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Desistência da ação e repropositura da ação

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Atualizado às 08:28

Quem nunca propôs uma demanda e pensou em desistir dela logo depois que ela foi distribuída para um determinado juízo que atire a primeira pedra. No dia a dia forense, é natural que, após um determinado tempo atuando em determinada localidade, o advogado comece a se familiarizar com a "forma de pensar" de determinados magistrados que atuam em determinadas unidades jurisdicionais (varas).

Assim, após da demanda ser proposta, em atenção aos princípios do juiz natural e da imparcialidade, há um sorteio para se decidir para qual vara será distribuído o processo (nas comarcas em que há mais de uma vara com a mesma competência, obviamente). De vez em quando, pode acontecer de, na vara sorteada, estar um juiz que, de antemão, já se sabe não ser simpático a uma determinada tese jurídica, por já ter se manifestado contrariamente a ela em demandas anteriores.

Neste momento, após a distribuição do processo e antes da citação do réu, pode surgir o desejo da parte de desistir da demanda e tentar a sorte novamente para ver se, na próxima vez, o juiz sorteado seja outro que pense diferentemente daquele primeiro.

Pensando nesse tipo de situação, o legislador inseriu no Código de Processo Civil (CPC), o inciso II do art. 286, que dispõe o seguinte:

"Art. 286. Serão distribuídas por dependência as causas de qualquer natureza:

(...)

II - quando, tendo sido extinto o processo sem resolução de mérito, for reiterado o pedido, ainda que em litisconsórcio com outros autores ou que sejam parcialmente alterados os réus da demanda".

Em razão do disposto acima, se for proposta uma ação e o autor desistir dela, o juiz deve extinguir o processo sem resolução do mérito com base no art. 485, inciso VIII, do CPC ("homologar a desistência da ação").

Uma vez reproposta idêntica demanda, com as mesmas partes, pedido e causa de pedir (CPC, art. 337, § 2º), deve incidir o art. 286, inciso II. Nesse caso, portanto, a nova demanda, idêntica a anterior, reproposta, deve ser distribuída ao mesmo juízo que homologou a desistência da ação anterior. Ou seja, esta é a distribuição "por dependência" ao juízo que primeiro teve contato com a ação.

Dessa maneira, evita-se que seja violado o princípio do juiz natural e da imparcialidade e que o sistema de sorteio seja rigorosamente respeitado. Como se sabe, nosso sistema processual proíbe que a parte escolha um juiz ou juíza para julgar o seu processo. Tampouco é possível pedir o seu afastamento fora das hipóteses de impedimento e suspeição que estão elencadas nos artigos 144 e 145 do CPC.

Apesar disso, em decisão recente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) admitiu existir uma exceção à regra do art. 286, inciso II, do CPC, conforme se pode depreender da leitura da decisão abaixo ementada:

"PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR PERDAS E DANOS. AJUIZAMENTO ANTERIOR NO JUIZADO ESPECIAL CÍVEL ESTADUAL. DESISTÊNCIA DO AUTOR. EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO. NOVO AJUIZAMENTO NA JUSTIÇA COMUM. POSSIBILIDADE. VEDAÇÃO NÃO PREVISTA NA LEI Nº 9.099/1995. APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CPC/2015. IMPOSSIBILIDADE. ART. 286, II, DO CPC/2015. APLICAÇÃO PARA AÇÕES AJUIZADAS PERANTE A MESMA JUSTIÇA. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL PREJUDICADO.

1. Ação de indenização, ajuizada em 21/5/2019, da qual foi extraído o presente recurso especial, interposto em 22/2/2021 e concluso ao gabinete em 15/10/2021.

2. O propósito recursal é decidir se, sendo ajuizada ação no Juizado Especial Cível Estadual, subsequentemente extinta sem resolução de mérito em razão da desistência do autor, é cabível nova propositura na Justiça Comum.

3. Segundo a jurisprudência desta Corte, cabe ao autor escolher entre o processamento da ação perante o Juizado Especial Cível Estadual, sob o rito da lei 9.099/1995, ou promover a ação perante Justiça Comum, sob o rito do Código de Processo Civil.

4. A lei 9.099/1995 não veda que o autor desista da ação ajuizada perante o JEC e, após, promova a nova ação na Justiça Comum, tampouco determina que, nessa hipótese, a nova ação deve ser distribuída ao Juízo do JEC, por dependência.

5. A aplicação subsidiária do CPC ao rito da Lei nº 9.099/1995 não foi admitida pelo legislador, tendo em vista que deliberadamente deixou de prever regra nesse sentido, diversamente como fez no âmbito penal, autorizando expressamente a aplicação subsidiária do CPP. Ademais, quando a lei objetivou a aplicação de determinada norma do CPC ao microssistema do JEC, o fez expressamente.

6. O art. 286, II, do CPC/2015 é uma regra pensada pelo legislador para as ações ajuizadas perante a mesma Justiça, que seguem o rito do referido Código, sem levar em considerações as peculiaridades de outros sistemas, como o do JEC.

7. O objetivo do art. 286, II, do CPC/2015 é de coibir práticas como a de patronos que, em vez de ajuizar uma ação em litisconsórcio ativo, ajuízam diversas ações similares simultaneamente, obtendo distribuição para Juízos distintos e, na sequência, desistem das ações em trâmite nos Juízos nos quais não obtiveram liminar e, para os autores dessas ações, postulam litisconsórcio sucessivo ou assistência litisconsorcial, no Juízo em que a liminar foi deferida.

8. A desistência pelo autor da ação proposta no JEC, para ajuizá-la na Justiça Comum não se trata de má-fé processual, mas de escolha legítima de optar pelo rito processual mais completo, ao vislumbrar, por exemplo, a necessidade de uma instrução mais extensa, sendo essa opção, ademais, um risco assumido pelo próprio autor, diante dos ônus de sucumbência e da maior gama de recursos que também ficará à disposição da outra parte.

9. Portanto, sendo ajuizada ação no Juizado Especial Cível Estadual, subsequentemente extinta sem resolução de mérito em razão da desistência do autor, é cabível nova propositura na Justiça Comum, não havendo, nessa situação, distribuição por dependência ao primeiro Juízo.

10. Hipótese em que o Tribunal de origem afastou a preliminar de prevenção do Juízo do JEC, arguida pelo recorrente em sua contestação, uma vez que o autor tem a faculdade de optar pela Justiça Comum, ao vislumbrar a necessidade de produção probatória mais extensa e incompatível com o JEC.

11. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, não provido.

(REsp n. 2.045.638/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 25/4/2023, DJe de 27/4/2023.)".

Como é possível perceber, no caso concreto, o autor propôs demanda indenizatória perante o Juizado Especial Cível (JEC), nos termos da lei 9.099/1995. Em seguida, houve a desistência da ação perante o JEC, que foi homologada nos moldes do art. 485, VIII, do CPC.

Posteriormente, a demanda foi proposta perante a Justiça Comum e lá ela foi julgada no mérito, sem aplicação do art. 286, inciso II, do CPC. Em outras palavras, o processo não foi distribuído por dependência ao juízo do JEC, que homologou a desistência da ação em primeiro lugar.

Em recurso especial, o vencido sustentou perante o STJ a violação do art. 286, inciso II, do CPC, no caso em apreço, pelo fato de o processo não ter sido redistribuído para o JEC e ter permanecido na Justiça Comum, onde foi julgado.

O STJ, por sua vez, ao interpretar o art. 286, inciso II, do CPC, entendeu que tal dispositivo deve ser aplicado somente na hipótese de ações ajuizadas perante "a mesma Justiça". Em outras palavras, se a demanda é proposta perante a Justiça Comum e reproposta perante a Justiça Comum, deve ser aplicado o art. 286, inciso II, do CPC e o segundo processo deve ser distribuído por dependência ao juízo onde tramitou o primeiro. Por outro lado, se a primeira demanda foi proposta perante o JEC e a segunda, ainda que idêntica, após a primeira desistência, foi ajuizada perante a Justiça Comum, não deve haver distribuição por dependência. O processo deve permanecer na Justiça Comum.

A razão para o STJ decidir dessa maneira está no fato de que os procedimentos do JEC e da Justiça Comum são diferentes. No JEC, aplica-se a Lei n. 9.099/1995, na qual se estabelece que a escolha por este procedimento especial é uma "opção do autor" e não é proibida a desistência da ação. Na Justiça Comum, como se extrai da própria decisão, a parte pode legitimamente optar por um "rito processual mais completo, ao vislumbrar, por exemplo, a necessidade de uma instrução mais extensa, sendo essa opção, ademais, um risco assumido pelo próprio autor, diante dos ônus de sucumbência e da maior gama de recursos que também ficará à disposição da outra parte".

Trata-se de uma decisão judicial acertada na qual se leva em consideração as peculiaridades da lei 9.099/95 e não se parte da premissa equivocada de que as partes (ou seus advogados) estão sempre agindo de má-fé e buscando burlar a lei. No mais das vezes, o que se busca é um procedimento que permita uma ampla produção de provas, sem as restrições do JEC, que foi desenhado para causas de menor complexidade.