Presidente, não se esqueça de mim
segunda-feira, 26 de junho de 2023
Atualizado às 08:16
Senhor Presidente da República, Vossa Excelência tomou posse prestando o compromisso de manter os meus postulados, de me defender e de cumprir o que eu prometo. Não se esqueça disso, não se esqueça de mim.
Também os ministros e ministras do Supremo Tribunal Federal prestaram o compromisso de bem cumprirem os deveres do cargo, de conformidade comigo e com as leis da República. Eu existo, eu importo, eu conheço esse país.
No meu Preâmbulo, coloquei a igualdade ao lado da justiça. Fiz de propósito. Dispus que um dos objetivos fundamentais da República é promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo ou cor.
Também mandei criar incentivos específicos para proteger o mercado de trabalho da mulher e determinei a criação e a manutenção de programas de promoção e difusão da participação pública das mulheres.
Presidente, eu ordenei a valorização da diversidade étnica, proibi diferença de critério de admissão por motivo de sexo e de cor e afirmei que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações.
Fiz isso, porque eu, além de ser mulher, tenho cor. Eu sou o resultado legítimo da maioria desse país. Vossa Excelência deve imaginar qual é a minha cor.
Conhecendo o Brasil como conheço, tive o cuidado de determinar que se repudiasse o racismo. Ordenei que fôssemos uma sociedade sem preconceitos. Eu imortalizei as reminiscências históricas dos antigos quilombos e de suas comunidades, determinei que o Estado proteja as manifestações das culturas afro-brasileiras e que preserve a memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.
Mesmo antes de eventos históricos decisivos como a Independência dos Estados Unidos ou a Revolução Francesa, eu, naquela outra vida que tive, já perseverava pelo ideal de justiça no Brasil. Naquele tempo, o meu atual nome, Constituição, era escrito de outro modo. Eu me chamava Esperança.
Numa fazenda no interior do Piauí, em 1770, pedi respeito aos direitos prescritos em leis feitas pelos homens do poder. A mulher negra, nordestina, escravizada, que conhece a injustiça, estava lá. Aprisionaram-me e amordaçaram-me. Mesmo o mundo sendo tão duro comigo, segui acreditando na justiça. Vossa Excelência sabe o que é isso? Sei que sabe. Pois é, Presidente, nós conhecemos essa dor.
Mas hoje, mais de 250 anos depois da petição que redigi quando eu ainda me chamava Esperança e vivia no Piauí, nunca houve alguém como eu integrando a mais elevada das Casas de Justiça desse país. A leitura e a interpretação que lá fazem de mim jamais foram feitas por uma irmã, por uma mulher como eu, da minha cor. Como pode?
Os homens costumam nos associar às rosas. Como elas, somos lembradas, elogiadas, homenageadas, falam da nossa beleza, do nosso perfume..., mas, acredite, Presidente, não somos enfeite, não viemos ao mundo para decorar mesas, para adornar convescotes, para sermos dadas de presente, embrulhadas em pacotes. A nossa história é feita de bravura, queremos igualdade, justiça e por que não ternura?
E por falar em rosas, soube que em outubro uma delas cumprirá o seu extraordinário destino no Supremo Tribunal Federal. Quando uma rosa se vai, o vazio se impõe. Apenas outra é capaz de preencher aquele lugar.
Somos tantas, e tão diversas, que não precisamos ter a mesma forma, sequer a mesma cor. Uma rosa pode vir de Porto Alegre; a outra, de Salvador. Mas uma coisa é fato: só se substitui uma rosa por outra, isso é o mínimo.
Senhor Presidente, Vossa Excelência prometeu manter os meus postulados, me defender e cumprir o que eu prometo. Não se esqueça disso, não se esqueça de mim.