Citação por meio de aplicativo de celular
quinta-feira, 25 de maio de 2023
Atualizado às 07:23
Como se sabe, a citação1 é o ato pelo qual são convocados o réu, o executado ou o interessado para integrar a relação processual (CPC, art. 248, caput). Daí já é possível entender o tamanho da importância que a citação tem para o processo civil. Tanto isso é verdade que para a validade do processo é indispensável a citação do réu ou do executado (CPC, art. 239), salvo nos casos de improcedência liminar do pedido (CPC, art. 332) e indeferimento da inicial (CPC, arts. 330 e 331). Mesmo com essas exceções, o réu ou o executado, ainda que vitoriosos, são informados do resultado final do processo (CPC, art. 331, § 3º; art. 332, § 2º). Não é por acaso que esse ato de comunicação processual - a citação - é tido como um pressuposto de existência do processo2. Sem citação válida não existe processo.
A forma preferencial de se realizar a citação é por meio eletrônico, de acordo com o caput do art. 246 do CPC, com a redação que lhe foi dada pela Lei n. 14.195/2021. Confira-se:
"A citação será feita preferencialmente por meio eletrônico, no prazo de até 2 (dois) dias úteis, contado da decisão que a determinar, por meio dos endereços eletrônicos indicados pelo citando no banco de dados do Poder Judiciário, conforme regulamento do Conselho Nacional de Justiça".
Da leitura do dispositivo acima não fica claro o que é considerado "meio eletrônico" e o que seria "endereço eletrônico". Seria apenas a citação por e-mail ou os aplicativos de mensagens via celular também estariam aí incluídos nessa ideia de "citação por meio eletrônico"?
A resposta está na Resolução CNJ 455/2022, que em seu art. 2º, inciso I, estabelece que meio eletrônico é "qualquer forma de armazenamento, tráfego de documentos, arquivos digitais e dados". Já o inciso III do mesmo dispositivo afirma que endereço eletrônico é "toda a forma de identificação individualizada para recebimento e envio de comunicação/mensagem digital, tal como correio eletrônico (e-mail), aplicativos de mensagens, perfis em redes sociais, e o Domicílio Judicial Eletrônico".
Apesar de a Resolução CNJ 455/2022 afirmar que "endereço eletrônico" podem ser "e-mail, aplicativos de mensagens e perfis em redes sociais" no inciso III do art. 2º, o art. 18 da mesma norma impõe um meio exclusivo para a citação por meio eletrônico. Veja-se:
"Art. 18. A citação por meio eletrônico será realizada exclusivamente pelo Domicílio Judicial Eletrônico, nos termos do art. 246 do CPC, com exceção da citação por Edital, a ser realizada via DJEN" (grifos nossos).
Portanto, para o CPC e para a Resolução CNJ 455/2022, a citação por meio eletrônico somente pode ser feita pelo Domicílio Judicial Eletrônico. E o que é isso? Pois bem, mais uma vez devemos nos socorrer do site do CNJ, tendo em vista que esta é uma pergunta frequente: "É um módulo que centraliza as comunicações processuais, como citações e intimações, de todos os tribunais brasileiros em um só local"3.
Infelizmente, o Domicílio Judicial Eletrônico, tal qual descrito acima ainda não existe (ainda). A Portaria CNJ n. 29, de 09.02.2023, que "divulga os requisitos técnicos mínimos exigidos para a transmissão eletrônica dos atos processuais destinados ao Domicílio Judicial Eletrônico e dá outras providências", estabeleceu em seu artigo 2º, um prazo de 90 (noventa) dias para os órgãos do Poder Judiciário, exceto o Supremo Tribunal Federal, para adequar seus sistemas processuais eletrônicos, de modo a viabilizar a utilização do Domicílio Judicial Eletrônico.
Lamentavelmente, tal prazo não foi observado e foi publicada recentemente a Portaria CNJ n. 129, de 12.05.2023, prorrogando, "impreterivelmente", por mais 90 (noventa) dias, o prazo a que se refere o artigo 2º da Portaria CNJ n. 29/2023. E mais, o CNJ informa por meio de seu site que "a liberação do Domicílio Judicial Eletrônico ocorrerá de modo faseado, com um cronograma específico de acordo com o público-alvo"4. De acordo com o CNJ, a liberação do Domicílio Judicial Eletrônico priorizará em primeiro lugar as instituições financeiras que têm um prazo final para cadastro no sistema até 15.08.2023, depois as demais instituições privadas, em seguida as instituições públicas e, por último, as pessoas físicas5.
Assim, enquanto não há Domicílio Judicial Eletrônico, que seria a forma exclusiva para realização de citação por meio eletrônico nos termos do art. 18 da Resolução CNJ 455/22, combinada com o art. 246, do Código de Processo Civil, o que tem prevalecido para o cidadão comum é a total insegurança jurídica.
Em alguns julgados, é aceita a citação por meio de e-mail informado previamente pelo destinatário da comunicação processual. Em outros julgados, também é aceita a citação por meio de aplicativos de mensagens (por exemplo, "Whatsapp") utilizados pelos Srs. Oficiais de Justiça durante suas diligências, ao arrepio do comando do art. 18 da Resolução CNJ 455/22 e do § 1º-A do art. 246 do CPC que determina que a citação deve ser exclusivamente pelo Domicílio Judicial Eletrônico e, se não houver confirmação do seu recebimento por parte do citando em 3 (três) dias, outro meio de citação deve ser utilizado (pelo correio, por oficial de justiça, pelo escrivão ou chefe de secretaria ou por edital, nesta ordem).
A título meramente ilustrativo, vale mencionar decisão da 4ª. Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo que, ao julgar, em 24.09.2021, o agravo de instrumento n. 2210378-65.2021.8.26.0000, considerou que:
"Com as alterações promovidas recentemente pela Lei 14.195/2021 ao art. 246 do CPC/2015, a citação será feita preferencialmente por meio eletrônico, no prazo de até 2 (dois) dias úteis, contado da decisão que a determinar, por meio dos endereços eletrônicos indicados pelo citando no banco de dados do Poder Judiciário, conforme regulamento do Conselho Nacional de Justiça, do que deflui a necessidade de expressa anuência, com a indicação do endereço eletrônico pelo citando, que deverá confirmar o recebimento, sob pena de realizar-se a citação pelos meios convencionais (art. 246, § 1º, CPC/2015)".
Ou seja, acertadamente, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, nesta oportunidade, aplicou o art. 256, § 1º, do CPC, determinando que a citação deveria ser realizada na forma que está ali preconizada.
Por outro lado, 37ª. Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao julgar, em 24.09.2021, o agravo de instrumento n. 2212821-86.2021.8.26.0000, afirmou que:
"Assim sendo, seja pela atual redação do CPC, art. 246, seja pela normativa emanada do c. CNJ e do e. TJSP, a citação por meio eletrônico pressupõe indicação pelo citando de seu endereço eletrônico em bancos de dados ou convênio do Poder Judiciário". Todavia, apesar dessa passagem, o respectivo v. acórdão permitiu a citação por e-mail, diante das particularidades do caso concreto, por entender que: "No caso dos autos, o agravante alega que o coexecutado '(...) está em constante contato com o (...) por e-mail e WhatsApp, todos respondidos normalmente, inclusive tratando dos seus débitos e deste processo, pedindo documentos etc.' (fls. 8), tendo trazido para tanto cópia do email (...), em que ele enviou mensagem a prepostos do (...) em 23/06/2021 (fls. 9) e foi respondido em 23/07/2021 (fls. 9). Desse modo, por considerar que a parte se utiliza desta via para se comunicar com o Banco, tem-se como possível a citação do coexecutado (...)através do e-mail (...) indicado pelo agravante".
Ou seja, em outra ocasião, o mesmo Tribunal decidiu de maneira diferente aceitando a citação por meio de aplicativo de mensagens ("WhatsApp"), "por considerar que a parte utiliza desta via para se comunicar com o Banco", então autor da demanda, contrariando o art. 246, do CPC, que determina a citação por outros meios quando não confirmado o recebimento da mensagem eletrônica pelo seu destinatário.
Com o devido respeito, urge levar em consideração que vivemos em um país caracterizado pela pobreza, pela violência, cujo desempenho na área da educação ocupa os últimos lugares em qualquer "ranking" internacional que tenta avaliar nosso sistema escolar, onde milhares de pessoas vivem na miséria sem saber quando e qual será a próxima refeição.
Se o destinatário da citação não sabe lidar com maestria com um aplicativo de mensagens ("WhatsApp", "Signal", "Telegram", "Messenger" etc.), se não é totalmente alfabetizado, se não tem dinheiro para comprar um celular ou pagar um pacote de dados para uma operadora de celular, se não é letrado em informática e não sabe sequer o que é um "PDF", como fica a situação dessa pessoa que recebeu uma mensagem do Poder Judiciário? Como garantir que foi ela que abriu a mensagem ou se não foi algum terceiro? Aliás, já ocorreu para alguém que há aparelhos de celular compartilhados por mais de uma pessoa da mesma família ou comunidade?
Tudo isso sem esquecer que o § 4º do art. 246 impõe que "as citações por correio eletrônico serão acompanhadas das orientações para realização da confirmação de recebimento e de código identificador que permitirá a sua identificação na página eletrônica do órgão judicial citante". Em outras palavras, não basta comunicar que um pedido de tutela jurisdicional foi formulado contra o citando, mas também é de rigor que se oriente o destinatário da mensagem sobre as providências que ele pode tomar e as consequências no caso de omissão.
Nesse contexto, a pessoa que será citada tem o direito de saber qual o teor da comunicação processual e quais as consequências deverá suportar na hipótese de não responder ao chamado do Poder Judiciário. E mais, tem o direito de ser devidamente identificada e de confirmar o recebimento para mostrar que foi ela quem recebeu e leu a mensagem e não um terceiro. Sem que isso seja garantido ao cidadão, está flagrantemente violado o direito à ampla defesa e ao contraditório insculpidos no inciso LV do art. 5º da Constituição Federal. A consequência última é a nulidade do ato praticado, ou melhor, a inexistência do processo.
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1 Como esta Coluna está dedicada ao processo civil, não trataremos da citação no processo penal, que tem sido aceita na forma de comunicação por meio de aplicativos de celular, observados alguns requisitos, como se depreende da ementa de julgado abaixo transcrita: "AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. ATO LIBIDINOSO DIVERSO DA CONJUNÇÃO CARNAL CONTRA VULNERÁVEL (CP, ART. 217-A, CAPUT) MAJORADO (CP, ART. 226, INC. II), EM CONTINUIDADE DELITIVA (CP, ART. 71, CAPUT). ESTUPRO QUALIFICADO (CP, ART. 213, § 1º), MAJORADO (CP, ART. 226, INC. II). CONCURSO FORMAL (CP, ART. 69). CITAÇÃO POR MEIO ELETRÔNICO. APLICATIVO DE CELULAR WHATSAPP. EXCEPCIONALIDADE. ESTADO PANDÊMICO. ADOÇÃO DE MEDIDAS PARA A PROTEÇÃO DO CIDADÃO E PARA O ACESSO AO JUDICIÁRIO. PROSSEGUIMENTO DOS ATOS PROCESSUAIS DE FORMA ELETRÔNICA. REGULAMENTAÇÃO PELO TRIBUNAL A QUO. CIÊNCIA INEQUÍVOCA DO RÉU. INDICAÇÃO DE TODO O PROCEDIMENTO PARA IDENTIFICAÇÃO DO AGRAVANTE. CITAÇÃO VÁLIDA. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. (...) 5. O Tribunal de origem deixou bem registrado que, no caso concreto, foram observadas todas as diretrizes previstas para a prática do ato, sendo a lisura da citação do paciente pelo aplicativo WhatsApp demonstrada ao menos pelos seguintes elementos: número telefônico fornecido pelo concunhado; confirmação da sua identidade por telefone pelo oficial de justiça quando da citação e certificação realizada por ele; utilização do mesmo número de telefone para confirmação de sua identidade, com posterior comparecimento para interrogatório, pela autoridade policial; anuência quanto à realização do ato; informação de que o réu não possuía condições para contratação de profissional para patrocinar sua defesa, de modo que foi nomeada a Defensoria Pública. (...)
(AgRg no HC n. 685.286/PR, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 22/2/2022, DJe de 25/2/2022, grifos nossos)
2 Cassio Scarpinella Bueno, "Curso Sistematizado de Direito Processual Civil", v. 1, 12ª ed., São Paulo, Saraiva, 2022, p. 345-347.
3 Fonte: CNJ. Acesso em 24.05.2023.
4 Fonte: CNJ. Acesso em 24.05.2023.
5 Idem.