Desconsideração inversa da personalidade jurídica e responsabilidade patrimonial
quinta-feira, 1 de setembro de 2022
Atualizado às 08:20
De acordo com o art. 50, do Código Civil (CC), que versa sobre a desconsideração da personalidade jurídica: "Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso".
Ou seja, preenchidos os requisitos (confusão patrimonial ou desvio de finalidade) os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações da pessoa jurídica poderão ser estendidos aos bens particulares dos administradores e dos seus sócios.
O art. 133, § 2º, do Código de Processo Civil (CPC), por sua vez, admite a desconsideração inversa da personalidade jurídica. Isso significa afirmar que, uma vez preenchidos os requisitos do art. 50, do CC, os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações dos sócios e dos administradores poderão ser estendidos aos bens da pessoa jurídica. Essa é a desconsideração em sentido inverso.
Questão importante é saber se o sócio teria interesse em recorrer de uma decisão que decreta a desconsideração inversa da personalidade jurídica. Isso porque, para o sócio, à primeira vista, seria interessante ter mais alguém responsável pelo pagamento da sua dívida. Nessa linha de raciocínio, se tem mais alguém para pagar, isso seria melhor para o devedor originário, faltando-lhe interesse para recorrer de uma decisão que lhe seria até benéfica.
Porém, em julgado recente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que o sócio tem interesse recursal nesses casos. Confira-se, a propósito, a ementa da decisão:
"RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISÃO QUE DEFERIU O PEDIDO DE DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE DO SÓCIO EXECUTADO. LEGITIMIDADE E INTERESSE RECURSAL DO SÓCIO PARA RECORRER DA DECISÃO. EXISTÊNCIA. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO.
1. O propósito recursal consiste em definir, além da ocorrência de negativa de prestação jurisdicional, a legitimidade e o interesse recursal do sócio executado para impugnar a decisão que deferiu o pedido de desconsideração inversa da personalidade jurídica dos entes empresariais dos quais é sócio.
(...)
3. A jurisprudência desta Corte Superior assenta-se no sentido de que, sendo deferido o pedido de desconsideração, o interesse recursal da empresa devedora originária é excepcional, evidenciado no propósito de defesa do seu patrimônio moral, da honra objetiva, do bom nome, ou seja, da proteção da sua personalidade, abrangendo, inclusive, a sua autonomia e a regularidade da administração, inexistindo, por outro lado, interesse na defesa da esfera de direitos dos sócios/administradores.
4. Na desconsideração inversa da personalidade jurídica, por sua vez, verifica-se que o resultado do respectivo incidente pode interferir não apenas na esfera jurídica do devedor (decorrente do surgimento de eventual direito de regresso da sociedade em seu desfavor ou do reconhecimento do seu estado de insolvência), mas também na relação jurídica de material estabelecida entre ele e os demais sócios do ente empresarial, como porventura a ingerência na affectio societatis.
5. Desse modo, sobressaem hialinos o interesse e a legitimidade do sócio devedor, tanto para figurar no polo passivo do incidente de desconsideração inversa da personalidade jurídica, quanto para recorrer da decisão que lhe ponha fim, seja na condição de parte vencida, seja na condição de terceiro em relação ao incidente, em interpretação sistemática dos arts. 135 e 996 do Código de Processo Civil de 2015, notadamente para questionar sobre a presença ou não, no caso concreto, dos requisitos ensejadores ao deferimento do pedido.
6. Recurso especial conhecido e parcialmente provido".
(REsp n. 1.980.607/DF, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 9/8/2022, DJe de 12/8/2022, grifos nossos.)
Com o devido respeito, não é possível concordar com a afirmação de que haveria uma ação de regresso daquele que teve o seu patrimônio atingido pela desconsideração da personalidade jurídica (a sociedade) contra o sócio a justificar o seu interesse recursal. É bem verdade que o julgado acima mencionado se escora em respeitável doutrina para sustentar tal afirmação. Veja-se:
"Em viés semelhante, asseveram Fernando da Fonseca Gajardoni e outros ser evidente o interesse jurídico do devedor originário, pois, havendo o acolhimento do pleito de desconsideração e a satisfação da obrigação através do patrimônio do terceiro atingido pela desconsideração, surge para este o direito de regresso em face do devedor. (Comentários ao Código de Processo Civil. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 205)".
Entretanto, é forçoso reconhecer que quando a teoria da desconsideração da personalidade jurídica é aplicada, o integrante da pessoa jurídica responde por dívida própria. Essa responsabilidade do integrante da pessoa jurídica decorre do fato de ele ter se beneficiado de uma atividade abusiva e lesiva realizada por meio da pessoa jurídica (SALOMÃO FILHO, Calixto. "O novo direito societário". 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2002. p. 202).
Como o signatário já teve oportunidade de asseverar "É possível perceber, portanto, que a responsabilidade decorrente da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica não pode ser confundida com a responsabilidade civil decorrente da 'teoria dualista da obrigação', pois com ela se admite que o responsável exerça seu direito de regresso em face do devedor, caso o primeiro pague a dívida do segundo. (...) Porém, como já asseverado, a teoria dualista da obrigação não é de grande utilidade para se entender a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica. Isso porque não se pode considerar que quando a teoria da desconsideração é aplicada a pessoa jurídica passa a ser considerada a devedora e o seu integrante para a ser considerado o responsável pela dívida. Se assim fosse, haveria uma verdadeira contradição na aplicação da disregard doctrine: ao mesmo tempo que se afirma desconsiderar a personalidade jurídica, ela seria considerada para se entender que uma pessoa seria responsável e outra pessoa seria a devedora. Na verdade, decorre da aplicação da disregard doctrine que a pessoa jurídica e seu integrante, sociedade e sócio, são na realidade uma só pessoa, ambos devedores e responsáveis pelo adimplemento da mesma dívida" (SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 89-90).
O mesmo raciocínio acima exposto vale para a desconsideração inversa da personalidade jurídica. Não há ação de regresso cabível pois a responsabilidade é primária e não secundária. A pessoa jurídica participou do ato abusivo e fraudulento e portanto responde por ato próprio. Dívida e responsabilidade estão concentradas na mesma pessoa.
Em razão do exposto, não se pode concordar com este argumento utilizado pelo STJ no acórdão acima mencionado de que haveria uma ação de regresso cabível para justificar o interesse recursal do sócio na desconsideração da personalidade jurídica inversa. Quanto aos demais argumentos, em razão do espaço, vamos deixar a sua análise para outra oportunidade aqui na Coluna "CPC na prática". Mas com esse argumento, da existência de possível e eventual ação de regresso a justificar o interesse recursal, não se pode concordar, respeitadas as opiniões em contrário.