A coexistência do bem de família legal com o convencional, na visão do STJ
quinta-feira, 12 de dezembro de 2024
Atualizado às 14:51
A proteção do bem de família está disciplinada nos arts. 1º a 5º da lei 8.009/901, tendo o CC de 2002 regrado o regime do bem de família convencional nos arts. 1711 a 17122 e, por fim, o CPC, prevê no art. 833, I, a impenhorabilidade dos "(..)bens inalienáveis e os declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução" ao passo em que o art. 832, caput, reza que "(...) não estão sujeitos à execução os bens que a lei considera impenhoráveis ou inalienáveis."
À luz do advento do CPC/15, dúvida emergiu quanto à suposta revogação dos arts. 1º e 5º da lei 8.009/90 pelo CPC em vigor. O tema foi debatido recentemente pela Primeira Turma do STJ:
"CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. REVOGAÇÃO TÁCITA DA LEI 8.009/1990 PELO CPC. NÃO OCORRÊNCIA. BEM DE FAMÍLIA LEGAL E VOLUNTÁRIO. COEXISTÊNCIA. RECURSO PROVIDO.
1. O CPC declara não sujeitos à execução os bens arrolados em seu art. 833 e, na forma do art. 832, aqueles que a lei considera impenhoráveis ou inalienáveis. Assim como ocorreu sob a legislação processual passada, as hipóteses de impenhorabilidade previstas no atual CPC coexistem com a regulamentação do bem de família, que, segundo a tradição brasileira, é dada por outros diplomas legais, como o CC de 1916, o CC de 2002 e a lei 8.009/90.
2. o fato de o CPC afirmar em seu art. 833, I, que são impenhoráveis os bens "declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução" não implica a revogação tácita da lei 8.009/90, assim como não o fez o art. 1.711 do CC, ao tratar do bem de família voluntário. Como já se decidiu no STJ, "O bem de família legal (lei 8.009/90) e o convencional CC coexistem no ordenamento jurídico, harmoniosamente" (REsp 1.792.265/SP, relator ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe de 14/3/22).
3. Conforme a jurisprudência do STJ, para o reconhecimento da proteção da lei 8.009/90 não é necessária a prova de que o imóvel onde reside seja o único de sua propriedade.
4. Recurso especial provido."
(STJ, REsp. 2+133+984/RJ, Primeira Turma, rel. min. Gurgel de Faria, maioria de votos., j. 2.10.2024, grifou-se)
O voto condutor bem ponderou:
"Trata-se de recurso especial interposto por JOSEPH BRAIS, com fundamento no art. 105, inciso III, alíneas a e c, da CF/88, no qual se insurge contra o acórdão proferido pelo TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 2ª REGIÃO assim ementado (fl. 126):
'ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO FISCAL. RESSARCIMENTO AO ERÁRIO. IMPENHORABILIDADE. BEM DE FAMÍLIA. ART. 833 DOCPC/15. REVOGAÇÃO TÁCITA DA LEI 8.009/90. RECURSO PROVIDO.
1. Agravo de instrumento interposto contra decisão que, nos autos de execução fiscal, reconheceu a impenhorabilidade de imóvel do coexecutado, nos termos do art. 1º e 5º da lei 8.009/90.
2. A questão devolvida ao Tribunal no âmbito deste recurso diz respeito ao imóvel objeto de constrição na execução fiscal originária, de propriedade da agravante, que alega a impenhorabilidade do bem, por ser destinado à sua residência e de sua família, tratando-se de bem de família.
3. Merece ser ressaltada a existência de entendimento doutrinário respeitável - conforme, por exemplo, o apresentado pelo prof. Leonardo Greco em palestra realizada na EMARF - Escola da Magistratura Regional Federal da 2ª Região, em 27/10/17, o atual CPC/15, ao dispor sobre as impenhorabilidades, em seu art. 833, incisos I a XII, não incluiu, dentre essas hipóteses, os imóveis ou os chamados bens de família - que se entenderia, apenas, como sendo aqueles voluntariamente definidos e registrados como tal, na forma dos arts. 1.711 a 1.722, CC, o que não ocorre no caso dos autos, havendo, na medida em que a nova lei processual civil regula totalmente a matéria das impenhorabilidades, a revogação tácita da Lei 8.009/90.
4. A própria noção de bem de família, anteriormente contida na lei 8.009/90, já vinha sendo relativizada, para permitir a penhora do imóvel - ainda que fosse a única residência dos executados -, no caso de execução de débitos diretamente decorrentes do próprio imóvel, como, por exemplo, as despesas de condomínio ou débitos oriundos de financiamento habitacional destinado à aquisição do imóvel. Assim, reconhecida a revogação tácita da lei 8.009/90 pela nova norma processual, atualmente em vigor, são inaplicáveis, por conseguinte, os dispositivos da lei revogada mencionados pela embargante em suas razões. Precedentes desta 8ª Turma Especializada.
5. Outrossim, restou comprovado nos autos que o coexecutado, além de ser proprietário do imóvel objeto do presente agravo, é meeiro da fração de sua esposa em outros dois imóveis localizados no município de Cabo Frio/RJ.
6. Agravo de instrumento provido.'
(...)
Discute-se no processo se a proteção legal conferida pelos arts. 1º e 5º da lei 8.009/90 ao bem de família teria sido tacitamente revogada pelo CPC.
A tese de que esses dispositivos foram revogados contraria o próprio CPC, que admite a convivência com outras declarações legais de impenhorabilidade ao estabelecer, antes de apresentar o seu próprio rol, o seguinte:
Art. 832. Não estão sujeitos à execução os bens que a lei considera impenhoráveis ou inalienáveis.
Além de contrariar esse dispositivo, o entendimento de que o art. 833 do CPC teria exaurido as hipóteses de impenhorabilidade também é incompatível com a tradição jurídica brasileira, na qual o bem de família foi sempre regulado por outros diplomas e normas, como o CC de 1916 (art. 70 e seguintes), o CC de 2002 (arts. 1.711 e seguintes) e a lei 8.009/90.
Por outro lado, o fato do CPC ter afirmado em seu art. 833, I, que são impenhoráveis os bens "declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução" não implica a revogação tácita do art. 5º, caput e parágrafo único, da lei 8.009/90, que, cuidando de hipótese diversa, declara a impenhorabilidade do bem de família de menor valor, quando outro não for indicado no registro público. O texto legal é o seguinte:
Art. 5º Para os efeitos de impenhorabilidade, de que trata esta lei, considera-se residência um único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente.
Parágrafo único. Na hipótese de o casal, ou entidade familiar, ser possuidor de vários imóveis utilizados como residência, a impenhorabilidade recairá sobre o de menor valor, salvo se outro tiver sido registrado, para esse fim, no Registro de Imóveis e na forma do art. 70 do CC.
O bem de família voluntário, que encontra previsão no art. 1.711 do CC e no art. 833, I, do CPC, mantém com o bem de família legal (lei 8.009/90) relação de coexistência e não de exclusão. Nesse sentido:
'RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA. BEM DE FAMÍLIA LEGAL E CONVENCIONAL. COEXISTÊNCIA E PARTICULARIDADES. BEM DE FAMÍLIA LEGAL. OBRIGAÇÕES PREEXISTENTES À AQUISIÇÃO DO BEM. BEM DE FAMÍLIA CONVENCIONAL. OBRIGAÇÕES POSTERIORES À INSTITUIÇÃO.
1. O bem de família legal (lei 8.009/90) e o convencional (CC) coexistem no ordenamento jurídico, harmoniosamente. A disciplina legal tem como instituidor o próprio Estado e volta-se para o sujeito de direito - entidade familiar -, pretendendo resguardar-lhe a dignidade por meio da proteção do imóvel que lhe sirva de residência. O bem de família convencional, decorrente da vontade do instituidor, objetiva, primordialmente, a proteção do patrimônio contra eventual execução forçada de dívidas do proprietário do bem.
2. O bem de família legal dispensa a realização de ato jurídico, bastando para sua formalização que o imóvel se destine à residência familiar. Por sua vez, para o voluntário, o CC condiciona a validade da escolha do imóvel à formalização por escritura pública e à circunstância de que seu valor não ultrapasse 1/3 do patrimônio líquido existente no momento da afetação.
3. Nos termos da lei 8.009/90, para que a impenhorabilidade tenha validade, além de ser utilizado como residência pela entidade familiar, o imóvel será sempre o de menor valor, caso o beneficiário possua outros. Já na hipótese convencional, esse requisito é dispensável e o valor do imóvel é considerado apenas em relação ao patrimônio total em que inserido o bem.
4. Nas situações em que o sujeito possua mais de um bem imóvel em que resida, a impenhorabilidade poderá incidir sobre imóvel de maior valor caso tenha sido instituído, formalmente, como bem de família, no Registro de Imóveis (art. 1.711, CC/02) ou, caso não haja instituição voluntária formal, automaticamente, a impenhorabilidade recairá sobre o imóvel de menor valor (art. 5°, parágrafo único, da lei 8.009/90).
(...)
(REsp 1.792.265/SP, relator ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 14/12/21, DJe de 14/3/22 - sem destaque no original.)
Assim, ao contrário do que entendeu o Tribunal de origem, o fato do imóvel não estar registrado como bem de família não o torna penhorável, haja vista o que estabelecem os arts. 1º e 5º da lei 8.009/90.
(...)
Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial, para restabelecer da decisão de primeira instância que declarou a impenhorabilidade do bem de família.
É o voto.
(STJ, REsp. 2.133.984/RJ, Primeira Turma, rel. min. Gurgel de Faria, maioria de votos., j. 2.10.2024, grifou-se)
O julgado soa correto pois, (i) malgrado o art. 833, I, do CPC declare como impenhorável os bens declarados por ato voluntário (bem de família convencional), não sujeitos à execução, é certo que o art. 832 não faz restrição alguma da impenhorabilidade ficar renegada àquelas instituídas por ato voluntário. Do contrário, é cristalino em dizer que não estão sujeitos à execução os bens que a lei considera impenhoráveis.
Ainda, (ii) não se pode perder de vista que ao arts. 1º a 5º da lei 8.009/90 tratam do regime jurídico da impenhorabilidade do bem de família, ali contemplando tanto a regulamentação do bem de família legal, quanto o bem de família convencional, previsto no art. 5º, parágrafo único, da lei especial. Logo, não há que se interpretar que a redação do art. 833, I teve o condão de revogar tacitamente toda a disciplina da lei 8.009/90, até porque, em havendo potencial conflito entre normas, há de se prestigiar o princípio da especialidade.
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1 "Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.
Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados.
Art. 2º Excluem-se da impenhorabilidade os veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos.
Parágrafo único. No caso de imóvel locado, a impenhorabilidade aplica-se aos bens móveis quitados que guarneçam a residência e que sejam de propriedade do locatário, observado o disposto neste artigo.
Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
I - em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias; disponível aqui.
II - pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato;
III -- pelo credor de pensão alimentícia;
III - pelo credor da pensão alimentícia, resguardados os direitos, sobre o bem, do seu coproprietário que, com o devedor, integre união estável ou conjugal, observadas as hipóteses em que ambos responderão pela dívida; disponível aqui.
IV - para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar;
V - para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar;
VI - por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens.
VII - por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação. Disponível aqui.
VII - por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação; e disponível aqui.
VII - por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação. Disponível aqui.
VIII - para cobrança de crédito constituído pela Procuradoria-Geral Federal em decorrência de benefício previdenciário ou assistencial recebido indevidamente por dolo, fraude ou coação, inclusive por terceiro que sabia ou deveria saber da origem ilícita dos recursos. Disponível aqui.
Art. 4º Não se beneficiará do disposto nesta lei aquele que, sabendo-se insolvente, adquire de má-fé imóvel mais valioso para transferir a residência familiar, desfazendo-se ou não da moradia antiga.
§ 1º Neste caso, poderá o juiz, na respectiva ação do credor, transferir a impenhorabilidade para a moradia familiar anterior, ou anular-lhe a venda, liberando a mais valiosa para execução ou concurso, conforme a hipótese.
§ 2º Quando a residência familiar constituir-se em imóvel rural, a impenhorabilidade restringir-se-á à sede de moradia, com os respectivos bens móveis, e, nos casos do disponível aqui à área limitada como pequena propriedade rural.
Art. 5º Para os efeitos de impenhorabilidade, de que trata esta lei, considera-se residência um único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente."
Parágrafo único. Na hipótese de o casal, ou entidade familiar, ser possuidor de vários imóveis utilizados como residência, a impenhorabilidade recairá sobre o de menor valor, salvo se outro tiver sido registrado, para esse fim, no Registro de Imóveis e na forma do disponível aqui.
2 "Art. 1.711. Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial.
Parágrafo único. O terceiro poderá igualmente instituir bem de família por testamento ou doação, dependendo a eficácia do ato da aceitação expressa de ambos os cônjuges beneficiados ou da entidade familiar beneficiada.
Art. 1.712. O bem de família consistirá em prédio residencial urbano ou rural, com suas pertenças e acessórios, destinando-se em ambos os casos a domicílio familiar, e poderá abranger valores mobiliários, cuja renda será aplicada na conservação do imóvel e no sustento da família.
Art. 1.713. Os valores mobiliários, destinados aos fins previstos no artigo antecedente, não poderão exceder o valor do prédio instituído em bem de família, à época de sua instituição."