Arts. 62 e 63 - Das competências absoluta e relativa
segunda-feira, 25 de maio de 2020
Atualizado às 07:58
A competência é um instituto jurídico relacionado à distribuição e organização da função jurisdicional no processo entre os diversos órgãos do Poder Judiciário, podendo ser classificada em absoluta e relativa, sendo que as regras que definem a incidência de cada uma dessas espécies não compartilham do mesmo grau de imperatividade. As regras que disciplinam as competências absolutas são protegidas de forma mais rigorosa pelo sistema jurídico, consideradas normas de ordem pública e impondo-se independentemente da vontade ou acordo dos sujeitos envolvidos, já as regras de competência relativa podem ser modificadas por força da vontade das partes.
O artigo 62 do Código de Processo Civil (CPC) 2015 apresenta a competência absoluta ao determinar ser inderrogável, por convenção das partes, a competência estabelecida em razão da matéria, da pessoa ou da função. Esse dispositivo apresenta forte semelhança com o que era disposto na primeira parte do artigo 111 do CPC/1973, ocorre que o CPC/2015 apresenta maior intelecção ao substituir a locução "em razão da matéria e da hierarquia" por uma linguagem mais técnica, especificando que a regra é fixada "em razão da matéria, da pessoa ou da função".
Entretanto, há quem defenda que a redação do supramencionado dispositivo no novo Código segue tão incompleta ou imprecisa quanto a do anterior, pois repete que tais tipos de competências são inderrogáveis "por convenção das partes", omitindo laconicamente que são inderrogáveis também pela reunião das demandas conexas. Interpreta-se das redações dos artigos 102 do CPC/1973 e 54 do CPC/2015 que os critérios de modificação pela conexão ou pela continência também não afetam a competência absoluta, pois nesta há um interesse público de que determinada causa seja processada e julgada em uma comarca ou instância específica1.
Nesse mesmo sentido, pronuncia-se consolidada jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, ao firmar que: "nos termos da jurisprudência desta Corte, a reunião de ações, em virtude de conexão, não se mostra possível quando implicar alteração de competência absoluta2". Em outro julgado: "a eventual existência de conexão entre demandas não é causa de modificação de competência absoluta, o que impossibilita a reunião dos processos sob esse fundamento3".
É em consideração à questão de ordem pública que subjaz na determinação das regras de competência absoluta que as partes podem requerer seu exame a qualquer tempo, o juiz pode declarar-se incompetente de ofício (art. 64, §1º, CPC/2015) e a decisão transitada em julgado proferida por juiz absolutamente incompetente é passível de impugnação por ação rescisória (art. 966, II, CPC/2015).
Nesse contexto, além dos dispositivos constitucionais que versam sobre a competência originária de tribunal superior, órgão com função jurisdicional ou ainda aquelas que fixam a competência da justiça federal, são exemplos de competência absoluta as regras do CPC/2015 para as ações em que há participação de ente federal no processo (art. 45) e também as regras para as ações fundadas em direito real sobre imóvel (art. 47). A competência inderrogável constitui reflexo das razões relacionadas ao correto exercício da jurisdição e do bom funcionamento do Poder Judiciário.
O caput do artigo 63 do Diploma, praticamente repete a redação do trecho final do artigo 111 do CPC/1973, prevê que "as partes podem modificar a competência em razão do valor e do território, elegendo foro onde será proposta ação oriunda de direitos e obrigações".
Como a lei não dispõe em sentido contrário e não há jurisprudência consolidada em outra direção, a partir do art. 63 que permite eleição de foro, a doutrina define que as competências em razão do valor e do território são relativas. Todavia, o ordenamento processual brasileiro ainda prevê algumas competências territoriais absolutas - como os §§ 1º e 2º do art. 47, CPC/20154 - e competências absolutas fixadas em razão do valor da causa, a exemplo das competências das varas já instaladas dos Juizados Especiais Federais Cíveis (§ 3º do art. 3º, Lei nº 10.259/2001).
Nessa perspectiva, o §1º do artigo 63 do atual código prevê que não produz efeito a eleição de foro que for realizada em mero acordo verbal ou, quando escrita, não aludir expressamente a qual negócio jurídico se refere. Não podendo, pois, ser firmada de forma genérica e abstrata. Diante disso, o parágrafo seguinte dispõe que a eleição do foro é norma que ganha força cogente em relação aos herdeiros e sucessores das partes, podendo ser derrogada tão somente em hipótese de abusividade - prevista no parágrafo subsequente - ou nos casos previstos em legislação extravagante, como, por exemplo, no Direito do Consumidor.
Sobrevindo manifesta vantagem a uma das partes e excessiva dificuldade ao exercício do direito de defesa pela outra, pode o juiz, de ofício, reputar ineficaz a cláusula de eleição de foro, desde que o faça antes da citação. Nesse caso, o magistrado "determinará a remessa dos autos ao juízo do foro de domicílio do réu" (§3º do art. 63 do CPC/2015). Quando comparado ao artigo 112 do CPC/1973 que versava sobre o mesmo ponto, percebe-se que o atual CPC inovou ao deixar de exigir, como requisito para o reconhecimento da abusividade, que tal cláusula conste em contrato de adesão. Ademais, o novo diploma reputa ser esta cláusula ineficaz, enquanto o anterior a considerava cláusula nula.
Disso se depreende que o pacto entre as partes para a eleição do foro deve ser realizado em situação de equilíbrio técnico, informacional e econômico-financeiro, devendo ser reavaliado em circunstância de excessiva onerosidade ou de difícil exercício dos poderes de participação processual por um dos contraentes. De acordo com o Código Processual vigente, se antes da citação o juiz verificar, nos termos acima, a abusividade da cláusula eletiva de foro, deverá declará-la ineficaz já de ofício e, pela própria dicção legal do supramencionado §3º do art. 64, determinará a remessa dos autos ao juízo de foro de domicílio do réu.
A limitação legal proposta pelo CPC/2015 - ausente no CPC/1973 - sobre o reconhecimento ex officio da abusividade da cláusula de eleição de foro tão somente em momento anterior à citação, tem a seguinte fundamentação lógica: se, devidamente citado, o réu constituir advogado e protocolar sua manifestação defensiva no local onde foi efetivamente proposta a demanda, sem dedicar uma única linha a respeito da dificuldade imposta ao exercício de sua defesa naquele juízo, então, aparentemente, a escolha do foro em questão não lhe resultou tão gravosa ou dificultosa, razão pela qual não haverá o juiz de interferir quanto a esse ponto.
Nesse diapasão é a previsão expressa do §4º do artigo 63 ao impor que depois da citação cabe "ao réu alegar a abusividade da cláusula de eleição de foro na contestação, sob pena de preclusão" do seu direito de arguir tal matéria e, consequentemente, esta restará prorrogada para o foro onde a ação foi proposta.
Portanto, salvo situações específicas, algumas já mencionadas anteriormente, o artigo 63 do CPC/2015 apresenta como relativa as competências em razão do valor e do território, possibilitando às partes, com a eleição de foro, modificá-las conforme seus interesses privados. Suponha-se, no entanto, que haja o trâmite dessas demandas com uma vinculação atrativa por conexão ou continência, neste caso a prevenção prevalecerá diante da cláusula de eleição de foro? Em resposta à essa questão, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem apresentado jurisprudência no sentido negativo.
No Resp nº 1.294.929/SP, por exemplo, a Quarta Turma do STJ concluiu que "a cláusula de eleição de foro é válida e somente pode ser afastada quando, segundo entendimento pretoriano, seja reconhecida a sua abusividade, a inviabilidade ou especial dificuldade de acesso ao Poder Judiciário"5. Verifica-se que, sendo válida a cláusula de eleição de foro estabelecida pelas partes em contrato, ela deverá ser observada para a fixação da competência territorial ou pelo valor da causa, devendo as demandas serem reunidas no foro eleito, independentemente da existência de conexão ou continência entre elas. No mesmo sentido o Resp nº 1.396.958/SP6 e o CC nº 40.879/SP7.
Observe que entre as disposições correspondentes dos Códigos de Processo Civil de 1973 e o de 2015 não há mudanças substanciais, porém, evidencia-se um aperfeiçoamento na redação dos dispositivos do novo Código, apresentando maiores especificidades e intelecção redacional. Nada obstante, faz-se necessário reconhecer que ainda restaram algumas lacunas, como a omissão referente à impossibilidade de prorrogação da competência absoluta também em razão de conexão e continência, que têm sido sanadas pela jurisprudência.
___________
1 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; DIDIER JR., Fredie; TALAMINI, Eduardo; DANTAS, Bruno. 2016. Breves Comentários ao Novo Código de Processo Civil. Editora Revista dos Tribunais ltda. 3. Ed. em e-book baseada na 3. Ed. impressa. Pág. 154.
2 STJ. CC 142.849/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 22/3/2017, DJe 11/4/2017.
3 STJ. AgInt nos Edcl no CC 156751/BA. Relator o Min. Antonio Carlos Ferreira. Segunda Seção. Dje: 15.04.2019. No mesmo sentido: STJ. AgInt no REsp 1655993/RO. Relator o Ministro Marco Aurélio Bellizze. Terceira Turma. Dje: 30.08.2019.
4 Art. 47. Para as ações fundadas em direito real sobre imóveis é competente o foro de situação da coisa.
§ 1º O autor pode optar pelo foro de domicílio do réu ou pelo foro de eleição se o litígio não recair sobre direito de propriedade, vizinhança, servidão, divisão e demarcação de terras e de nunciação de obra nova.
§ 2º A ação possessória imobiliária será proposta no foro de situação da coisa, cujo juízo tem competência absoluta.
5 STJ. AgInt no AgInt no RESp nº 1.294.929/SP. Relator o Min. Marco Buzzi. Quarta Turma. DJ: 08.11.2018.
6 STJ. EDcl no REsp nº 1.396.958/SP. Relator o Min. João Otávio de Noronha. Terceira Turma. DJ: 15.03.2016.
7 STJ. AgRg no CC nº 40.879/SP. Relatora a Min. Nancy Andrighi. Segunda Seção. DJ: 22.12.2004.