Paridade na Justiça: De estátuas a desembargadoras
segunda-feira, 15 de abril de 2024
Atualizado às 07:27
Em 1954, nos Estados Unidos, a Suprema Corte, julgando o caso Brown v. Board of Education, derrubou as políticas de segregação racial nas escolas públicas do país.
Ano seguinte, no caso Brown II, a Corte optou por descentralizar o cumprimento e abrangência da sua decisão, delegando aos tribunais locais o poder de emitir ordens em torno da dessegregação. Qual o resultado? Uma proliferação de entendimentos enfraquecedores da força normativa da Constituição que terminaram por esvaziar a eficácia do célebre caso "Brown", atrasando bastante o processo de dessegregação.
A forma encontrada para corrigir essa disfuncionalidade foi a Suprema Corte anular o caso Brown II, para que, em 1964, pudesse o próprio Tribunal voltar a assegurar a higidez do seu célebre precedente realizador de direitos fundamentais.
O exemplo mostra que não costuma haver, nas jurisdições mundo afora, uma fina sintonia entre precedentes asseguradores de direitos fundamentais firmados pela Suprema Corte e um órgão competente para traduzir essas conquistas em iniciativas institucionais a serem adotadas celeremente pelo Poder Judiciário. A Suprema Corte decide, mas, muitas vezes, as cortes estaduais se valem de lacunas na decisão e se negam a aplicar, imediatamente, aquele precedente.
O Brasil, contudo, dispõe de um aparato capaz de evitar insubordinações desse tipo. Um dos elementos desse aparato é o diálogo institucional operado entre o Supremo Tribunal Federal e o Conselho Nacional de Justiça.
Muitas das resoluções emanadas do CNJ no exercício do seu poder normativo já reconhecido pelo próprio Supremo decorrem de decisões ou sinalizações exegéticas dadas pelo STF quando do exercício do seu dever de guarda da Constituição.
Na ADC n° 12, o STF baniu o nepotismo, assim como fizera antes o CNJ na Resolução n° 07/2005, por considerar que se tratava da realização desses princípios constitucionais: moralidade administrativa, eficiência, igualdade e impessoalidade.
Em 2013, o CNJ aprovou a Resolução nº 175, vedando às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo. O então presidente do STF e do CNJ, ministro Joaquim Barbosa, recordou que o STF havia apreciado a ADPF nº 132 e a ADI nº 4277, reconhecendo a inconstitucionalidade de distinção de tratamento legal às uniões estáveis constituídas por pessoas de mesmo sexo.
No final de 2014, foi publicado o acórdão da ADPF nº 186, no qual o relator, ministro Ricardo Lewandowski, na companhia da unanimidade da Corte, anotou:
"I - Não contraria - ao contrário, prestigia - o princípio da igualdade material, previsto no caput do art. 5º da Carta da República, a possibilidade de o Estado lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminados de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares."
Segundo o ministro Ricardo Lewandowski, "o modelo constitucional brasileiro incorporou diversos mecanismos institucionais para corrigir as distorções resultantes de uma aplicação puramente formal do princípio da igualdade". Rememorou que o STF "em diversos precedentes, assentou a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa".
Ano seguinte, em 2015, o mesmo ministro Ricardo Lewandowski, dessa vez ocupando a presidência do CNJ, assina a Resolução nº 203, que dispõe sobre a reserva aos negros, no âmbito do Poder Judiciário, de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e de ingresso na magistratura. Depois, estendeu-se aos povos indígenas, pelo Ato Normativo nº 0007920-83.2022.2.00.0000.
Esse histórico se repete com a Resolução nº 525/2023, ato normativo do CNJ que leva a assinatura da ministra Rosa Weber, então presidente do Conselho e do STF. A resolução traz uma ação afirmativa de gênero para acesso das magistradas aos tribunais de 2º grau (Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário). Ela coroa décadas de jurisprudência do STF reafirmando direitos exclusivos às mulheres.
Dia 10 de abril último, o Tribunal de Justiça de São Paulo promoveu, no critério merecimento, pela primeira vez no país, uma magistrada à luz da referida Resolução CNJ nº 525/2023. A juíza Maria de Fátima dos Santos Gomes, doutora em Direito e exercente da judicatura paulista há mais de 33 anos, se tornou desembargadora.
O presidente do TJSP, desembargador Fernando Garcia, cumpriu integralmente a resolução, agindo como um "Estadista Judicial" (ou como os americanos denominam: Judicial Statesman)1. Superou resistências pontuais e aplicou a lei. Agora, um novo capítulo se abre no país.
O Poder Judiciário sempre exibiu, em seus palácios, figuras mitológicas femininas deixadas do lado de fora dos edifícios estatais, silentes, imóveis, como se fossem troféus adormecidos, postados sob a violência do sol ou a dureza da chuva. Enquanto do lado de fora sobravam estátuas, do lado de dentro faltavam desembargadoras.
Agora, com a Resolução CNJ nº 525/2023, as magistradas brasileiras mostram que não aceitam mais ser apenas estátuas de pedra adornando fachadas nos palácios da lei. Suas Excelências vão entrar nesses palácios que também lhes pertencem, assumir os assentos que lhes foram direta ou indiretamente subtraídos, e, servindo ao público por meio do exercício da jurisdição, irão fortalecer as mais elevadas causas da justiça.
Nada será capaz de frear o cumprimento desse destino. STF e CNJ devem seguir dialogando em proveito dos direitos fundamentais e inserindo o Poder Judiciário nessa equação emancipatória. A Resolução CNJ nº 525/2023 é apenas o primeiro passo.
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1 John Marshal, o inigualável presidente da Suprema Corte dos EUA, por exemplo, era chamado assim.