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"Eu não me lembro": O CNJ e a doença de Alzheimer

quinta-feira, 13 de março de 2025

Atualizado em 12 de março de 2025 09:31

No início do filme Para Sempre Alice1, a pesquisadora que leva esse nome se vê, aos 50 anos, perdida num parque durante sua corrida diária. Ela não sabe como voltar para casa. Na última cena, sua filha, Lydia, lê um trecho da obra "Angels in America", de Tony Kushner: "Nada está perdido para sempre. Nesse mundo, há uma espécie de progresso doloroso. Saudades do que deixamos para trás e dos sonhos futuros". Lydia pergunta: "É sobre o quê?". Desafiava, com o questionamento, o mutismo da mãe, último e mais severo estágio da sua doença. "Amor..., amor", responde Alice, murmurando.   

Já em Viver Duas Vezes2, o personagem Emílio, professor de matemática, abre o filme terminando de comer sua torrada e se aproximando do balcão para pagar a conta. A atendente exclama: "Você já pagou, Emílio!". Percebendo a falha de memória, ele disfarça e segue seu caminho. Na última cena, debilitado e morando numa casa de repouso, Emílio, em silêncio, abraça a filha, enquanto ela chora por sentir novamente aquele gesto de afeto que, com o avanço da doença, havia ficado no passado.

Por fim, há o filme Meu Pai,3 que se inicia com o idoso Anthony vendo a filha chegar em casa perguntando se ele havia xingado a cuidadora. "Eu não sei quem ela é". A filha insiste. Ele retruca: "Eu não me lembro". Na última cena, Anthony, aos prantos, morando numa clínica, fala para a enfermeira: "Eu quero a minha mãe, quero sair daqui. Peça para ela vir me buscar". Quando a enfermeira pergunta o que está acontecendo, ele explica: "Eu sinto que estou perdendo todas as minhas folhas..., os galhos, o vento e a chuva. Eu não sei mais o que está acontecendo". E chora.  

São filmes que tratam do mesmo tema: a doença de Alzheimer. Ela é hoje objeto de processos administrativos e judiciais que têm como protagonistas não os personagens Alice, Emílio ou Anthony, mas pessoas reais. Pessoas como o "Sr. Orlando".  

Orlando trabalhou para o sistema de Justiça por mais de 64 anos.4  

Aos 78 anos de idade, tendo sobrevivido a uma pandemia (Covid-19) e a um câncer, ele enfrentou um processo administrativo aberto para apurar falhas no cartório.  

Ao longo do processo, o Sr. Orlando se debilita bastante e deixa a serventia, aposentado (por tempo de contribuição). Como a punição máxima era a perda da delegação, e esta ficou vaga com a aposentadoria, não havia mais utilidade no processo administrativo. Mas não. O caso continuou.

Quando o interrogatório ocorreu, a vulnerabilidade, a fragilidade e a delicadeza do quadro mental daquela pessoa idosa e deficiente ficaram evidentes.  

"Não lembro", disse ele, em resposta à maioria dos questionamentos. Lembra a fala do personagem Anthony, já mencionado: "Eu sinto que estou perdendo todas as minhas folhas..., os galhos, o vento e a chuva. Eu não sei mais o que está acontecendo".

O Sr. Orlando tinha, há anos, Alzheimer. Não sabia, mas sentia. Tobias Barreto disse que "direito não é só o que se sabe, é também o que se sente". O ministro Ayres Britto, conterrâneo de Tobias, costuma lembrar que "sentença vem do verbo sentir". Mesmo tendo sido diagnosticado por perito nomeado pelo Juízo com "demência avançada com comprometimento cognitivo acentuado", ele foi interrogado, julgado e condenado. 

Determinou-se a perda da delegação ante a superveniência da aposentadoria, e por não ser possível a execução da pena, ficou "registrada a prática de infração funcional grave que configurou a perda da delegação, referente a fatos ocorridos antes da aposentadoria, quando o faltoso estava à frente do serviço público prestado em caráter particular". Entendeu, a corregedoria, que "a prova existente não permite concluir pela incapacidade do registrador ao tempo das infrações a ele imputadas".

A questão se transformou no PCA 0008083-92.2024.2.00.0000, de relatoria do conselheiro Pablo Coutinho Barreto, em tramitação no Conselho Nacional de Justiça e que chegou a ser pautado para julgamento virtual, tendo sido objeto de retirada, de modo a que o plenário se debruce, presencialmente, sobre a questão.

Requer-se, no PCA, que se nulifique apenas uma das penas impostas, qual seja, a que determinou que ficasse "registrada a prática de infração funcional grave que configurou a perda da delegação, referente a fatos ocorridos antes da aposentadoria, quando o faltoso estava à frente do serviço público prestado em caráter particular".

O Preâmbulo da Constituição dispõe que a Justiça é um dos "valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceito". A dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da nossa República. Dentre os objetivos fundamentais está o de "constituir uma sociedade livre, justa e solidária". Segundo o art. 229, "os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade. Em seguida, diz: "A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida" (art. 230).5

São princípios abrangentes do compromisso do Estado em conduzir, da melhor forma, as complexidades jurídicas geradas pelo comprometimento da saúde mental daqueles que do Estado fazem parte como delegatários ou servidores.

Há ainda vasto tratamento infraconstitucional. A lei 14.878/24 institui a Política Nacional de Cuidado Integral às Pessoas com Doença de Alzheimer e Outras Demências. Já a lei 13.146/15 cria o Estatuto da Pessoa com Deficiência.6

A lei 10.741/03 (Estatuto da Pessoa Idosa), por sua vez, assegura que o respeito à dignidade da pessoa idosa é um imperativo perante órgãos como o CNJ. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, de valores, ideias e crenças, dos espaços e dos objetos pessoais (art. 10, § 2º).

Por décadas toda a estrutura cartorária brasileira residiu sobre os ombros de pessoas como o Sr. Orlando. Não é justo que seja esse o fim de histórias como essa.

Uma última nota. Há outro elo que une os filmes Para Sempre Alice, Viver Duas Vezes e Meu Pai. Em todos eles, na cena final, quando tudo se foi e apenas a parte mais severa da doença se impõe, quem permanece são as filhas. Elas providenciam ao doente o último traço de dignidade que suas biografias reivindicam.

Lydia, na cena final, lê um livro para Alice. Julia abraça, chorando, o pai Emílio. Annie conversa com Anthony, no abrigo que vira o palco final da sua jornada.

O caso retratado nesse texto, em tramitação no CNJ, não tem Lydias, Julias ou Annies. Mas tem Fabiana, filha do Sr. Orlando, que, em nome da honra do pai, da verdade dos fatos e da higidez do Direito persevera, como curadora, na busca por justiça.

No caso, ele já estava aposentado quando da conclusão do processo administrativo, e também já se sabia, por perícia oficial, que enfrentava uma demência irreversível que o incapacitou absolutamente para a vida civil (e se iniciou em 2014). Pessoas do sistema de Justiça diagnosticadas em perícia oficial com Alzheimer (e incapazes) podem, já estando aposentadas e tendo perdido a delegação objeto do litígio, suportar outras consequências administrativas derivadas diretamente da culpa?

O CNJ, ao deliberar sobre o PCA 0008083-92.2024.2.00.0000, o dirá.



1 Baseado no romance homônimo escrito por Lisa Genova.

2 Dirigido por Maria Ripoll, que também o roteiriza ao lado de María Mínguez. Produção de Gustavo Ferrada, Eva Muslera e Roberto Schroeder.

3 Baseado na peça de Zeller, Le Père, de 2012.

4 Em 23/6/59, ele iniciou como Auxiliar no Cartório de Registro de Imóveis de Nova Granada/SP. Em 10/8/92, assume como Oficial Titular do Cartório de Catanduva/SP, até se aposentar (2024).

5 O § 13 do art. 37 diz que o servidor público titular de cargo efetivo poderá ser readaptado para exercício de cargo cujas atribuições e responsabilidades sejam compatíveis com a limitação que tenha sofrido em sua capacidade física ou mental, enquanto permanecer nesta condição, desde que possua a habilitação e o nível de escolaridade exigidos para o cargo de destino, mantida a remuneração do cargo de origem.

6 A lei tem como base a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, ratificados pelo Congresso pelo Decreto Legislativo 186/08, em conformidade com o procedimento previsto no § 3º do art. 5º da Constituição, em vigor para o Brasil, no plano jurídico externo, desde 31/8/08, e promulgados pelo decreto 6.949/09, data de início de sua vigência internamente.