O julgamento do golpe no pleno do STF
quarta-feira, 5 de março de 2025
Atualizado em 28 de fevereiro de 2025 09:53
Fomos forjados em golpes de Estado. Talvez por isso, tudo se explique.
Em 1823, na "Noite da agonia", Dom Pedro I dissolve a Assembleia Constituinte, prende deputados e, ele mesmo, elabora o projeto que resulta na Constituição de 1824. Tempos depois, abdica do trono em favor do filho. Pela Constituição, era preciso ter 18 anos para assumir. O Congresso, por um Ato Adicional, antecipa a maioridade do imperador e entrega o trono a um adolescente de 14 anos.
Na Proclamação da República não foi diferente. Dom Pedro II estava no poder quando os militares, liderados pelo marechal Deodoro da Fonseca, derrubaram a monarquia. Em novembro de 1891, Deodoro fecha o Congresso e declara Estado de Sítio. Na sequência, renuncia, abrindo espaço para Floriano Peixoto, seu vice.
Vem a "Revolução de 30", que tira o presidente Washington Luís do poder e alça Getúlio Vargas ao Executivo, pondo fim à República Velha. Em 1937, vem novo golpe de Getúlio, fundando o Estado Novo. Fica no poder, initerruptamente, por 15 anos.
O último dos golpes, o de 1964, fez com que, por 21 anos, uma ditadura desmantelasse aquela que era, após uma transição entre dois adversários eleitos - Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros -, a mais viva democracia da América Latina.
Décadas depois, pela primeira vez em nossa história, entre o golpismo que nos aprisiona e a continuidade democrática que nos emancipa, esta venceu, e venceu graças ao Judiciário. É um evento único em uma caminhada tão atrapalhada. Por essa razão, julgar, em 2025, na Suprema Corte, uma denúncia sobre tentativa de golpe de Estado é, inevitavelmente, fazer história. Indo além, significa escrever uma nova história.
Sempre que uma nação busca se encontrar com o seu passado, curando feridas abertas e tentando abrir espaço para um futuro menos penoso, o caminho é o da justiça.
"O bom senso da humanidade exige que a lei não se limite à punição de pequenos crimes cometidos por pessoas comuns. Deve também atingir homens que possuam grande poder e que dele façam uso deliberado e concertado para pôr em marcha males que não deixe nenhum lar no mundo intocado".1 Com essas palavras, Robert Jackson, procurador-chefe dos Estados Unidos, abriu, em 21 de novembro de 1945, no Palácio da Justiça em Nuremberg, Alemanha, sua declaração ao Tribunal Militar Internacional que julgaria as atrocidades cometidas por Adolf Hitler e sua vasta entourage diabólica.
Não foi diferente em Ruanda. O Conselho de Segurança da ONU, dando início a um longo processo de estabilização do país, criou um Tribunal Penal Internacional (em Arusha, Tanzânia) para julgar os líderes do genocídio de 1994.
Em Israel, dentre as muitas iniciativas de reencontro do povo judeu consigo mesmo depois da Shoá, talvez a mais simbólica tenha sido o julgamento do criminoso nazista Adolf Eichmann, em Jerusalém, oportunidade na qual, pela primeira vez, as vítimas puderam confrontar perpetradores e, diante de todos, expressar suas dores, narrar os horrores do Holocausto e vindicar justiça abertamente.2
Na África do Sul, com a queda do apartheid, coube às muitas sessões públicas da Comissão da Verdade e Reconciliação, conduzida pelo arcebispo Desmond Tutu, o desenho dos traços a partir dos quais nasceria a nação arco-íris. No primeiro encontro da comissão, abrindo a sessão, Tutu disse: "Somos um povo ferido pelos conflitos do passado, independentemente de qual lado estejamos".3
Na Argentina, em 1985, no Julgamento das Juntas, o promotor Julio César Strassera disse, no Palácio da Justiça, o seguinte: "Este julgamento e a sentença que proponho buscam estabelecer uma paz baseada não no esquecimento, mas na memória. Não na violência, mas na justiça. Esta é nossa oportunidade. Talvez seja a última".4
São exemplos de países imbuídos do elevado propósito de, após acontecimentos profundamente perturbadores à democracia e aos direitos humanos, recorrer à justiça para fundamentadamente punir culpados, livrar inocentes e apresentar à sua gente e ao mundo uma versão juridicamente verdadeira da história, de forma que o mal que ela traz encontre dificuldade em se repetir e, assim, o caminho da superação esteja pavimentado.
É por isso que me parece ser um grave erro histórico o STF não apreciar a denúncia quanto à tentativa de golpe de Estado no pleno da Corte, com os seus 11 ministros presentes e participando da deliberação.
O objeto da denúncia é, claramente, a insurreição dos acusados contra as regras e princípios emanados da nossa CF/88, dentre eles, o primado da democracia. É preciso entender o fenômeno, defini-lo juridicamente, aplicar aos culpados as consequências dos seus atos e abrir um caminho sábio de desradicalização do país.
A denúncia proposta pela Procuradoria-Geral da República, a propósito, conclui o seguinte: "Em unidade de desígnios, dividiram-se em tarefas e atuaram, de forma relevante, para obter a ruptura violenta da ordem democrática e a deposição do governo legitimamente eleito, dando causa, ainda, aos eventos criminosos de 8/1/23 na Praça dos Três Poderes". Não há dúvida: as vítimas foram a democracia e a Constituição.
A Constituição de 1988 é contundente quanto ao seu compromisso com a democracia. Enquanto o preâmbulo institui um Estado Democrático, o art. 1º pontua que a nossa República constitui-se em Estado Democrático de Direito.
O inciso XLIV do art. 5º reputa crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático. Ainda segundo a Constituição, um brasileiro pode perder a sua nacionalidade caso tenha a sua naturalização cancelada, por sentença judicial, em virtude de atentado contra o Estado Democrático (art. 12, § 4º, I).
O art. 17 condiciona a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos ao resguardo do regime democrático; segundo o art. 23, I, é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas; e um dos princípios constitucionais sensíveis cujo desrespeito pode ensejar a intervenção da União nos Estados ou do Distrito Federal é precisamente o regime democrático (art. 34, VII, "a").
Julgar alguém por desrespeitar a democracia é, inevitavelmente, julgá-lo por violar a Constituição. Na denúncia, o Procurador-Geral da República anotou: "Se o respeito à dignidade da pessoa é a causa final da sociedade arquitetada pela Constituição em vigor, o modelo democrático é a sua causa eficiente". Em seguida, pontua: "Não há ofensa institucionalmente mais grave à democracia, entretanto, do que a interrupção do processo mesmo de ajustes inerentes ao sistema, pelo impedimento da atuação de qualquer dos poderes, sobretudo por meio da força, não autorizada constitucionalmente".
Eis mais um trecho: "O intuito era o de manter a militância apaixonada e disposta a aceitar soluções de violência à ordem constitucional". Por fim, ao se referir ao 8 de janeiro, diz que a organização denunciada promoveu "atos atentatórios à ordem democrática, com vistas a romper a ordem constitucional, impedir o funcionamento dos Poderes, em rebeldia contra o Estado de Direito Democrático".
Hoje, se uma lei qualquer de um vilarejo distante tiver sua constitucionalidade questionada no Supremo, o julgamento será no pleno, por força do art. 97 da Constituição, segundo o qual "somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público". O parágrafo único do art. 143 do regimento interno do STF dispõe que o quórum para votação de matéria constitucional é o do pleno.
Como pode a violação singela a uma única linha constitucional merecer o julgamento do pleno, e a tentativa de pôr fim a essa mesma Constituição, não? Pelo art. 147 do Regimento Interno, basta três Ministros presentes para que haja julgamento nas Turmas. É com um quórum desse que passaremos a limpo o que ocorreu? Faz lembrar Bertold Brecht, que disse: "Há quem prepare cuidadosamente o seu próximo erro".
O julgamento pela turma também foge à tradição da Suprema Corte em debates dessa natureza. A liminar que suspendeu a nomeação do presidente Lula para a Casa Civil, no governo Dilma Roussef, viu o recurso contra ela ser pautado no pleno (posteriormente julgado prejudicado).5 A discussão sobre o rito do processo de impeachment da então presidente Dilma Rousseff, também.6 Todo o debate sobre a prisão em segunda instância (especialmente o que resultou na soltura do presidente Lula) não se deu nas turmas7, mas no pleno. Quando o STF precisou validar a criação do chamado Inquérito das Fake news, levou ao pleno.8 Caminho semelhante se deu no "mensalão"9 e, agora, na condenação à prisão do ex-presidente Fernando Collor.10
Parece algo até intuitivo. Basta perguntarmos a nós mesmos se seria natural assistirmos a uma votação de um processo de impeachment contra o presidente da República esgotando-se numa das comissões do Senado, ao invés do seu plenário.
Por qual razão, então, manter essa deliberação num órgão fracionário do Tribunal, privando seis integrantes com notável saber jurídico de estudarem o caso, apresentarem seus votos e dialogarem uns com os outros acerca dos fundamentos e das conclusões de um julgamento que se confunde, muito infelizmente, com a nossa própria existência?
Ou o episódio cuida de populares depredando prédios públicos e, por essa razão, um julgamento na turma é justa medida ou, então, se trata de tentativa bem elaborada de um golpe de Estado, que fracassou, mas que colocou em risco a Constituição e a nossa democracia, sendo, o pleno, o local para apurar tão grave acontecimento político.
Desde o início da nossa vida pública engolimos instituições, escamoteamos as normas e impomos, por voluntarismos insistentes, saídas convenientes para problemas graves presentes há séculos, atrasando o nosso desenvolvimento social, econômico e institucional. É hora de fazer diferente, de simplesmente fazer a coisa certa.
1 Disponível aqui.
2 Esse julgamento, acompanhado de perto pela filósofa Hannah Arendt, ensejou o seu conhecido conceito de "banalidade do mal", cujos componentes teóricos podem ser conhecidos pela leitura da obra "Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal", publicado no Brasil pela Companhia das Letras.
3 Disponível aqui.
4 Recomendo o filme "Argentina, 1985", dirigido e coescrito por Santiago Mitre e protagonizado por Ricardo Darín e Peter Lanzani.
5 Mandados de Segurança 34.070 e 34.071 (Rel. Min. Gilmar Mendes).
6 MC na ADPF 378, Pleno, redator Min. Luís Roberto Barroso, DJe 8/3/16.
7 ADC's 43, Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 12/11/20, 44 e 54.
8 ADPF 572, Pleno, Rel. Min. Edson Fachin, DJe 7/5/21.
9 AP 470, Pleno, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe 22/4/13.
10 AP 1025, Pleno, redator Min. Alexandre de Moraes, DJe 21/9/23.