Depósito de tesouros constitucionais
quarta-feira, 8 de janeiro de 2025
Atualizado às 07:18
Dia 8 de janeiro de 2025 marca dois anos da invasão e destruição, por populares, com propósitos políticos golpistas, do prédio do Supremo Tribunal Federal, evento nomeado pela então presidente da Corte, ministra Rosa Weber, como "Dia da Infâmia".
Como explicar, ainda que mínima e superficialmente, a cólera (que não é nova) contra Supremas Cortes e, em particular, contra o STF? É preciso ir ao passado.
Em outubro de 1958, na Califórnia, Estados Unidos, um cartaz mal arrumado nasceu destinado a percorrer o mundo, tornar-se relevante e fazer história.
Pedia-se, nele, o impeachment de um integrante da Suprema Corte. As justificativas eram caricatas. Uma delas dizia: "ele se apoia fortemente nos escritos de sociólogos estrangeiros como autoridade para muitas de suas decisões judiciais".
Seria, aquele juiz (ou ministro, como chamamos no Brasil), "um personagem perigoso e subversivo", "um aparente simpatizante do Partido Comunista" com cúmplices na própria Suprema Corte (dois colegas: Felix Frankfurter e Hugo Black).
O cartaz apócrifo ia além. Detalhava as falhas da alta autoridade: "é um agitador fanático pela mestiçagem racial compulsória que proferiu várias decisões obrigando os brancos a misturarem-se com os negros nas escolas, nas acomodações públicas, nos restaurantes e nos locais públicos de recreação aquática". Veio a última das acusações: "Obriga crianças brancas em idade escolar a se misturarem intimamente com os negros".
O panfleto denunciava a "tirania judicial" e o fato de o ministro ter transformado "ilegalmente a Suprema Corte num Politburo de tipo soviético, com poder sobre o Congresso e sobre os vários governos estaduais". Seria "um fanático que não vai parar por nada até alcançar seus objetivos" e que "deve ser tratado com extrema cautela e todas as suas ordens e decisões devem ser consideradas suspeitas".
Eis o apelo final do cartaz: "As pessoas que desejam ajudar a levá-lo à justiça devem contatar os seus congressistas para pedir o seu impeachment por traição".
Não há novidades. Sequer os insultos são novos: comunista, fanático, tirânico..., são os mesmos medos, os mesmos motes e os mesmos pensamentos conspiratórios.
O juiz da Suprema Corte sobre quem falava o panfleto era Earl Warren, ex-governador da Califórnia (o único a ser eleito três vezes consecutivas - 1943/1953), membro do Partido Republicano e que presidiu a Corte de 1953 a 1969, lavrando, dentre muitos precedentes afirmadores dos direitos fundamentais, aquele que sepultou a segregação racial no país de forma unânime (caso Brown v. Board of Education).
Como conseguiu ser tão combatido e odiado? A explicação é complexa.
O poder político pede passagem e quer percorrer esse curso desprovido de quaisquer obstáculos. Supremas Cortes existem desde a Grécia antiga (chamavam-se Gerúsia, em Esparta), desde Roma (o Senado também era Magistratura Suprema), e a finalidade, em essência, é a mesma: impor algum tipo de embaraço a essa pulsão do poder.
Não é incomum haver ruídos entre o detentor do poder (divino ou popular) e esses corpos de julgadores (que também detém bastante poder). De tempos em tempos, o que é ruído vira tempestade e trovoada. Na guerra (política ou jurídica), vence o mais forte, e o conceito de força aqui é bem relativo.
Quando a composição da Suprema Corte é boa, ela simplesmente freia o poder do outro, controlando-o nos limites de suas competências e nos termos da Constituição. Tanto que esse é o juramento feito ao se assumir o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal: "Prometo bem e fielmente cumprir os deveres do cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal, em conformidade com a Constituição e as leis da República".
Mas quando a composição é ruim, a Corte usurpa parte desse poder político para que também sinta o seu doce sabor, descontroladamente; ou, então, simplesmente obedece ao governante, retirando-lhe os controles. Às vezes faz as duas coisas.
O fato de a jornada ser conhecida não elimina o risco. Para que possamos colocar de pé os nossos projetos de felicidade individual e coletiva, é de fundamental importância que haja respeito às individualidades, um plexo de direitos previstos em algum lugar (que tenha contado com a nossa participação direta ou indireta) e a disposição de fazê-los valer ainda que o governante discorde. Quando se avança contra o Poder Judiciário e suas Supremas Cortes (imperfeitas que são, e, algumas delas, mais imperfeitas ainda), essa construção institucional fica comprometida. Quem sente as consequências somos nós.
É curiosa a relação dos Presidentes da República ou Primeiros-Ministros com os juízes das Supremas Cortes. Por vezes, os querem bem; noutras ocasiões, mal.
Acontece que a ideia de justiça é tão poderosa, especialmente junto aos menos afortunados, quanto a de dignidade, de democracia ou de salvação. Poucas coisas são tão influentes na vida nacional do que um Poder Judiciário (ou uma Suprema Corte) respeitado. É preciso zelar por esse ideal. Não sem razão, muitos desses ministros outrora atacados se veem convocados a traçarem os destinos nacionais uma vez mais.
Earl Warren, que via seu rosto em outdoors pedindo o seu impeachment, foi indicado, em 1963, pelo presidente Lyndon Johnson, para presidir a Comissão criada para investigar o assassinato do presidente John Kennedy. Quando aquela grande nação se partiu ao meio, foi a um juiz da Suprema Corte que as autoridades políticas recorreram.
Em Nuremberg, quando os Estados Unidos necessitaram de um procurador-chefe à altura daquele episódio judicial histórico que sucedeu o fim da Segunda Guerra Mundial, suplicaram por Robert Jackson. O Presidente Harry Truman o indicou mesmo ele compondo a Suprema Corte, o que o fez tirar uma licença (Jackson, a propósito, compôs a unanimidade de votos em Brown v. Board of Education).
Ano passado, o governo israelense, que pouco antes tentara acabar com a jurisdição constitucional do país esvaziando as competências da Suprema Corte (Beit HaMishpat HaElyon), nomeou Aharon Barak como juiz ad hoc para atuar no Tribunal Internacional de Justiça no caso África do Sul v. Israel, que acusava formalmente Israel de genocídio. Barak presidiu a Suprema Corte israelense de 1995 a 2006 (integrava o Tribunal desde 1978). Muito recentemente, havia sido dura e covardemente atacado pelos aliados do Primeiro-Ministro Benjamin Netanyahu (pediam sua prisão e o chamavam de criminoso diante de sua casa). Mesmo assim, quando seu país lhe convocou para uma missão judicial desse porte, ele estava lá, com os seus 88 anos de idade.
No Brasil, o atual Presidente, Luís Inácio Lula da Silva, após ter indicado o então ministro da Justiça (Flávio Dino) para a Suprema Corte, percebeu que o país seguia precisando de um insumo raro enviado em tempos especiais ao serviço público. Não titubeou em indicar Ricardo Lewandowski, mais um com passagem pela Suprema Corte e que acabara de se aposentar. Entre descansar ou servir, optou por servir.
Os apelos aos homens e mulheres da justiça são frequentes no ecossistema político. Todos, em algum momento, o fazem. No final de 2024, o ex-presidente Jair Bolsonaro disse o seguinte numa entrevista para a Revista Oeste: "Vamos pacificar e zerar o jogo daqui para frente. Se tivesse uma palavra do Lula, do Alexandre de Moraes no tocante à anistia, tava tudo resolvido". Até ele apelou a um juiz da Suprema Corte.
Ora, os juízes servem ou não servem? É, a Suprema Corte, o descanso de qualquer nação onde podemos encontrar meios para a correção de injustiças ou um lugar para ser fechado por "um soldado e um cabo"? Devemos nos apegar ao art. 2º da Constituição, que coloca o Judiciário como aquele que dá, pela lei e pela Constituição, a última palavra nas coisas do poder, depois do Legislativo e do Executivo, ou o nosso guia é o art. 142, que para alguns constituicidas diz que a última palavra na interpretação da Constituição é dada pelas Forças Armadas, marchando de armas em punho, com tanques nas ruas?
Só há uma resposta possível: somos um Estado Constitucional. O Preâmbulo apresenta a justiça como sendo um valor supremo, enquanto o art. 3º, I da Constituição aponta como objetivo da República o de construir uma sociedade justa. Quem fala por último é o Supremo Tribunal Federal, que deve fazer em proveito dos direitos fundamentais e nos limites das suas competências.
Mas voltemos a Earl Warren. Ele morreu em 1974. Horas antes, esteve com William Brennan e William Douglas (que também seguiu Warren no caso Brown v. Board of Education). Foram ao hospital dar o último abraço ao líder e colega de Suprema Corte.
Quando do funeral, seus antigos assessores selecionaram passagens escritas por ele e remeteram à sua esposa, para que escolhesse aquela que merecia ficar gravada na lápide do túmulo, no Cemitério Nacional de Arlington, na Virgínia (onde toda a história do constitucionalismo dos Estados Unidos começou).
Nina, viúva de Warren, escolheu algo que o marido havia escrito em 1972, quando já estava aposentado. Diz o seguinte: "Onde há injustiça, devemos corrigi-la; onde existe pobreza, devemos eliminá-la; onde há corrupção, devemos erradicá-la; onde há violência, devemos puni-la; onde há negligência, devemos cuidar; onde há guerra, devemos restaurar a paz; e onde quer que sejam alcançadas correções, devemos adicioná-las permanentemente ao nosso depósito de tesouros."
É um pensamento repleto de beleza. Entre nós também há uma afirmação magnífica. Ela diz: "Juro, no exercício das funções de meu grau, acreditar no Direito como a melhor forma para a convivência humana, fazendo da justiça o meio de combater a violência e de socorrer os que dela precisarem, servindo a todo ser humano, sem distinção de classe social ou poder aquisitivo, buscando a paz como resultado final". É o que jura cada brasileiro, cada brasileira, ao se tornar juiz no Brasil.
Os homens e mulheres do poder político, nos seus mais graves momentos, recorrem à justiça, porque não há vida abundante sem ela. Mas a justiça não pode ser o que Eduardo Galeano advertiu: "como a serpente, que só morde os pés descalços".
Juízes (especialmente os de uma Suprema Corte) têm a obrigação indeclinável de ser justos, de ser retos, de ser humildes quanto às competências das quais foram investidos, ao mesmo tempo que destemidos nessa rara arte de fazer justiça quando é dela que o país mais necessita. Não devem pedir licença para fazer cumprir a Constituição, pois são independentes, assim como não podem, a cada voto, criar uma própria Constituição para chamar de sua, pois são limitados pelos fundamentos de suas decisões.
Sobrevivemos ao 8 de janeiro, é verdade, contudo, os inimigos da democracia constitucional seguirão nos rondando. Eles sempre estiveram à espreita e, no Brasil, formam um grupo com grande capacidade reprodutiva. É preciso seguir vigilante, dar exemplo e realçar todos os dias as razões pelas quais a justiça verdadeira é o capital mais importante de uma nação, incluída, nela, a justiça emanada das Supremas Cortes.
Destruir um prédio público, incendiar suas cadeiras e estilhaçar suas vidraças são atos violentos profundamente desestabilizantes da paz social. Quando motivados por interesses golpistas e executados a partir de uma coordenação nacional, podem, sim, agitar um clima capaz de comprometer a democracia. Mas, na prática, são incapazes de destruir o sentimento de justiça que urge do espírito coletivo e que dá vida às sociedades. Por isso, os brutos do 8 de janeiro perderam, eles fracassaram em seu intento.
Quem sofre, quer justiça; quem já se sentiu esmagado, almeja justiça; quem foi humilhado em sua dignidade, vindica justiça; quem foi invisibilizado, lutará por justiça; quem se viu privado dos seus direitos, perseguirá a justiça. No Brasil, são muitas dezenas de milhões de pessoas assim, pessoas que em algum momento da vida ouviram expressões como "fome de justiça" ou "sede de justiça", logo, o desejo por ver esse ideal acontecer forja a própria essência social do país, o seu espírito popular.
E não há justiça sem Judiciário, tampouco o cumprimento da Constituição sem uma Suprema Corte. É por isso, e por muito mais, que o dia 8 de janeiro jamais pode se repetir. E, no que depender de nós, brasileiros e patriotas constitucionais, não se repetirá. Como bem profetizou Earl Warren: "Onde quer que sejam alcançadas correções, devemos adicioná-las permanentemente ao nosso depósito de tesouros." Assim será.