O direito à paz na Constituição
terça-feira, 9 de agosto de 2022
Atualizado às 07:39
A Constituição se abre pelo seu Preâmbulo, que apresenta a nossa sociedade como sendo fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias.
O primeiro comando que replica e detalha esse ethos preambular é o art. 4º, que disciplina os princípios regedores da República nas suas relações internacionais.
Colonizamos países? Não, pois a Constituição manda que defendamos a "independência nacional".
E quanto a matar pessoas em seus países ou desrespeitar os seus direitos? Um outro princípio imposto pela Constituição é o da "prevalência dos direitos humanos". Não subjugamos os povos, pois estamos constitucionalmente vinculados à sua autodeterminação; não intervimos em nações soberanas, pois um dos princípios que nos regem é o da "não-intervenção"; não nos sentimos superiores, pois sabemos que, segundo o inciso V do art. 4º, devemos respeitar a "igualdade entre os Estados".
E quanto às guerras? A Constituição manda que façamos a "defesa da paz" (art. 4º, VI). Ela não apenas dispõe sobre a "solução pacífica dos conflitos", mas determina que repudiemos o terrorismo. O inciso do art. 4º determina que perseveremos pela "cooperação entre os povos para o progresso da humanidade" (inciso IV), concedendo, inclusive, "asilo político" a quem dele necessitar (inciso V).
Além da paz externa, a Constituição de 1988 reconhece o direito à paz doméstica. Essa conclusão não é retórica, mas, como se observa, absolutamente decorrente da positivação constitucional, que estabelece como sendo um dos objetivos fundamentais da República o de promover "o bem de todos" (art. 3º, IV).
Acontece que essa paz na ordem interna se realiza, por exemplo, por intermédio da segurança. O primeiro e mais central elemento conformador dessa segurança é a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), um dos fundamentos da República e ponto de partida e de chegada de toda a hermenêutica constitucional contemporânea.
Assumida a premissa de que a segurança precisa ser buscada nos termos da Constituição e em respeito, especialmente, à dignidade da pessoa humana, é válida a lembrança de que o Preâmbulo diz estarmos destinados a assegurar o exercício dessa mesma segurança. O caput do art. 5º, voltado para os direitos e garantias individuais e coletivos, garante aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à segurança. O art. 6º, caput, veiculador dos direitos sociais, apresenta como um desses direitos exatamente o direito à segurança.
Mas para que haja verdadeira segurança é preciso haver a realização de outros direitos, como, por exemplo, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III). Há uma correlação intrínseca entre esses elementos e os tensionamentos à segurança pública, por isso o país precisa adotar uma visão holística da questão, não depositando todas as suas fichas em termos de políticas públicas na repressão policial, sob pena de fracassar em seu propósito.
Feito esse registro, vale a lembrança de que o art. 144 da Constituição oferece algumas das instituições estatais por meio das quais essa paz interna pode ser alcançada.
Diz o comando que a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I - polícia federal; II - polícia rodoviária federal; III - polícia ferroviária federal; IV - polícias civis; V - polícias militares e corpos de bombeiros militares. VI - polícias penais federal, estaduais e distrital. Segundo o § 8º do mesmo dispositivo, os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.
Paz interna é, portanto, gozar de segurança, sabendo que esta não é um fim em si mesmo, mas uma forma de estabilizar a comunidade e permitir que ela goze de outros direitos. Essa segurança há de ser buscada por meio das instituições estatais previstas na Constituição, nos limites dessa mesma Constituição, e sempre em respeito à dignidade da pessoa humana, elemento catalizador de toda a nossa ordem constitucional.
A falta de paz interna compromete o Estado Constitucional. Segundo o inciso XV do art. 5º, "no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano". O inciso III do art. 34 dispõe que a União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para "pôr termo a grave comprometimento da ordem pública".
Se é inegável a liderança do presidente da República na condução da paz externa, ou da paz na ordem internacional, não menos evidente é o papel central a ele outorgado pela Constituição em favor da paz interna, ou seja, da paz na ordem doméstica.
Essa compreensão encontra o seu pináculo no inciso IV do art. 85, ao se estipular, como sendo um dos crimes de responsabilidade, os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição e, especialmente, contra "a segurança interna do país".
O art. 136 assevera que o Presidente pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional.
Há outros direitos, contudo, de exercício coletivo, que ora reclamam respeito aos "tempos de paz", ora impõem absoluto distanciamento de qualquer associação paramilitar, ora condicionam tal exercício à ausência de armas ou a propósitos de paz.
A liberdade de associação, por exemplo, somente é plena quando tenha fins lícitos, sendo vedada "a de caráter paramilitar" (inciso XVII do art. 5º). O art. 17, § 4º veda a utilização, pelos partidos políticos, de organização paramilitar.
Mesmo o direito de reunião apenas é assegurado se sua finalidade for pacífica e se as pessoas que dele fazem parte estiverem sem armas. Eis o inciso XVI do art. 5º: "todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente". A reunião precisa ser pacífica e os participantes necessitam estar sem armas.
Há mais. Quando é livre, para qualquer um, a locomoção no território, de modo a que nele todos possam entrar, permanecer ou dele sair com seus bens? Tão fundamental liberdade - a de ir, vir e permanecer - apenas é assegurada pela Constituição de 1988 em "tempo de paz" (art. 5º, XV). Até esse básico intitulamento a guerra nos tira.
A Constituição não descansa quanto aos grupos armados, civis ou militares, que agem contra a própria ordem constitucional ou contra o Estado Democrático. Trata-se de prática constitucionalmente abominada. Segundo o inciso XLIV do art. 5º, "constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático".
O terrorismo também conta com absoluto repúdio. A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia o terrorismo, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem (art. 5º, XLIII).
Toda atividade nuclear em território nacional somente será admitida para fins pacíficos e mediante aprovação do Congresso Nacional (art. 21, XXIII, "a").
Na guerra é possível haver penas de morte (art. 5º, XLVII, "a"). Também pode haver requisições civis e militares (art. 22, III) pela União. Esta, mediante lei complementar, poderá instituir empréstimos compulsórios para atender a despesas extraordinárias (art. 148, I) e impostos extraordinários, compreendidos ou não em sua competência tributária (art. 154, II).
No estado de defesa, por exemplo, pode haver as seguintes medidas coercitivas: I - restrições aos direitos de: a) reunião, ainda que exercida no seio das associações; b) sigilo de correspondência; c) sigilo de comunicação telegráfica e telefônica; II - ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos, na hipótese de calamidade pública, respondendo a União pelos danos e custos decorrentes (art. 136. § 1º).
No estado de sítio, as restrições são ainda mais severas: quando decretado com fundamento no art. 137, I: obrigação de permanência em localidade determinada; detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns; restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei; suspensão da liberdade de reunião; busca e apreensão em domicílio; intervenção nas empresas de serviços públicos; VII - requisição de bens (art. 139).
Não fosse pouca coisa, a Constituição ainda não poderá ser emendada na vigência de estado de defesa ou de estado de sítio (art. 60, § 1º).
A ordem constitucional brasileira quer a guerra ou a paz? Ela crê na diplomacia ou na pólvora? Persevera pela revanche ou pela reconciliação? Abraça, como estilo de vida coletiva, o duelo permanente ou a harmonia persistente? Resolve os conflitos pacificamente ou de forma beligerante? Antevê e protege um povo que traz armas em punho ou que mostra, mesmo nos momentos mais difíceis, uma mão estendida ao recomeço? Em caso de divergências, a convocação constitucional é pelo acesso à justiça ou aos duelos armados? A Constituição é da guerra ou da paz?
A Constituição anteviu associações e partidos políticos que jamais tivessem qualquer natureza paramilitar. Previu, ainda, reuniões que não fossem de ódio, mas pacíficas e, principalmente, com pessoas sem armas em punho. Estipulou a necessidade de um perpétuo tempo de paz, pois apenas nele é possível a liberdade de locomoção para que todos possam entrar, permanecer ou sair do nosso território com seus bens. Prevê ser criminosa - inafiançável e imprescritível - a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático. Qualifica como sendo um crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia o terrorismo.
O Brasil sonhado pela Constituição de 1988 é um Brasil da paz.