A busca da verdade na jurisdição constitucional
segunda-feira, 28 de março de 2022
Atualizado às 07:53
Assim começa essa história. "O que é verdade?", perguntou Pilatos. Em seguida, o governador da Judeia partiu. Não lhe interessava ouvir a resposta.1
Milênios foram percorridos pelos passos agitados da humanidade e a verdade segue sendo a bola da vez. Mais pela sua ausência do que pela sua presença, é justo dizer.
No Estado Constitucional contemporâneo - do qual o Brasil é adepto desde 1988 -, a verdade importa. A esse respeito, Peter Häberle chegou a afirmar: "na medida em que a comunidade dos povos se 'constitucionaliza', ela também pode se integrar gradualmente aos problemas da verdade e apresentar pretensões de verdade".2
Mas, então, se devemos conferir crédito à afirmação de Häberle no sentido de que declarações materiais e processuais sobre o tema da verdade são possíveis e certas condições de verdade são satisfeitas, como pudemos nos deixar levar para um caminho tão escuro? De que forma terminamos soterrados por um entulho de mentiras? Que bifurcação foi essa, perante a qual poderíamos ter percorrido a verdade e decidimos - ou decidiram por nós - trilhar, ao contrário, o caminho da ilusão?
Peter Häberle não foi indiferente às múltiplas questões da verdade. Em sua obra "Os problemas da verdade no estado constitucional"3, o célebre Professor desenvolve ideias acerca do tema e o faz com grande energia intelectual.
Ele inicia com questionamentos: "Constituir o Estado sobre a verdade permanece um belo sonho?" "Sem uma pretensão de verdade também não há tolerância?"4 "É a verdade o resultado de um discurso infindável?" "Está a verdade sujeita às regras da maioria?" "Está a verdade com a maioria?"5 "Podem as constituições mentir?"6
Häberle passa a dividir suas compreensões. "O processo no terceiro poder, o judiciário, relaciona-se especificamente com o problema da verdade"7, diz ele, chegando a falar numa "Verdade jurisprudencial"8 e recordando que a teoria do consenso de Jürgen Habermas "compreende verdade como a conformidade de uma alegação ou, respectivamente, como a capacidade de consenso no discurso dos participantes, o qual, entretanto, está sob a ideia orientadora de um diálogo livre e universal".9
Para além de um direito fundamental à verdade titularizado pelos particulares, democracias constitucionais em outros lugares do mundo têm positivado o que pode ser compreendido como um dever fundamental com a verdade pelo Poder Judiciário.
O inciso I do art. 180 da Constituição da Bolívia, por exemplo, determina o seguinte acerca do seu Judiciário: "A jurisdição ordinária baseia-se nos princípios processuais da liberdade, publicidade, transparência, oralidade, celeridade, probidade, honestidade, legalidade, eficácia, eficiência, acessibilidade, imediatismo, 'verdade material', devido processo legal e igualdade das partes perante o juiz".10
Não é apenas a Bolívia. Na Bulgária, o art. 121, 2, da Constituição diz: "O processo judicial assegura a apuração da verdade".11 Essa é a sua finalidade.
Além de apurá-la, compete-lhe, a partir dos casos que lhes chegam, proferir uma decisão que seja, no corpo social, a verdade possível revelada. Quem matou? Quem roubou? Quem fraudou? Quem corrompeu? É inconstitucional? É legal? Essas são perguntas cotidianamente formuladas no âmbito da Justiça. Se esta responder com a mentira, trata-se, no Brasil, de erro judicial a ser reparado pelo Estado. Segundo o inciso LXXV do art. 5º da Constituição, "o Estado indenizará o condenado por erro judiciário".
O descobrimento da verdade - na mesma acepção de Martin Heidegger12 - é o telos do Poder Judiciário brasileiro. Por isso, o art. 378 do Código de Processo Civil diz: "Ninguém se exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade".
Como a necessidade de estar sempre aberto para a verdade é perene, o inciso II do art. 504 do CPC diz não fazer coisa julgada "a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença". É como diz Moraes Moreira na música Verdade: "Verdade ninguém pode ser o seu dono". Sequer o trânsito em julgado é capaz de impedir o seu desvelamento (usando, uma vez mais, expressão de Martin Heidegger).
Se a verdade constitui o pináculo do processo penal e do processo civil, então o que dizer acerca do processo constitucional? Especificamente, quanto às ações ínsitas ao controle concentrado de constitucionalidade, quais sejam, a ação direta de inconstitucionalidade (por ação e omissão), a ação declaratória de constitucionalidade e a arguição de descumprimento de prefeito fundamental. Estaria o Supremo Tribunal Federal, ao realizar a Constituição por meios dessas ações, desonerado do seu dever de conduzir os casos pela higidez dos fatos e das provas a partir de quais é possível, após grave escrutínio hermenêutico, alcançar uma resposta que, para além de ser a correta (como previra Ronald Dworkin)13, seja a verdadeira?
Ou seria a Suprema Corte, quando do exercício da jurisdição constitucional abstrata, um equivalente funcional da política, conduzida pela retórica, pela opinião e em cujas decisões habitam os elementos de um mero discurso? Se não há fatos, nem provas, nem racionalidade, nem integridade jurisprudencial, como reclamar a preservação do dever da verdade? Teriam suas decisões natureza mágica, oracular, religiosa ou mítica?
Se uma Corte Constitucional se coloca na posição de dizer a verdade a partir da emoção, da retórica, da opinião, da força e mesmo da política, impondo suas decisões por meio de estocadas do poder, então toda a autoridade da qual ela deveria se revestir, e os caminhos os quais deveria percorrer - fatos, provas, discurso racional e justificação idônea -, já se perderam. Para Jacob Bazarian, "quando não se respeitam as leis ou princípios lógicos, o pensamento perde sua precisão, sua coerência e consequência, e torna-se incoerente e contraditório".14 Tempestades virão, podem acreditar.
Esse quadro ganha relevo se lembrarmos que essas decisões são irrecorríveis, protegidas, portanto, contra ações rescisórias.15 Coberto de razão, Gianni Vattimo anota: "Onde há democracia não pode haver uma classe de detentores da verdade 'verdadeira' que exercitam diretamente o poder (os reis filósofos de Platão) ou que fornecem ao soberano as regras pra seu comportamento".16
A verdade há de ser elemento essencial do discurso jurídico dos juízes e juízas constitucionais, porque é dela que se alimenta a expectativa de uma jurisdição justa, que faz uso de parâmetros racionais para o desenvolvimento dos raciocínios condutores da decisão, tomados a partir de regras previamente estabelecidas, advindos, pelos meios previstos, de uma comunidade livre e igual. Essa decisão também obedece a um conjunto próprio da ritualística judicial, seja quanto ao procedimento, seja quanto ao processo, seja quanto aos múltiplos simbolismos que alimentam a distinção ontológica do Poder Judiciário quando comparado aos Poderes Legislativo e Executivo.
A Justiça difere da política, bem como um juiz tem por papel algo diverso do que tem um legislador e uma decisão judicial não equivale a um discurso de um candidato num comício. É por essas e outras razões que a Suprema Corte precisa reafirmar seu compromisso de tomar decisões no âmbito da jurisdição constitucional abstrata, por meio da consideração dos fatos circunscritos ao caso e das evidências nos autos lançadas, fazendo uso de todo o aparato previsto em lei, para que a verdade da Constituição seja revelada não por monarcas ou oráculos, mas por um colegiado formado por brasileiros experientes, dotados de notável saber jurídico, com uma reputação ilibada e dispostos a encontrar a resposta do caso concreto. O processo constitucional não pode se converter num caminho para adivinhações, nem um documento da magnitude de uma decisão de uma Corte Suprema pode ser visto como mero engodo. Não podemos um dia ler um acórdão do STF e lembrarmos de Luís Fernando Veríssimo, quando este cunhou a seguinte frase: "Às vezes, a única coisa verdadeira num jornal é a data".
A ação direta de inconstitucionalidade - incluindo a por omissão - e a ação declaratória de constitucionalidade são regidas pela Lei nº 9.868/99, que, em seu art. 9º, § 1º, diz: "Em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou de notória insuficiência das informações existentes nos autos, poderá o relator requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou fixar data para, em audiência pública, ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria".17
Não ignora, a lei, a presença de fatos. Tampouco sublima a necessidade de, em dados casos, haver esclarecimentos acerca da matéria ou de não serem bastantes as informações constantes dos autos. Em seguida, entrega a peritos ou pessoas com experiência e autoridade na matéria a oportunidade de emitirem parecer ou serem ouvidos em audiência pública.18 É a instrução do feito constitucional ocorrendo.
O equivalente ao regimento interno no Tribunal Constitucional Federal da Alemanha traz, em seu tópico 2, regras procedimentais e, em seu capítulo 1, "regulações procedimentais gerais". O art. 26(1) do Regimento dispõe que "o Tribunal Constitucional Federal produzirá as provas necessárias ao estabelecimento da verdade. Pode, fora da sustentação oral (hearing), instruir um membro do Tribunal a fazê-lo ou solicitar a outro tribunal que o faça em relação a fatos e indivíduos específicos".19 A verdade importa.
Quais as evidências? Quais os fatos? O que disseram os peritos? O que demonstraram as testemunhas? O que revelaram os experts? Se nada disso é necessário e uma decisão judicial nascerá após um ciclo de discussões em forma socrática, então o que há, de fato, são filósofos detentores do poder de dizer a verdade. Voltamos à Grécia arcaica. Isso, além de não ser republicano, é absolutamente deletério para a preservação da autoridade da qual se reveste uma Suprema Corte, que, muito mais do que oferecer demonstração de poder em forma bruta, necessita alimentar modos genuínos de exercício de autoridade perante o corpo social que sustenta a democracia.20
O mesmo ocorre quando suas decisões, para serem acatadas, começam a reclamar, com alguma frequência, forte aparato policial, ou o uso da força, ou, ainda pior, reafirmações persistentes de poder. Uma Suprema Corte não foi construída para que os jurisdicionados a temam. Pelo contrário. As Cortes Supremas se impõem pela autoridade que a sua deliberação racional anima até mesmo nas pessoas que não concordam com os resultados de tais deliberações. Quanto mais força tiver de impor a Corte para que as pessoas respeitem as suas decisões, mais fraca estará a sua autoridade.
É preciso vindicar o incremento da qualidade do processo constitucional por meio do refinamento da instrução e a consequente aderência dessa instrução à decisão e à sua justificativa, reconhecendo-se a presença de fatos e provas e entendendo que a Suprema Corte tem um dever indeclinável com a verdade nas decisões que profere.
Façamos o contrário do que fez Pilatos. Na jurisdição constitucional abstrata, perseveremos pela verdade sem lhe dar as costas. O começo é o fim. O fim é o começo.
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1 Agradeço a leitura antecipada dos colegas Rodrigo Barbosa e Ana Gabriela Pereira Matos, colegas de escritório, com quem dividi impressões a respeito do texto.
2 Häberle, Peter. O problema da verdade no Estado Constitucional. Tradução de Urbano Cavelli. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008, p. 55.
3 Tradução de Urbano Cavelli de Wahrheitsprobleme im Verfassungsstaat. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008.
4 Häberle, Peter. O problema da verdade no Estado Constitucional. Tradução de Urbano Cavelli. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008, p. 31.
5 Häberle, Peter. O problema da verdade no Estado Constitucional. Tradução de Urbano Cavelli. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008, p. 63.
6 Häberle, Peter. O problema da verdade no Estado Constitucional. Tradução de Urbano Cavelli. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008, p. 121.
7 Häberle, Peter. O problema da verdade no Estado Constitucional. Tradução de Urbano Cavelli. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008, p. 48.
8 Häberle, Peter. O problema da verdade no Estado Constitucional. Tradução de Urbano Cavelli. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008, p. 122.
9 Häberle, Peter. O problema da verdade no Estado Constitucional. Tradução de Urbano Cavelli. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008, p. 33.
10 No original: "Artículo 180. I. La jurisdicción ordinaria se fundamenta en los principios procesales de gratuidad, publicidad, transparencia, oralidad, celeridad, probidad, honestidad, legalidad, eficacia, eficiencia, accesibilidad, inmediatez, verdad material, debido proceso e igualdad de las partes ante el juez." Disponível aqui.
11 "Article 121 (...) 2. Judicial proceedings shall ensure the establishment of truth". Disponível aqui.
12 Sobre o descobrimento da verdade, Martin Heidegger anota: "Para se ver que, de fato, na mesma sentença também se fala da verdade, basta apenas recordar, antes, a palavra grega para o que nós chamamos de verdade: a???e?a, a se traduzir adequadamente por descobrimento. Com isso, porém, não se ganha muito enquanto não nos transferirmos para toda a força significativa, e se nos tornar claro, então, que não se trata de esclarecer um significado qualquer de uma palavra qualquer. Sem dúvida, nós compreendemos provisoriamente o significado da palavra grega para verdade: desencoberto, não velado, não encoberto (...)." Heidegger, Martin. Ser e verdade: a questão fundamental da filosofia; da essência da verdade." Heidegger, Martin. Tradução Emmanuel Carneiro Leão. Revisão da tradução: Renato Kirchner. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007 (Coleção Pensamento Humano), p. 110.
13 Toda a construção está erguida nas obras: Levando os Direitos a Sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. (Coleção Direito e Justiça). Também em Uma questão de princípios. 2. ed. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001. (Coleção Direito e Justiça). Por fim, em O Império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (Coleção Direito e Justiça).
14 Bazarian, Jacob. O problema da verdade. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1985, p. 117.
15 Lei nº 9.868/99: "Art. 26. A decisão que declara a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo em ação direta ou em ação declaratória é irrecorrível, ressalvada a interposição de embargos declaratórios, não podendo, igualmente, ser objeto de ação rescisória." Lei nº 9.882/99: "Art. 12. A decisão que julgar procedente ou improcedente o pedido em argüição de descumprimento de preceito fundamental é irrecorrível, não podendo ser objeto de ação rescisória".
16 Vattimo, Gianni. Adeus à verdade. Tradução de João Batista Kreuch. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016, p. 33.
17 A Lei nº 9.868/99, tratando da ação declaratória de constitucionalidade, dispõe: "Art. 20. § 1º Em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou de notória insuficiência das informações existentes nos autos, poderá o relator requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão ou fixar data para, em audiência pública, ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria". A Lei nº 9.882/99, que regula a arguição de descumprimento de preceito fundamental, assevera, em seu art. 6º, § 1º, que, "se entender necessário, poderá o relator ouvir as partes nos processos que ensejaram a argüição, requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou ainda, fixar data para declarações, em audiência pública, de pessoas com experiência e autoridade na matéria".
18 Nesse ponto, recomenda-se a leitura do artigo "Instrução probatória e funções da audiência pública na jurisdição do STF, de Paula Pessoa Pereira e Luiz Henrique Krassuski Fortes.
19 Eis a redação: "The Federal Constitutional Court shall take the evidence necessary to establish the truth. It may, outside of the oral hearing, instruct a member of the Court to do so or may request another court to do so in respect of specific facts and individuals". Disponível aqui.
20 A esse respeito escreveu Hannah Arendt: "Mas, se a diferenciação institucional americana entre o poder e autoridade possui traços nitidamente romanos, por outro lado seu conceito de autoridade é completamente diverso. Em Roma, a função da autoridade era política e consistia em dar conselhos, ao passo que na república americana a função de autoridade é jurídica e consiste na interpretação. O Supremo Tribunal deriva sua autoridade da Constituição como documento escrito, enquanto o Senado romano, os patres ou pais da república romana detinham autoridade porque representavam, ou melhor, reencarnavam os ancestrais, cuja única base de pretensão à autoridade no corpo político era exatamente o fato de o terem fundado, de sempre os 'pais fundadores'". Arendt, Hannah. Sobre a revolução. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 258.