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Desconsideração da personalidade jurídica e restrição de saída do país

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Atualizado às 12:00

Como se sabe, o art. 50, caput, do Código Civil (CC), estabelece que: "em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso" (grifos nossos).

Em outras palavras, o art. 50, do CC, dispõe que, se houver abuso de personalidade jurídica, os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações serão estendidos aos bens particulares de administradores ou sócios da pessoa jurídica originariamente devedora.

Apesar de a lei afirmar que os efeitos das obrigações da pessoa jurídica serão estendidos aos bens de sócios e administradores se houver abuso de personalidade, na verdade o que tem acontecido é que tais efeitos são estendidos às pessoas físicas dos sócios e administradores (e não apenas aos seus bens).

Em julgado recente, como se verá adiante, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, determinou a manutenção de decisão judicial que determinou que os sócios de pessoa jurídica incluídos do polo passivo da demanda originária por decisão de desconsideração da personalidade jurídica fossem proibidos de sair do país sem prévia garantia da execução.

Destaque-se que, no caso concreto, a demanda originária era uma ação de cobrança promovida contra uma pessoa jurídica que celebrou acordo judicial e não cumpriu, dando ensejo ao cumprimento de sentença, durante o qual foi requerida e deferida a desconsideração da personalidade jurídica para aplicar o já mencionado art. 50, do CC.

Diante das tentativas frustradas de receber o crédito da pessoa jurídica e de seus sócios, bem como de indícios de que os executados possuíam patrimônio executável, foi determinada a "comunicação à Polícia Federal para anotação de restrição de saída do país sem prévia garantia da execução".

A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça apresentou-se insensível ao argumento de que os sócios tinham filhos no exterior e precisavam também viajar a trabalho, pois atuam na área de comércio exterior. Acabou prevalecendo o entendimento de que deslocamentos internacionais "certamente acarretam dispêndios incompatíveis com a alegação de falta de recursos".

Apesar de ser questionável o fato de uma ordem judicial poder impedir um devedor de viajar ao exterior para visitar seu filho (que também acaba sendo prejudicado) ou para trabalhar e assim manter sua própria subsistência, o que se busca demonstrar aqui é que com a desconsideração da personalidade jurídica, os efeitos das obrigações que eram da pessoa jurídica pode ser estendidos ao patrimônio do sócio e podem ser sentidos fisicamente pela própria pessoa do sócio, com a aplicação combinada do art. 50, do CC, com o art. 139, IV, do Código de Processo Civil (CPC).

Confira-se, a propósito, a ementa do julgado em questão:

"HABEAS CORPUS". PROCESSUAL CIVIL. CPC/15. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. MEDIDAS EXECUTIVAS ATÍPICAS. ART. 139, IV, DO CPC. RESTRIÇÃO DE SAÍDA DO PAÍS SEM PRÉVIA GARANTIA DA EXECUÇÃO. INEXISTÊNCIA DE ILEGALIDADE MANIFESTA. ATENDIMENTO ÀS DIRETRIZES FIXADAS PELAS TURMAS DE DIREITO PRIVADO DO STJ.

1. Na esteira da orientação jurisprudencial desta Corte, não é cabível a impetração de "habeas corpus" como sucedâneo de recurso próprio, salvo nos casos de manifesta ilegalidade do ato apontado como coator, em prejuízo da liberdade do paciente, quando a ordem poderá ser concedida de ofício. Precedentes.

2. Esta Corte Superior de Justiça, pelas suas duas Turmas da Seção de Direito Privado, tem reconhecido que o acautelamento de passaporte é medida capaz de limitar a liberdade de locomoção do indivíduo, o que pode significar constrangimento ilegal e arbitrário, passível de ser analisado pela via do "habeas corpus"

3. A adoção desta medida coercitiva atípica, no âmbito do processo de execução, não configura, em si, ofensa direta ao direito de ir e vir do indivíduo, razão pela qual a eventual abusividade ou ilegitimidade da ordem deve ser examinada no caso concreto.

4. Segundo as diretrizes fixadas pela Terceira Turma desta Corte, diante da existência de indícios de que o devedor possui patrimônio expropriável, ou que vem adotando subterfúgios para não quitar a dívida, ao magistrado é autorizada a adoção subsidiária de medidas executivas atípicas, tal como a apreensão de passaporte, desde que justifique, fundamentadamente, a sua adequação para a satisfação do direito do credor, considerando os princípios da proporcionalidade e razoabilidade e observado o contraditório prévio (REsp 1.782.418/RJ e REsp 1788950/MT, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgados em 23/4/2019, DJe 26/4/2019).

5. In casu, a Corte estadual analisou a questão nos moldes estatuídos pelo STJ, não se denotando arbitrariedade na medida coercitiva adotada com fundamento no art. 139, IV, do CPC, pois evidenciada a inefetividade das medidas típicas adotadas, bem como desconsiderada a personalidade jurídica da empresa devedora, uma vez constatada a sua utilização como escudo para frustrar a satisfação do crédito exequendo.

6. Ausência, ademais, de indicação de meio executivo alternativo menos gravoso e mais eficaz pelos executados, conforme lhes incumbia, nos termos do parágrafo único do art. 805 do CPC/2015.

7. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO, INEXISTINDO SUBSTRATO PARA O DEFERIMENTO DA ORDEM DE OFÍCIO. (STJ, 3ª Turma, HC 558.313/SP, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, não conheceram do habeas corpus e indeferiram a ordem de ofício, votação unânime, j. 23.06.2020, sem os destaques).

Em suma, os sócios acabaram sofrendo restrições para viajar ao exterior em razão dos efeitos de uma obrigação que originariamente era da pessoa jurídica da qual fazem parte. Portanto, os efeitos das obrigações, na desconsideração da personalidade jurídica, são estendidos apenas para o patrimônio dos sócios mas também para a pessoa física dos sócios.

Agora, é forçoso reconhecer que a decisão do Superior Tribunal de Justiça tem tudo para ser inócua, pois a restrição para viajar ao exterior em tempos de pandemia e com a dificuldade que os brasileiros estão tendo para serem aceitos em outros países atinge quase todos nesse momento (e não apenas os sócios da pessoa jurídica executada).