Arts. 332 e 1.013 do CPC - Teoria da Causa Madura
quinta-feira, 15 de setembro de 2022
Atualizado às 10:51
Considerando o princípio da razoável duração do processo, introduzido na Constituição Federal pela Emenda Constitucional 45/2004, o Código de Processo Civil de 2015 criou, ampliou e manteve mecanismos destinados à diminuição da morosidade processual do Poder Judiciário. A teoria da causa madura, por exemplo, é um desses mecanismos que permaneceu no CPC/2015 e adquiriu inovações significativas.
Denomina-se "causa madura" aquela que tem condições para julgamento imediato, pois a instrução probatória já foi exaurida. Trata-se de um instituto processual excepcional, que possibilita que o juízo em grau de recurso - o órgão ad quem - realize o julgamento do mérito de uma ação que, em decorrência de vício, foi inicialmente julgada extinta. Originalmente, em outras palavras, invoca-se essa teoria em sede recursal, nos processos que foram julgados extintos por sentença terminativa, requerendo provimento ao recurso e o pronto exame do mérito da ação sem que os autos retornem ao juízo de origem.
A teoria da causa madura foi inserida no sistema processual brasileiro por meio da lei 10.352/2001 que acrescentou ao CPC/1973 o §3º no artigo 515 estabelecendo que "nos casos de extinção do processo sem julgamento do mérito, o tribunal pode julgar desde logo a lide, se a causa versar questão exclusivamente de direito e estiver em condições de imediato julgamento". Esse instrumento foi aprimorado no CPC de 2015, contando com alteração de requisito e possibilidade de aplicação não apenas em grau recursal.
Em razão do compromisso do atual sistema processual com a mais justa e célere resolução de processos, a teoria da causa madura teve a sua aplicação expandida para outras hipóteses. De acordo com o §1º do artigo 332 do CPC/2015, nas causas que dispensem a fase instrutória, o juiz, independentemente da citação do réu, julgará liminarmente improcedente o pedido se verificar, desde logo, a ocorrência de decadência ou de prescrição. Essa hipótese é uma inovação lida como a aplicação da teoria da causa madura no âmbito do primeiro grau de jurisdição.
Como visto, no texto do código anterior o fato de "a causa versar questão exclusivamente de direito" - aquela sobre a qual não há fatos controvertidos - era requisito fundamental para a aplicação da teoria. Todavia, perante inúmeras discussões acerca da aplicação desse dispositivo, o Superior Tribunal de Justiça uniformizou a jurisprudência sobre a teoria da causa madura no julgamento do EREsp nº 874.507/SP, no ano de 2013, fixando que "ainda que a questão seja de direito ou de fato, não havendo necessidade de produzir prova (causa madura), poderá o Tribunal julgar desde logo a lide, no exame da apelação interposta contra a sentença que julgara extinto o processo sem resolução do mérito"1.
Em conformidade com o entendimento do STJ, o §3º do artigo 1.013 do CPC/2015, subtrai o trecho que falava em "questão de direito" e subsiste como requisito apenas a condição de imediato julgamento, devendo o tribunal decidir desde logo o mérito quando: I) reformar sentença sem julgamento de mérito fundada nas hipóteses do art. 485; II) decretar a nulidade da sentença por não ser ela congruente com os limites do pedido ou da causa de pedir; III) constatar a omissão no exame de um dos pedidos, hipótese em que poderá julgá-lo; e IV) decretar a nulidade de sentença por falta de fundamentação.
Para além do referido §3º, o §4º art. 1.013 do CPC/2015 reforça que "quando reformar sentença que reconheça a decadência ou prescrição, o tribunal, se possível julgará o mérito, examinando as demais questões, sem determinar o retorno do processo ao juízo de primeiro grau".
Diante de seu significativo caráter modificador de realidades concretas, a teoria da causa madura é objeto de intensa discussão doutrinária, sobretudo no que se refere
à necessidade ou dispensabilidade do requerimento do apelante. Para Fredie Didier Júnior, a aplicação do art. 1.013 do CPC/2015 demanda "o requerimento do apelante"2. No mesmo sentido, Humberto Theodoro Júnior argumenta que proferir decisão de mérito sem o devido requerimento da parte em procedimento recursal afronta o direito das partes, "sobretudo do litigante que vier a experimentar a derrota"3.
Se de um lado há quem defenda que o interesse do recorrente de que os autos retornem [ou não] ao juízo anterior é fator determinante para a aplicação da teoria da causa madura, por outro, há o entendimento de que o emprego da palavra "deve"4 impõe obrigação ao julgador de decidir prontamente o mérito da causa madura, dispensando a expressa solicitação da parte recorrente5.
Nesse contexto, aparenta ser razoável argumentar que caberia ao peticionante veicular sua vontade de forma expressa no recurso: se não há interesse de aplicação da causa madura, o pedido deve ser manifesto no sentido de que após o provimento do recurso os autos sejam devolvidos ao juízo a quo para análise de mérito, nesse caso o tribunal não poderá examinar o mérito sob pena de exarar decisão extra petita; noutro sentido, se há interesse na invocação da teoria da causa madura, deve-se requerer que o tribunal analise de pronto o mérito da causa, assim, se não o fizer, o tribunal estará decidindo de maneira citra petita por força da teoria da causa madura.
Ocorre que, de acordo com a doutrina de Gervásio Lopes Jr6, preenchidos os requisitos legais, o recorrido não tem a faculdade de afastar a aplicação da teoria da causa madura e pleitear a remessa dos autos à origem para que se proceda a análise de mérito, pois tal situação seria afrontosa ao direito da outra parte obter a razoável duração do processo.
Recente decisão da terceira turma do STJ manteve acórdão do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES) que, após afastar parcialmente a prescrição de uma ação indenizatória, julgou o mérito por entender suficientes as provas juntadas até então. Ao concluir seus argumentos para o desprovimento do recurso, o ministro relator destaca ainda que "os recorridos pediram, na apelação, o afastamento da prescrição e o julgamento da causa com o reconhecimento do direito à indenização material com base no laudo pericial produzido na ação de divisão"7.
Em outras palavras, o pedido da parte tonifica a teoria da causa madura e reitera a incumbência do tribunal no caso. Por sua vez, a jurisprudência do STJ já está consolidada no sentido de que "extinto o processo sem julgamento do mérito, o Tribunal pode de imediato julgar o feito, ainda que inexista pedido expresso nesse sentido"8.
Numa análise crua e introdutória é possível observar que a partir do momento em que a teoria da causa madura impossibilita a apreciação do mérito no primeiro grau, por consequência, aflige a garantia do duplo grau de jurisdição. Diante disso questiona-se: a teoria da causa madura apresenta um conflito entre os princípios constitucionais da razoável duração do processo e do duplo grau de jurisdição?
O entendimento doutrinário que prevalece é que não há conflito entre esses princípios. É verdade que a teoria em comento apresenta uma mitigação da garantia do duplo grau de jurisdição, mas tal enfraquecimento não configura supressão de instância porque é justificado pela possibilidade concreta de se realizar a devida prestação jurisdicional de maneira justa, célere e efetiva. Ademais, o duplo grau de jurisdição se encontra minorado na própria Constituição Federal, que prevê a possibilidade de causas serem decididas em única instância (art. 102, III).
Nas palavras de Cândido Dinamarco, "há de considerar ainda que o duplo grau possui índole ideológica, pois permite uma melhor reflexão sobre a decisão e também pedagógica, uma vez que condiciona o juízo a quo a atentar sobre a legalidade de sua decisão. Entretanto, em que pese a relevância dessas questões, é plenamente justificável a relativização de tal preceito, desde que feita com responsabilidade e observando-se os limites legais, visto que intenciona-se a celeridade processual e a entrega de uma prestação jurisdicional justa e eficiente"9.
Sem a pretensão de esgotar o assunto, verifica-se que a teoria da causa madura não pretende tão somente a abreviação do processo, partindo do pressuposto de que uma prestação jurisdicional tardia é uma prestação injusta. Trata-se, ao invés disso, de um instrumento processual que viabiliza a prolação de decisões judiciais cada vez mais justas e efetivas. A celeridade processual é um dos pontos nodais do CPC/2015, sendo os incrementos à causa madura importantes dissoluções para a promoção da razoável duração do processo e para o estabelecimento da segurança jurídica.
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1 STJ. EREsp nº 874.507/SP, Relator o Ministro Arnaldo Esteves Lima, Corte Especial, julgado em 19/06/2013, DJe 1º/07/2013.
2 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil: 3 meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. 13 ed. reform. Salvador: Ed JusPodivm, 2016.
3 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. vol. 3. 48ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 2016.
4 CPC/2015. Art. 1.013. "§3º Se o processo estiver em condições de imediato julgamento, o tribunal deve decidir desde logo o mérito quando:"
5 BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de Direito Processual Civil: inteiramente estruturado à luz do novo CPC, de acordo com a lei 13.256, de 4-2-2016. Volume único. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2016.
6 LOPES Jr.,Gervásio. Julgamento direto do mérito na instância recursal (art. 515, § 3º, CPC). Imprenta: Salvador, JusPodivm, 2007.
7 STJ. REsp nº 1.845.754. Relator o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Terceira Turma. DJe 31.08.2021. Pág. 9.
8 STJ. REsp n° 1.192.287-AgRg. Relator o Ministro Benedito Gonçalves. Primeira Turma. DJe 10.05.2001.
9 DINAMARCO, Cândido Rangel. Duplo Grau de Jurisdição no Direito Processual Civil. São Paulo: RT, 1995, p. 159. 1995, pág. 159.