A apresentação de defesa e recurso na produção antecipada de provas
quinta-feira, 23 de março de 2023
Atualizado às 07:45
O Código de Processo Civil de 2.015 (CPC/2015) alargou o alcance da Produção Antecipada de Prova prevendo uma ação de caráter genérico, autônomo e amplo a possibilitar a coleta antecipada de qualquer tipo de prova.
Entretanto, desde logo surgiu controvérsia com a previsão do artigo 382, § 4º, do CPC, que prevê que "Neste procedimento, não se admitirá defesa ou recurso, salvo contra decisão que indeferir totalmente a produção da prova pleiteada pelo requerente originário".
Parece claro, que tal previsão é contrária ao estabelecido no artigo 5º, § LV, da Constituição Federal, que prevê expressamente que "são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes".
Em artigo publicado, em 16/07/2020, nessa coluna já tive oportunidade de defender a recorribilidade na produção antecipada de provas1.
De outro lado, é cristalino que não cabe na produção antecipada de provas a valoração da prova a ser produzida. Também é de se esperar que em grande parte dos casos realmente não se tenha resistência à produção antecipada da prova e nem recursos. Entretanto, podem existir casos em que o interessado citado entenda que a prova requerida seria impertinente, inútil ou desarrazoada2.
Nesse mesmo sentido é o entendimento de Fredie Didier Júnior ao defender que "É certo que o processo de produção antecipada de prova, por restringir-se à produção da prova, é bem simples e, em razão dessa simplicidade, o contraditório realmente não poderia ter a extensão que costuma ter no procedimento comum. Mas daí a dizer, como faz o § 4º do art. 382, que neste procedimento não haverá defesa nem recurso é um salto que o legislador infraconstitucional não poderia dar. Além de revelar incoerência; afinal no mesmo art. 382 há determinação de citação de todos os interessados, até mesmo de ofício. Citação para ser mero expectador do processo é inconcebível; cita-se para que o interessado participe do processo; e a participação no processo dá-se pelo exercício do contraditório, como se sabe. Parece mais razoável compreender o dispositivo de forma não literal. Há, sim, contraditório reduzido, mas não zerado: discute-se o direito à produção da prova, a competência do órgão jurisdicional (se há regras de competência, há possibilidade de o réu discutir a aplicação delas, obviamente; a alegação de incompetência é matéria de defesa), a legitimidade, o interesse, o modo de produção da perícia (nomeação de assistente técnico, possibilidade de impugnação do perito etc.) etc. Não se admite a discussão em torno da valoração da prova e dos efeitos jurídicos dos fatos probandos - isso será objeto de contraditório em outro processo."3
Recentemente o Superior Tribunal de Justiça veio corroborar tal entendimento ao afastar a previsão literal do 382, § 4º, do CPC, que vedaria a apresentação de defesa e recurso na produção antecipada de provas:
"RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVAS, COM FUNDAMENTO NOS INCISOS II E III DO ART. 381 DO CPC. DEFERIMENTO LIMINAR DO PEDIDO, SEM OITIVA DA PARTE ADVERSA. INTERPOSIÇÃO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO, NÃO CONHECIDO PELO TRIBUNAL DE ORIGEM, A PRETEXTO DE APLICAÇÃO DO § 4º DO ART. 382 DO CPC. CONTRADITÓRIO. VULNERAÇÃO. RECONHECIMENTO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
1. A controvérsia posta no recurso especial centra-se em saber se, no procedimento de produção antecipada de prova, a pretexto da literalidade do § 4º do art. 382 do Código de Processo Civil, não haveria, em absoluto, espaço para o exercício do contraditório, tal como compreenderam as instâncias ordinárias, a ponto de o Juízo a quo, liminarmente - a despeito da ausência do requisito de urgência - e sem oitiva da parte demandada, determinar-lhe, de imediato, a exibição dos documentos requeridos, advertindo-a sobre o não cabimento de nenhuma defesa; bem como de o Tribunal de origem, com base no mesmo dispositivo legal, nem sequer conhecer do agravo de instrumento contraposto a essa decisão.
2. O proceder levado a efeito pelas instâncias ordinárias aparta-se, por completo, do chamado processo civil constitucional, concebido como garantia individual e destinado a dar concretude às normas fundamentais estruturantes do processo civil, utilizadas, inclusive, como vetor interpretativo de todo o sistema processual civil.
3. Eventual restrição legal a respeito do exercício do direito de defesa da parte não pode, de modo algum, conduzir à intepretação que elimine, por completo, o contraditório. A vedação legal quanto ao exercício do direito de defesa somente pode ser interpretada como a proibição de veiculação de determinadas matérias que se afigurem impertinentes ao procedimento nela regulado. Logo, as questões inerentes ao objeto específico da ação em exame e do correlato procedimento estabelecido em lei poderão ser aventadas pela parte em sua defesa, devendo-se permitir, em detida observância do contraditório, sua manifestação, necessariamente, antes da prolação da correspondente decisão.
4. Reconhecida a existência de um direito material à prova, autônomo em si, ressai claro que, no âmbito da ação probatória autônoma, mostra-se de todo imprópria a veiculação de qualquer discussão acerca dos fatos que a prova se destina a demonstrar, assim como sobre as consequências jurídicas daí advindas.
5. As ações probatórias autônomas guardam, em si, efetivos conflitos de interesses em torno da própria prova, cujo direito à produção constitui a própria causa de pedir deduzida e, naturalmente, passível de ser resistida pela parte adversa, por meio de todas as defesas e recursos admitidos em nosso sistema processual, na medida em que sua efetivação importa, indiscutivelmente, na restrição de direitos.
6. É de se reconhecer, portanto, que a disposição legal contida no art. 382, § 4º, do Código de Processo Civil não comporta interpretação meramente literal, como se no referido procedimento não houvesse espaço algum para o exercício do contraditório, sob pena de se incorrer em grave ofensa ao correlato princípio processual, à ampla defesa, à isonomia e ao devido processo legal.
7. Recurso especial provido." (g.n.)
(REsp n. 2.037.088/SP, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 7/3/2023, DJe de 13/3/2023.)
Desse modo, em boa hora, o Superior Tribunal de Justiça consagra o entendimento já predominante na doutrina de que o artigo 382, § 4º, do CPC não pode ser aplicado de modo literal, a fim de impossibilitar a apresentação de defesa e recursos.
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1 Disponível aqui.
2 MOLLICA, Rogerio "A Condenação em honorários advocatícios na produção antecipada de provas", in Produção antecipada de provas: questões relevantes e aspectos polêmicos, organização Bruno Augusto Sampaio Fuga, Daniel Colnago Rodrigues e Thiago Caversan Antunes, Londrina: Thoth, 2021. No artigo citado tive a oportunidade de exemplificar duas situações em que deve ser apresentada defesa em face de produção antecipada de prova: "Veja-se o exemplo de duas empresas (A e B), concorrentes e que produzem o mesmo produto. A empresa "A" ajuíza produção antecipada de provas alegando genericamente que a empresa "B" estaria violando patente de seu produto e requerendo a realização antecipada de perícia na fábrica do concorrente para apurar os fatos. A empresa "B" está convicta que não há violação nenhuma e que o concorrente "A" só quer que seu assistente técnico entre na fábrica para verificar como é o processo de produção de "B". Nesse exemplo, a empresa "B" não poderia resistir a tal pretensão da Autora e deveria deixar que seus segredos de produção fossem revelados? Óbvio que parece que não e que a empresa "B" pode e deve resistir para mostrar a impertinência e o real motivo por trás da produção da prova que se pretende produzir antecipadamente. Em outro exemplo o Autor possui título prescrito e requerer a produção antecipada de prova pericial contábil em face do devedor para atestar que o valor constante do título entrou no caixa da empresa. Estando o título prescrito e não podendo mais ser cobrado, não poderia o devedor resistir à produção dessa prova inútil e teria de abrir sua contabilidade para o credor que não pode mais cobrá-lo? Esse parece ser mais um caso que o devedor pode e deve resistir à produção antecipada da prova." (p. 485/486)
3 Produção Antecipada da Prova, Coleção Grandes Temas do Novo CPC, v. 5 - Direito Probatório, coord. Marco Félix Jobim e William Santos Ferreira, 3ª ed., Salvador: Juspodvim, 2018, p. 729/730.