O recente julgamento do recurso especial 2.127.038 e sua importância para a penhora de criptoativos
quinta-feira, 10 de abril de 2025
Atualizado às 07:31
Recentemente, a 3ª turma do STJ julgou o recurso especial 2.127.038 , tendo sido relator o ministro Humberto Martins.
No julgamento, ocorrido em 18/2/25, a Corte entendeu que:
"RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. POSSIBILIDADE DE EXPEDIÇÃO DE OFÍCIO ÀS CORRETORAS DE CRIPTOATIVOS COM A FINALIDADE DE LOCALIZAR E PENHORAR ATIVOS FINANCEIROS DO DEVEDOR. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
1. A controvérsia consiste em saber se, em cumprimento de sentença, é possível a expedição de ofício às corretoras de criptoativos com o intuito de localizar e penhorar eventuais ativos financeiros da parte executada.
2. Com efeito, esta Corte Superior adota o entendimento de que, embora "deva a execução ser processada do modo menos gravoso ao devedor, ela há de realizar-se no interesse do credor, que busca, pela penhora, a satisfação da dívida inadimplida" (AgInt no AREsp 956.931/SP, relatora ministra Maria Isabel Gallotti, 4ª turma, julgado em 21/3/17, DJe de 10/4/17).
3. Registre-se que a IN RFB - Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil 1.888/19 institui e disciplina a obrigatoriedade de prestação de informações relativas às operações realizadas com criptoativos à secretaria especial da Receita Federal do Brasil.
4. Trata-se de um ativo financeiro passível de tributação, cujas operações devem ser declaradas à Receita Federal, sendo, portanto, um bem de valor econômico, suscetível de eventual constrição. Apesar de não serem moeda de curso legal, os criptoativos podem ser usados como forma de pagamento e como reserva de valor.
5. Em observância aos princípios que norteiam o processo de execução e o interesse das partes credora e devedora, é plenamente possível a expedição de ofício às corretoras de criptomoedas (exchanges) ou a utilização de medidas investigativas para acessar as carteiras digitais do devedor, tal qual pleiteado pela parte credora para eventual penhora.
6. Em virtude do exame do mérito, por meio do qual foi acolhida a tese sustentada pelo recorrente, fica prejudicada a análise da divergência jurisprudencial. Recurso especial provido".
Conforme se nota, o STJ bem estabeleceu que é "plenamente possível a expedição de ofício às corretoras de criptomoedas (exchanges) ou a utilização de medidas investigativas para acessar as carteiras digitais do devedor, tal qual pleiteado pela parte credora para eventual penhora".
Para entendermos a relevância desse julgamento, vale lembrarmos que "Criptoativos são bens virtuais, protegidos por criptografia, com registros exclusivamente digitais - ou seja, não são ativos físicos. As operações podem ser feitas entre pessoas físicas ou empresas, sem a necessidade de passar por uma instituição financeira. Entre os criptoativos, estão, por exemplo, as criptomoedas, como o Bitcoin. A categoria também envolve outros produtos, como tokens (contratos que representam a custódia de algum ativo) e stablecoins (moedas vinculadas a outros ativos, como o dólar, por exemplo). Ainda fazem parte desse mercado as moedas-meme, que têm chamado atenção após valorizações expressivas - mesmo sendo baseadas apenas em especulação. É o caso da Pepecoin, que avançou quase 7.000% em valor de mercado em menos de 20 dias de existência" 1
Dentre os criptoativos, se destacam as criptomoedas, ou moedas virtuais, asseguradas por criptografia, sem nenhuma autoridade central responsável por sua governança. Em sua maioria, são negociadas através de exchanges, conforme definição da instrução normativa 1.888/19 da Receita Federal do Brasil.
No comunicado do Banco Central 31.379/17, destacou-se que: "Considerando o crescente interesse dos agentes econômicos (sociedade e instituições) nas denominadas moedas virtuais, o Banco Central do Brasil alerta que estas não são emitidas nem garantidas por qualquer autoridade monetária, por isso não têm garantia de conversão para moedas soberanas, e tampouco são lastreadas em ativo real de qualquer espécie, ficando todo o risco com os detentores. Seu valor decorre exclusivamente da confiança conferida pelos indivíduos ao seu emissor. A compra e a guarda das denominadas moedas virtuais com finalidade especulativa estão sujeitas a riscos imponderáveis, incluindo, nesse caso, a possibilidade de perda de todo o capital investido, além da típica variação de seu preço. O armazenamento das moedas virtuais também apresenta o risco de o detentor desses ativos sofrer perdas patrimoniais".
A instrução normativa 1.888/19 da Receita Federal do Brasil, por sua vez, em seu art. 5º, definiu os termos de criptoativos e exchanges, além de sinalizar pela obrigatoriedade da prestação de informações ao órgão relativas às operações desses ativos: "I - criptoativo: a representação digital de valor denominada em sua própria unidade de conta, cujo preço pode ser expresso em moeda soberana local ou estrangeira, transacionado eletronicamente com a utilização de criptografia e de tecnologias de registros distribuídos, que pode ser utilizado como forma de investimento, instrumento de transferência de valores ou acesso a serviços, e que não constitui moeda de curso legal; e II - exchange de criptoativo: a pessoa jurídica, ainda que não financeira, que oferece serviços referentes a operações realizadas com criptoativos, inclusive intermediação, negociação ou custódia, e que pode aceitar quaisquer meios de pagamento, inclusive outros criptoativos. Parágrafo único. Incluem-se no conceito de intermediação de operações realizadas com criptoativos, a disponibilização de ambientes para a realização das operações de compra e venda de criptoativo realizadas entre os próprios usuários de seus serviços".
A lei 14.478/22, seguida pelo decreto federal 11.563, de 13/6/23, delineou que caberá ao Banco Central do Brasil supervisionar o mercado de criptoativos, definindo regras e autorizando as licenças específicas para as operações das exchanges.
E quanto à possibilidade de expedição de ofícios às corretoras de criptoativos e posterior constrição, diversos são os julgados do TJ/SP autorizando a penhora:
"AGRAVO DE INSTRUMENTO - EXECUÇÃO - Pedido de expedição de ofícios a corretoras de criptomoedas - Indeferimento - Criptoativos que são reconhecidos pela Receita Federal como ativos financeiros, a serem declarados perante o Fisco - Bens passíveis de penhora, não abrangidos pelo sistema Sisbajud - Admissibilidade da medida - Precedentes deste Tribunal - Diligência que não pode ser realizada diretamente pelo credor sem intervenção do Judiciário - Desnecessidade de expedição de ofício a empresa que possui crédito dos executados, ante esclarecimentos prestados - Decisão reformada em parte - Recurso parcialmente provido" (AI 2056225-06.2023.8.26.0000).
"AGRAVO DE INSTRUMENTO. Cumprimento de sentença. Insurgência contra decisão que indeferiu pedido de penhora de criptomoedas, ante a falta de prova de sua existência. Cabimento. Pesquisa que não é meramente especulativa, porquanto a execução se desenvolve no interesse do credor. Informações sobre a movimentação de criptoativos tem caráter sigiloso, sendo oneroso para a agravante obter quaisquer dados nesse sentido. Necessidade de intervenção do Poder Judiciário. Decisão reformada. Recurso provido". (AI 2131324-79.2023.8.26.0000).
"Agravo de instrumento. Execução fundada em título executivo extrajudicial. Decisão judicial que indeferiu pedido do exequente da expedição de ofício às empresas que realizam a custódia de criptomoedas. Recurso do exequente. Cabimento da medida. 1. Obtenção da informação que reclama intervenção judicial. 2. Providência que atende à efetividade do processo de execução. Recurso provido." (AI 2255880-90.2022.8.26.0000).
É verdade que existem entendimentos minoritários no sentido de que esses bens não poderiam ser objeto de penhora, por não serem considerados exatamente dinheiro e/ou valores mobiliários; ou mesmo no sentido de que seria inviável a expedição de ofício às corretoras específicas para a obtenção de informações sobre os ativos virtuais do devedor:
"PENHORA Execução de título extrajudicial Pretensão de pesquisa e penhora de criptoativos em nome do executado Expedição de ofício para operadoras de criptomoedas. Ausência de regulamentação no Brasil acerca da comercialização de moedas criptografadas Impossibilidade: De rigor o indeferimento do pedido de expedição de ofícios para pesquisas e posterior penhora de criptoativos em nome do executado, em razão da ausência de regulamentação pelo Banco Central da comercialização e circulação, bem como da ausência de indicativos específicos da existência de ativos em nome do executado". (AI 2223718-76.2021.8.26.0000).
"AGRAVO DE INSTRUMENTO. Cumprimento de sentença. Decisão que indeferiu o pedido da exequente de expedição de ofícios às corretoras de criptomoedas, a fim de buscar investimentos de titularidade da executada. Irresignação. Descabimento. Pedido genérico. Exequente que não trouxe qualquer prova de que a executada possua investimentos em criptomoedas ou que seja titular de bens dessa natureza. Precedente deste E. TJ/SP. Decisão mantida. Recurso não provido". (AI 2146117-23.2023.8.26.0000).
Estes entendimentos, além de minoritários, vão na contramão do moderno processo civil, que se pauta em um modelo cooperativo e na necessidade de o magistrado auxiliar o credor a localizar o devedor e seus bens, conforme tão bem preconizam os arts. 6º e 772, III, do CPC.
A doutrina brasileira reforça esta conclusão, ao claramente estipular, nos termos do art. 772 do CPC/15, que o juiz pode, em qualquer momento do processo, determinar que sujeitos indicados pelo exequente forneçam informações em geral relacionadas ao objeto da execução, tais como documentos e dados que tenham em seu poder, assinando-lhes prazo razoável.
Luiz Guilherme Marinoni2 bem aponta que "o inciso III dá ao juiz o poder de exigir de qualquer pessoa natural ou jurídica elementos que sejam relevantes para a execução, tais como informações sobre bens penhoráveis, sua localização ou eventuais ônus existentes. Para a satisfação dessa ordem, o juiz pode valer-se dos poderes do art. 773, além de eventualmente aplicar as sanções do art. 774, parágrafo único, quando cabível".
Luiz Guilherme Marinoni3, quanto ao art. 6º do CPC/15, ainda acrescenta que: "o princípio da colaboração estrutura-se a partir da previsão de regras que devem ser seguidas pelo juiz na condução do processo. O juiz tem deveres de esclarecimento, de diálogo, de prevenção, e de auxílio para com os litigantes. (...). Pense-se, por exemplo, no exequente que não encontra bens penhoráveis do executado para satisfação de seu crédito. É tarefa do juiz auxiliá-lo na identificação do patrimônio do executado a fim de que a tutela executiva possa ser realizada de forma efetiva".
Vale reforçar que a ideia da cooperação do magistrado na localização de bens do devedor, na ação de execução, também foi vista como essencial pelo professor Flávio Luiz Yarshell4, para quem "deixar o interessado entregue à própria sorte na busca de dados que, por circunstâncias jurídicas (como a preservação do sigilo e da intimidade) ou práticas, não pode razoavelmente atingir é ignorar que o cumprimento das decisões judiciais (ou mesmo dos direitos que o ordenamento indica como reconhecidos em títulos extrajudiciais) interessa antes de tudo ao Estado (...)".
Seguindo a doutrina acima acerca do princípio da cooperação, corretos são os entendimentos jurisdicionais do TJ/SP que determinam que as corretoras informem se o devedor tem ativos virtuais que sejam passíveis de constrição, conforme abaixo:
"AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE EXECUÇÃO. Expedição de ofício para as empresas Foxbit, Mercado Bitcoin, Bitcointrade, Brasil Bitcoin e Novadax, na tentativa de penhora de criptomoedas/bitcoins. Indeferimento. Irresignação da parte exequente. Cabimento. Feito executivo ajuizado há anos. Tentativas frustradas de obtenção do crédito. Necessidade de intervenção judicial para obtenção das informações pleiteadas, observado, ademais, que as aplicações em bitcoins ainda não possuem regulamentação pelo Bacen. Recurso provido". (AI 2207750-69.2022.8.26.0000).
Interessante, neste ponto, é o julgado do TJ/MT que autoriza, inclusive, a expedição de ofício à Receita Federal do Brasil, para a obtenção de informações quanto à existência de criptoativos em nome do devedor:
"AGRAVANTE - DEBORA BATTISTOTTI BRAGA PAIVA AGRAVANTE - PAULINO PAIVA MARIANO AGRAVADO - ARTHUR FILIPOVITCH FERREIRA PRESIDIU O JULGAMENTO O EXMO. SR. DES. SEBASTIÃO DE MORAES FILHO E M E N T A AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO MONITÓRIA -INDEFERIMENTO DE TUTELA DE EVIDÊNCIA INDEFERIDA - BLOQUEIO DE CRIPTOMOEDAS - ALEGAÇÃO DE GOLPE/FRAUDE - EXPEDIÇÃO DE OFÍCIO À RECEITA FEDERAL PARA REQUISIÇÃO DE SOBRE POSSÍVEIS ATIVOS DO DEVEDOR EM CRIPTOMOEDAS, PARA FINS DE PENHORA - POSSIBILIDADE - ALTERAÇÃO DO CENÁRIO NACIONAL COM A INSTRUÇÃO NORMATIVA 1.888/2016 DA RECEITA FEDERAL - AGRAVO PROVIDO. Com a alteração do cenário nacional após a instrução normativa 1.888, de 3/5/19 - em que a Receita Federal passou a obrigar o fornecimento, por corretoras (exchanges), de informações sobre operações com criptomoedas, como biticoins -abriu-se um caminho para facilitar a vida dos credores que buscam a penhora de ativos em criptomoedas. Neste contexto, afigura-se viável a expedição de ofício à Receita Federal para requisitar das corretoras cadastradas se estão como custodiantes de possíveis ativos do devedor em criptomoedas, para fins de penhora".5
Nesse passo, o STJ, ao apreciar recentemente o Recurso Especial n. 2127038 - SP, confirmou a possibilidade de expedir-se ofício às corretoras de criptomoedas (exchanges) para permitir-se a efetivação de eventual constrição; em linha com a melhor orientação doutrinária e jurisprudencial sobre o tema da penhora de criptoativos.
1 Disponível aqui. Acesso em 4/9/23.
2 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: RT, 2015. p. 842.
3 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: RT, 2015. p. 155.
4 YARSHELL, Flávio Luiz. Antecipação da Prova sem o Requisito da Urgência e Direito Autônomo à Prova. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 183.
5 Disponível aqui.