Os shopping centers na Constituição e no STF
terça-feira, 1 de outubro de 2024
Atualizado às 07:39
A versão originária da Constituição dos Estados Unidos, cuja vigência se iniciou em 1789, não trazia a palavra liberdade. Apenas em 1791, quando entrou em vigor o conjunto de dez emendas chamado Bill of Rights, a primeira delas introduziu a expressão ao tratar sobre a "liberdade de expressão".
Estreando a sua bem-sucedida carreira de advogada, Ruth Bader Ginsburg, que depois se tornou juíza da Suprema Corte, certa feita ocupava a tribuna de um tribunal masculino defendendo a igualdade entre os sexos à luz da Constituição. De repente, o presidente da Corte a interrompe: "A palavra 'mulher' não aparece sequer uma vez no texto original da Constituição dos Estados Unidos!", diz ele. Ruth respondeu imediatamente e de improviso: "Nem a palavra 'liberdade', Excelência". Ganhou o caso.
Essa cena é ilustrativa da potência que há na hermenêutica constitucional. A interpretação se vale de um conjunto robusto de técnicas capazes de habilitar o intérprete a alcançar o melhor que a Constituição tem para dar em termos de significado. Não havia, de fato, a palavra "mulher" no texto constitucional, mas isso limita o Poder Judiciário?
No Brasil, a CF/88 não traz a palavra shopping. Fala, contudo, nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, IV). O caput do art. 5º - um dos mais importantes da Constituição - assegura a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, liberdade que também é de trabalho, ofício, profissão (inciso XIII) e de locomoção (inciso XV). Garante-se o direito de propriedade (inciso XXII), reconhecendo, nesta, uma função social (inciso XXXIII).
Segundo o art. 6º, bens da vida como a alimentação, o trabalho e o lazer são exemplos de direitos sociais, sendo que, no caso do lazer, ele deve ser compreendido como uma das necessidades vitais básicas da pessoa e da sua família (art. 7º, IV).
Ou seja, será mesmo que a Constituição não trata dessa relevante figura jurídica que é o shopping center pelo mero fato de não haver tais palavras em seu texto?
A primeira resposta vem do reconhecimento, pelo STF, há mais de 35 anos, da legitimidade da Abrasce - Associação Brasileira de Shopping Centers para propor ação direta de inconstitucionalidade questionando dispositivos do interesse e com impacto direto na situação jurídica de setores dos shopping centers (ADIn 49, rel. min. Paulo Brossard, j. 31/05/89). É um honroso rol disposto no art. 103 da Constituição que coloca a Abrasce ao lado de protagonistas como o presidente da República, os governadores, o procurador-Geral da República, o Conselho Federal da OAB e partido político com representação no Congresso Nacional.
Mas não é só. O Pleno do Supremo, órgão máximo composto pela totalidade dos integrantes - onze -, já asseverou que são inconstitucionais: (i) lei municipal que estabelece a obrigação da implantação, nos shopping centers, de ambulatório médico ou serviço de pronto-socorro equipado para o atendimento de emergência (Tese 1051, RE 833.291, rel. min. Dias Toffoli, DJe 08/01/24); e (ii) qualquer tipo de regulação de preço de estacionamento em shopping (ADIn 6075, rel. min. Marco Aurélio, DJe 10/08/21). A 2ª turma, por sua vez, derrubou leis municipais que haviam instituído a obrigatoriedade, no âmbito daquele município, de cobertura de seguro contra furto e roubo de automóveis, para as empresas que operam área ou local destinados a estacionamentos, com número de vagas superior a cinquenta veículos, ou que deles dispusessem (RE 313.060, rel. min. Ellen Gracie, DJe 24/02/06).
Boa parte desses precedentes nasce de inconstitucionalidades formais derivadas da invasão, por estados ou municípios, de competências legislativas privativas da União, constantes dos incisos do art. 22, tais como legislar sobre direito civil, comercial e do trabalho (I) e política de seguros (VII).
Por outro lado, há posições assegurando haver certo espaço de conformação legislativa em temas que eventualmente alcancem os shopping centers, mas que estejam sob a competência complementar ou suplementar dos estados ou municípios.
Exemplo é a constitucionalidade de lei municipal que estrutura e mantém equipes de bombeiros civis para prestação de atendimentos de primeiros socorros e de combate a incêndios em estabelecimentos comerciais de grande porte, por entender se tratar de norma de interesse local suplementadora da legislação federal e estadual (art. 30, I e II) (ARE 1.394.075 AgR, rel min. Nunes Marques, DJe 13/08/24).
A 1ª turma, por sua vez, validou lei municipal que destinava uma quantidade de mesas e cadeiras em praças de alimentação de centros comerciais para o uso de deficientes, idosos e gestantes (ARE 1.479.968 AgR, rel. min. Flávio Dino, DJe 12/06/24). Entendeu-se se tratar de direto do consumidor, cuja competência é comum aos entes (art. 24, VIII, CF) e também disciplina sobre proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência, idosos e gestantes (art. 30, II, CF).
Noutro caso, entendeu não competir ao Poder Judiciário suspender a exigibilidade de crédito tributário sem previsão legal. Pleiteava-se o afastamento da incidência de IPTU por ter havido restrição do exercício da propriedade durante o período de fechamento de shopping center em razão das medidas sanitárias adotadas na pandemia da Covid-19 (ARE 1.402.769 AgR, rel. min. Luiz Fux, DJe 01/12/22).
Nem sempre, contudo, o fundamento dessas decisões se limita à invasão de competências da União. No RE 833.291 (DJe 08/01/24), de relatoria do ministro Dias Toffoli, a tese 1051 derrubou lei municipal que estabelece a obrigação da implantação, nos shopping centers, de ambulatório médico ou serviço de pronto-socorro equipado para o atendimento de emergência. Nesse precedente, a livre iniciativa conduziu o ethos interpretativo da maioria, para além da inconstitucionalidade formal (invasão de competência da União para legislar sobre direito do trabalho e comercial).
Para o ministro Dias Toffoli, o legislador municipal havia invadido "indevidamente o espaço da liberdade de iniciativa", pois "as imposições contidas nas leis impugnadas afrontam, desproporcionalmente, a liberdade econômica, consistindo em inadequada e impertinente intervenção estatal".
Segundo o ministro, "em que pese a necessidade da intervenção estatal no âmbito econômico se orientar na direção de valores sociais, tal atuação não pode ser desproporcional." Tais obrigações transbordariam "os limites de intervenção estatal na atividade econômica desenvolvida por esses estabelecimentos, seja pela ausência de correlação com a prestação de serviços oferecida, seja pela imposição de altos custos na implantação e na manutenção do espaço, incluindo gastos com contratação, afora o custo de oportunidade de utilização do espaço".
O ministro Dias Toffoli pontuou, por fim, que "não obstante o valor tutelado pelas normas impugnadas, entendo que elas impõem demasiado ônus aos empresários do ramo, configurando intervenção estatal desarrazoada em clara afronta aos princípios da livre iniciativa, da razoabilidade e da proporcionalidade".
Por 6 a 4, o STF deu provimento ao recurso da Abrasce para declarar a inconstitucionalidade das leis municipais, nos termos do voto do ministro Dias Toffoli, que foi acompanhado pelos ministros Nunes Marques, André Mendonça, Luiz Fux, Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso. O ministro Edson Fachin, que divergiu, foi acompanhado pelos ministros Cristiano Zanin, Alexandre de Moraes e Cármen Lúcia.
Percebe-se, portanto, que as discussões constitucionais travadas pelo STF acerca de legislações dirigidas aos shopping centers encontram correções não apenas por poder haver nelas inconstitucionalidades formais, mas, também, graves violações materiais, o que torna ainda mais sofisticado esse debate.
Caso ilustrativo é o RE 119.258 (DJe 21/08/92), segundo o qual leis municipais haviam instituído, em favor dos "centros de compras", regime de funcionamento diverso do previsto para o "comércio tradicional". Alegou-se afronta ao princípio da isonomia. A relatoria coube ao ministro Ilmar Galvão.
A 1ª turma julgou improcedente o pleito. Segundo o ministro relator, os shopping centers não contribuem para a degradação das condições de vida das populações das cidades, pois não provocam excesso de concentração urbana, não acarretam o desconforto da poluição ambiental, nem congestionam o tráfego. Isso, em comparação com os "comércios tradicionais", em regra concentrados nos centros das cidades.
O ministro Ilmar Galvão anotou ainda que os shopping centers oferecem, sem ônus para o Poder Público, segurança a seus frequentadores, não se limitando a uma opção confortável de compras, constituindo também uma "atração especial para os interessados em lazer e recreações, comodidades que ficariam fora do alcance dos que trabalham, se houvesse coincidência de horários". Concluiu a 1ª turma que a norma apenas conferiu um tratamento legal distinto para situações diferenciadas.
Remanesce uma outra linha de fundamentação que parece ter potencial de alcançar os shopping centers: a chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
O primeiro grande precedente do Supremo lavrado à luz dessa corrente se deu no RE 201.819 (DJe 27/10/06), na 2ª turma, tendo se sagrado vencedor o voto do ministro Gilmar Mendes. O caso não versava sobre shopping centers.
A 2ª turma definiu que as associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não-estatal.
A UBC - União Brasileira de Compositores, sociedade civil sem fins lucrativos, integrante da estrutura do ECAD, assumiria posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, oneraria, assim, o recorrido, o qual ficaria impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras.
O voto do ministro Gilmar Mendes pontuou que "as violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado".
A conclusão foi essa: "O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88)".
Igual perspectiva exegética foi adotada no julgamento da ADIn 2572 (DJe 10/11/22), de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, que questionava lei que reservou 3% dos lugares disponíveis em salas de projeções, teatros, espaços culturais e nos veículos de transporte público municipal e intermunicipal do Estado do Paraná.
Primeiro, se rejeitou a pecha de inconstitucionalidade formal, "tendo em vista que a política de inclusão adotada se enquadra na competência concorrente dos Estados, da União e dos Municípios para promover acesso à cultura, esporte e lazer (arts. 6º; 23, V; 24, IX; 215 e 217, § 3º, CF)". Quanto à inconstitucionalidade material, também se refutou a alegação, tendo em vista que "(i) a reserva de lugares foi estabelecida em percentual razoável e (ii) se trata de política inclusiva que não afronta a liberdade de iniciativa, principalmente se considerada a eficácia horizontal dos direitos fundamentais".
Faz-se rica, portanto, a conformação constitucional que o STF vem, ao longo de sua longeva jornada, conferindo aos shopping centers por meio da interpretação de fatos, casos e relações travadas "por" ou "nesses" ecossistemas. Ora o vetor hermenêutico é o federalismo, com exortações relativas às competências legislativas das pessoas políticas em dados temas. Ora o vetor hermenêutico é a liberdade de iniciativa (e a proporcionalidade), dessa vez quando se detecta haver inconstitucionalidade material. Há ainda precedentes fiados no princípio da isonomia. Por fim, e ainda sem apresentar um caso cuidando exatamente de shopping centers, a chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
Quanto a essa última possibilidade exegética (a eficácia horizontal dos direitos fundamentais), o Pleno do STF, recentemente, se viu impedido, por questões processuais, de deliberar acerca do tema 778, que era o seguinte: "Possibilidade de uma pessoa, considerados os direitos da personalidade e a dignidade da pessoa humana, ser tratada socialmente como se pertencesse a sexo diverso do qual se identifica e se apresenta publicamente" (RE 845.779). Impossível que a discussão não passasse pelos direitos fundamentais, mas o recurso extraordinário terminou não sendo conhecido.
Shopping centers integram a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. Apoiam campanhas sociais, fortalecem a consciência popular acerca de agendas relevantes, elucidam e educam. Em seus espaços há cultura, há lazer, há desporto, há livre trânsito de pessoas, há o exercício das funções sociais da cidade, há cidadania, há um plexo robusto de direitos constitucionais sendo realizados diariamente. Esses espaços, frutos de um longo aperfeiçoamento urbano e do incremento do poder de consumo da população, devem ser compreendidos em toda a sua importância histórica, social e, por que não dizer, constitucional.
Essa compreensão passa pelo reconhecimento de espaços restritos de conformação legislativa por leis emanadas de entes políticos subnacionais em dados temas que podem até alcançar, residualmente, os shopping centers. Mas passa também pela vitalização do primado da liberdade (especialmente a de iniciativa), do dever de desenvolvimento, do reconhecimento do direito de propriedade (com sua função social) e da preservação da autonomia privada. A Constituição rege e protege, sim, os shopping centers.