, para os que defendem uma regulação urgente.
Neste evento, a Senadora americana Kirsten Gillibrand disse que "acabamos de ter uma crise financeira, acabamos de ter um colapso, e tudo isso porque nos falta uma regulamentação, e não é justo para a indústria não ter nenhuma regulamentação para protegê-los".
Ainda, os legisladores sugeriram na ocasião que a regulação de stablecoins estivesse em uma proposta legislativa ampla e clara, não só sobre stablecoins, mas que abordasse tudo. E defenderam o projeto de lei Gillibrand-Lummis.
Os prós e contras de uma proposta normativa bipartidária: o projeto de lei bipartidário Gillibrand-Lummis
Em painel específico sobre regulação, a Senadora Gillibrand se referiu especificamente ao projeto de lei bipartidário elaborado por ela, senadora representante do partido democrata, e pela senadora Cynthia Lummis, do Partido Republicano.
Cynthia Lummis também já tinha comentado sobre o esforço conjunto para a elaboração da citada iniciativa bipartidária no Bitcoin Miami 2022, que pretende abranger desde regras destinadas às corretoras de criptomoedas e aos emissores e prestadores de serviços envolvendo stablecoins, até questões específicas sobre tributação.
Para os críticos do projeto Gillibrand-Lummis, como Todd Phillips do the Center for American Progress, a proposta legislativa bipartidária cria novos caminhos para que as startups com projetos baseados em tokens possam contornar as leis de valores mobiliários, permitido que os investidores se esquivem dos impostos sobre transações com cripto.
Já Gary Gensler, presidente da Comissão de Valores Mobiliários e Câmbio, tem defendido que a maioria dos ativos digitais provavelmente estão sob a jurisdição de sua agência, defendendo posição oposta à senadora Lummis e aos players da indústria que desejam se afastar da supervisão da "CVM" americana.
Os EUA conseguirão eliminar os entraves à aprovação de uma lei federal sobre stablecoins até o final de 2022?
Durante muito tempo, Washington se mostrou relutante sempre que surgiu a questão da supervisão federal sobre as stablecoins.
Por mais que agora o governo Biden esteja pressionando por uma supervisão mais dura e rápida para as stablecoins, muitas questões envolvidas ainda estão sem resposta.
Será que um projeto de lei bipartidário e abrangente, como o apresentado por Gillibrand e Lummis, é a melhor solução para trazer melhor clareza ao impacto das stablecoins no mercado financeiro como um todo?
Não seria melhor agrupar a regulamentação de stablecoins com outras questões relativas à ativos digitais? Ou isto poderia atrasar ainda mais uma resposta legislativa ao impacto das stablecoins?
"Existe uma falta de consenso sobre como regular 'stablecoins' tanto no Congresso Americano, quanto no vasto número de agências que desejam ser responsáveis por sua supervisão; isto sem falar nos inúmeros conflitos sobre regulamentos internos. Estes são os obstáculos que devem ser superados para tão desejada aprovação até o final de 2022."