Arts. 73 e 74. Do consentimento do cônjuge
segunda-feira, 24 de agosto de 2020
Atualizado às 09:16
O artigo 73 do Código de Processo Civil (CPC) de 2015 dispõe que "o cônjuge necessitará do consentimento do outro para propor ação que verse sobre direito real imobiliário, salvo quando casados sob o regime de separação absoluta de bens". Em outras palavras, estabelece-se uma restrição à capacidade processual da pessoa casada nas ações que versem sobre direitos reais imobiliários.
Até meados do século XX, a mulher casada era considerada relativamente incapaz, tal previsão só foi alterada pela Lei nº 4.121/1962, conhecida como o Estatuto da Mulher Casada. A partir daí, as mulheres passaram a ter posição jurídica análoga à de seus maridos, "assim, nem o marido depende da outorga da mulher, nem esta da autorização daquele, para estar em juízo nas ações em geral"1.
Nesse contexto, destaca-se que a regra geral dispõe que apenas e tão somente nas ações que versem sobre direitos reais imobiliários é que se exige o mútuo consentimento dos cônjuges para ingressar em juízo. Perceba, portanto, que essa restrição à capacidade processual da pessoa casada atinge ambos os consortes, independente do sexo, e diante do reconhecimento das relações e casamentos homoafetivos, pelos Tribunais Superiores, a aplicação dessa norma independe também da orientação sexual.
O já mencionado artigo 73 do CPC/2015 conversa com o artigo 10 do CPC/1973, inovando ao estabelecer que não se exige consentimento do outro cônjuge aos casados sob o regime de separação absoluta de bens, até porque nesses casos a administração dos bens continua sendo exclusiva de cada um dos consortes, logo, estes podem livremente alienar ou gravar de ônus real imóvel a ele pertencente. Essa regra se apresentou anteriormente no inciso I do artigo 1.6472 do Código Civil (CC) de 2002 e foi reiterada no CPC/2015, mas, no geral, a exigência de consentimento mútuo é o que prevalece nos outros regimes matrimoniais, que não a separação absoluta de bens.
O "regime de bens é o estatuto que disciplina os interesses econômicos, ativos e passivos, de um casamento, regulamentando as consequências em relação aos próprios nubentes e a terceiros, desde a celebração até a dissolução do casamento, em vida ou por morte"3. O CC/2002 estabelece quatro diferentes regimes de bens, podendo os interessados optar por: comunhão parcial (art. 1.658)4; comunhão universal (art. 1.667)5; participação final nos aquestros (art. 1.672)6; e separação convencional ou absoluta de bens (art. 1.687)7. No regime de separação absoluta de bens não haverá comunhão de qualquer bem ou dívida, seja anterior ou posterior ao casamento.
Nessa circunstância, frisa-se o artigo 220 do CC/2002, segundo o qual "a anuência ou a autorização de outrem, necessária à validade de um ato, provar-se-á do mesmo modo que este, e constará, sempre que se possa, do próprio instrumento". Com a dissolução da sociedade conjugal e a extinção da relação matrimonial por meio da separação judicial e do divórcio, os bens não partilhados passam para o regime ordinário, sobre o qual não vigora a exigência de anuência conjugal para os atos individuais.
Ressalta-se que o caput do artigo 73 não impõe um litisconsórcio ativo necessário entre os cônjuges quando o assunto é a propositura de ações reais imobiliárias, impõe apenas o consentimento do outro, e não a figuração deste no processo. Veja-se que tanto a jurisprudência do STF8 e do STJ9 quanto o artigo 1.650 do CC/2002 reconhecem que a "decretação de invalidade dos atos praticados sem outorga, sem consentimento, ou sem suprimento do juiz, só poderá ser demandada pelo cônjuge a quem cabia concedê-la, ou por seus herdeiros". Nesse caso, fala-se em invalidade ou anulabilidade e não nulidade.
Por sua vez, o §1º do artigo 73 já apresenta um litisconsórcio necessário (art. 114, CPC/2015)10, haja vista a obrigatoriedade de ambos os cônjuges serem citados, sob pena de nulidade do processo, para a ação: "I - que verse sobre direito real imobiliário, salvo quando casados sob o regime de separação absoluta de bens; II - resultante de fato que diga respeito a ambos os cônjuges ou de ato praticado por eles; III - fundada em dívida contraída por um dos cônjuges a bem da família; IV - que tenha por objeto o reconhecimento, a constituição ou a extinção de ônus sobre imóvel de um ou de ambos os cônjuges".
Apesar de o §2º do artigo 47 do CPC/2015 classificar as ações possessórias como ações reais, em regra, o Código não exige litisconsórcio necessário entre os cônjuges para elas em todas as hipóteses. O diploma processual prevê no §2º do artigo 73 que "nas ações possessórias, a participação do cônjuge do autor ou do réu somente é indispensável nas hipóteses de composse ou de ato por ambos praticado." Isso significa que o possuidor, mesmo casado, pode propor ação possessória sem a participação obrigatória de seu cônjuge, desde que entre eles não estiver configurada a composse. No mesmo sentido, o esbulhador pode ser demandando individualmente, mesmo casado, se o ato ofensivo à posse do proponente da ação tiver sido praticado isoladamente, sem a participação do cônjuge.
Enfatiza-se que todo o disposto no artigo 73 se aplica também à união estável comprovada nos autos do processo (§3º do art. 73, CPC/2015). No contexto normativo, foi a Constituição Cidadã de 1988 que primeiro reconheceu expressamente a união estável como uma entidade familiar11, o Código Civil12 e o Código de Processo Civil posteriores àquela, reiteraram essa cognição.
Buscando evitar abusos do outro cônjuge - através de recusas caprichosas, por exemplo -, o caput do artigo 74 do CPC/2015 estabelece que o "consentimento previsto no art. 73 pode ser suprido judicialmente quando for negado por um dos cônjuges sem justo motivo, ou quando lhe seja impossível concedê-lo". Portanto, nas ações do art. 73, o abono do outro cônjuge integra a capacidade processual da parte e, por essa razão, sua ausência - desde que não suprida pelo juiz - invalida o processo, como versa o parágrafo único13 do art. 74.
A exigência de outorga uxória14 para os negócios jurídicos de (presumidamente) maior extensão econômica previstos nos arts. 73 e 74 do CPC/2015 (como a prestação de aval ou a alienação de imóveis) decorre da necessidade de garantir a ambos os cônjuges meios de controle da gestão patrimonial, uma vez que, em eventual dissolução do vínculo matrimonial, os consortes terão interesse na partilha dos bens adquiridos na constância do casamento.
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1 THEODORO JÚNIOR. Humberto. Curso de Direito Processual Civil. V.01, op. cit., p. 433.
2 CC/2002. "Art. 1.647. Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta: I - alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis;"
3 GOMES. Orlando. Direito de Família, op. cit., p. 173.
4 CC/2002. "Art. 1.658. No regime de comunhão parcial, comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento, com as exceções dos artigos seguintes."
5 CC/2002. "Art. 1.667. O regime de comunhão universal importa a comunicação de todos os bens presentes e futuros dos cônjuges e suas dívidas passivas, com as exceções do artigo seguinte."
6 CC/2002. "Art. 1.672. No regime de participação final nos aqüestos, cada cônjuge possui patrimônio próprio, consoante disposto no artigo seguinte, e lhe cabe, à época da dissolução da sociedade conjugal, direito à metade dos bens adquiridos pelo casal, a título oneroso, na constância do casamento."
7 CC/2002. "Art. 1.687. Estipulada a separação de bens, estes permanecerão sob a administração exclusiva de cada um dos cônjuges, que os poderá livremente alienar ou gravar de ônus real."
8 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE nº 79.007. 1º Turma. Relator o Ministro Djaci Falcão. Dj: 27/09/1974.
9 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp. nº 1.060.779. Ag.R. 6º Turma. Relator o Ministro Celso Limongi. Dj: 02/08/2010.
10 CPC/2015. "Art. 114. O litisconsórcio será necessário por disposição de lei ou quando, pela natureza da relação jurídica controvertida, a eficácia da sentença depender da citação de todos que devam ser litisconsortes."
11 CF/1988. Art. 226. Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...) § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento."
12 CC/2002. "Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família."
13 CPC/2015. "Art. 74. (...) Parágrafo único. A falta de consentimento, quando necessário e não suprido pelo juiz, invalida o processo."
14 A outorga uxória é uma forma de autorização que precisa ser concedida de um cônjuge a outro.