A jurisprudência da crise na educação
segunda-feira, 31 de maio de 2021
Atualizado às 07:42
Na formação de precedentes pela Suprema Corte, a História tem papel relevante. Assim o diz Thomas Vesting, que a associa à "estabilidade decisória", capaz de fornecer "reflexão sobre a produção do direito, no sentido de uma análise da estrutura da normatividade jurídica".1 Daí o seu arremate: "não há interpretação fora da história".2
A exegese quanto ao texto, reclama atenção ao contexto. Já a História, essa é feita de muitas histórias. Na década de 1940, Gustavo Capanema, o ministro que mais tempo ficou naquele cargo (1934 a 1945), tinha a porta da sua sala aberta pelas mãos do poeta Carlos Drummond de Andrade, chefe de gabinete. Como membros da equipe estavam nomes como Mário de Andrade, Cândido Portinari, Manuel Bandeira, Heitor Vila-Lobos, Cecília Meireles, Lúcio Costa, Vinicius de Morais, Afonso Arinos de Melo Franco e Rodrigo Melo Franco de Andrade. Era esse o Ministério da Educação.
Na Ditadura Militar, a pasta contou com figuras públicas como Pedro Aleixo. Após a Constituição de 1988, recebeu Marco Maciel, Paulo Renato Souza e Cristovam Buarque, dentre outras personalidades que legaram contribuições valiosas ao país.
Buarque, a propósito, foi escolhido, em 1984, para a reitoria da UnB pela comunidade universitária, mas teve seu nome vetado pelo presidente João Figueiredo, que optou por outro. O escolhido enfrentou tamanha resistência que terminou renunciando dias depois. Ano seguinte, eleito uma vez mais, Buarque foi designado reitor pelo presidente José Sarney.3 Depois, elegeu-se governador do Distrito Federal e senador da República, tendo sido ministro da Educação, chegando a se candidatar a Presidente da República, não tendo sido eleito, mas realizando uma campanha cuja bandeira era a educação.
O ato de o presidente da República nomear o mais votado pela comunidade acadêmica passou a ser uma convenção constitucional, na dicção de Lucas Melo4, para quem "as convenções constitucionais se originam dos entes que participam do exercício do poder político; são soluções dadas a situações fáticas, de forma reiterada, com pressupostos idênticos ou de grandes similitudes. São, na verdade, regras de conduta criadas sem a respectiva previsão formal para a sua criação, logo são fontes-fatos do direito, da mesma forma que os costumes encontram respaldo no princípio da eficiência".5
Mas o tempo passou e tudo mudou. Uma crise permanente passou a ser a história. Como diz Konrad Hesse, "a Constituição jurídica está condicionada pela realidade histórica. Ela não pode ser separada da realidade concreta de seu tempo".6 Nada mais real.
Em 26/05/2020, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, teve de determinar que a Polícia Federal tomasse o depoimento do então ministro da Educação, Abraham Weintraub, para que explicasse as declarações feitas numa reunião ministerial.7 O Ministro, no Palácio do Planalto, numa reunião liderada pelo Presidente, teria ameaçado os ministros do STF, com declarações consideradas gravíssimas, não atingindo apenas a honorabilidade dos integrantes da Corte, mas sendo uma ameaça ilegal à segurança dos ministros e ministras.
Mês seguinte, a Suprema Corte, pelo seu Pleno, rejeitou o Habeas Corpus nº 186.296, em que o ministro da Justiça e Segurança Pública pedia a suspensão da oitiva ou a retirada do referido ex-ministro da Educação da relação de depoentes do Inquérito nº 4781, que apura a divulgação de notícias falsas, ofensas e ameaças a ministros do STF.8
Em julho, foi a vez de o ministro Celso de Mello remeter à Justiça Federal do Distrito Federal o INQ nº 4827, instaurado contra o mesmo ex-ministro da Educação, dessa vez para apurar a suposta prática do crime de racismo contra o povo chinês em publicação no Twitter.9 O inquérito foi instaurado a pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR).
Mesmo com a mudança na liderança da pasta, a judicialização da crise na educação persistiu. Em outubro, passou a tramitar no STF, sob a relatoria do ministro Dias Toffoli, a Petição nº 9209 (apensada à PET nº 9186), por meio da qual a Polícia Federal ficou encarregada de colher o depoimento do novo ministro, Milton Ribeiro, a respeito da entrevista em que teria proferido manifestações depreciativas à comunidade LGBTQ+.
A diligência foi requerida pela Procuradoria-Geral da República, que vislumbrou, nas afirmações feitas em entrevista publicada no jornal O Estado de S. Paulo, em 24/09, infração penal prevista no art. 20 da Lei do Racismo (lei 7.716/89). "O adolescente que muitas vezes opta por andar no caminho do homossexualismo vêm, algumas vezes, de famílias desajustadas", afirmou o ministro da Educação.
Em 12/07/2019, o Conselho Federal da OAB ajuizou a ADI nº 6186, questionando dispositivos do decreto 9.725/2019, da Presidência da República, que extinguem cargos em comissão e funções de confiança nas instituições federais de educação, em violação dos princípios da autonomia universitária e da reserva legal. Essas instituições foram as mais prejudicadas, com a extinção de 119 cargos de direção e 1.870 funções comissionadas de coordenação de cursos e, em 31/7, de mais 11.261 funções gratificadas.
Em junho de 2020, foram ajuizadas as ADPFs nº 698, 699 e 700, de relatoria do ministro Gilmar Mendes10, nas quais partidos políticos questionaram a revogação, pelo ex-ministro da Educação, da Portaria Normativa nº 13/2016, que previa a adoção de políticas de inclusão de negros, pardos, indígenas e pessoas com deficiência nos programas de pós-graduação em universidades e institutos federais. A Portaria foi revogada.
No mesmo mês, o ministro Gilmar Mendes já havia tido de solicitar informações ao comandante do Colégio Militar de Brasília e ao advogado-geral da União em relação a notícias sobre o afastamento e à abertura de processo administrativo disciplinar contra um professor em razão de opiniões emitidas em sala de aula. A medida se deu na ADPF nº 689, em que o partido Rede Sustentabilidade apontou violações à liberdade de expressão e de cátedra.11
Em agosto, o STF, por maioria, declarou a inconstitucionalidade de leis sobre a Escola Livre e proibição de ensino de sexualidade, por entender ter havido violação à liberdade de ensinar e ao pluralismo de ideias. O precedente foi firmado nas ADIs nº 5537, 5580 e 6038 e nas ADPFs nº 461, 465 e 600, de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso.12
No mesmo mês, o STF referendou a cautelar concedida pela ministra Cármen Lúcia na ADPF nº 722, para suspender qualquer ato do Ministério da Justiça e Segurança Pública que tivesse por objetivo produzir ou compartilhar informações sobre a vida pessoal, as escolhas pessoais e políticas e as práticas cívicas de cidadãos. As ações alcançavam, dentre outras pessoas, professores universitários.13
Em dezembro, o STF referendou a liminar deferida pelo ministro Dias Toffoli na ADI nº 6590, suspendendo o Decreto nº 10.502/2020, do Presidente, que instituiu a Política Nacional de Educação Especial Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida. A norma estabelecia políticas fragilizadoras da inclusão de alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação na rede regular de ensino.14
O ano de 2020 acabou, 2021 chegou, mas a primavera não veio. O quadro de desinstitucionalização passou a se agravar, reclamando, no Supremo Tribunal Federal, intervenções cada vez mais constantes na área. A judicialização da crise na educação se intensificou.
Em março desse ano, partidos políticos questionaram o fato de a Controladoria-Geral da União (CGU) ter imposto a dois professores da Universidade Federal de Pelotas o compromisso de não proferir "manifestações de desapreço" ao Presidente da República, no local de trabalho, pelo período mínimo de dois anos. A ADPF nº 800 foi distribuída ao ministro Ricardo Lewandowski, assim como a ADI nº 674415, com objeto semelhante.
Ainda em março, o STF encerrou o julgamento da ADI nº 6543 e impediu que o Ministério da Educação nomeie diretor interino de centros técnicos federais. A Suprema Corte enxergou, na iniciativa, afronta à autonomia das entidades de ensino, da gestão democrática do ensino público, da isonomia, da impessoalidade e da proporcionalidade.16
A relatora, ministra Cármen Lúcia, registrou: "Supervisão ministerial não se confunde com subordinação, menos ainda tem esvaziada a estrutura constitucional desenhada no sistema vigente garantidor da democracia nestes espaços de ensino". Em seguida, arrematou: "retirar delas a autonomia que atende os preceitos constitucionais por ato unilateral, pessoal e voluntarioso de um Ministro de Estado e esvaziar o direito da comunidade acadêmica de participar da gestão democrática da entidade contraria o princípio da autonomia previsto legalmente e que se fundamenta no princípio do pluralismo e da participação da comunidade na busca de realização dos fins a que ela se destina" (p. 12/13).
O caso acima prova a reiteração do Poder Executivo nesse particular. O decreto 9.908/2019 permitiu "a designação de Diretor-Geral pro tempore de Centro Federal de Educação Tecnológica, de Escola Técnica Federal e de Escola Agrotécnica Federal, na hipótese de vacância do cargo". O STF o declarou inconstitucional, à luz da autonomia universitária e da gestão democrática. Depois, a Medida Provisória nº 979/2020 estabeleceu uma nova forma de designação de dirigentes pro tempore para as instituições federais de ensino durante a pandemia (Covid-19). O Congresso reputou a iniciativa inconstitucional, "devolvendo" a medida provisória, em nome da autonomia universitária (art. 207) e da gestão democrática (art. 206, VI).
Quanto às consequências das ações insistentes do Executivo, a poeira já se deixa ver. A BBC chama de "Fuga de cérebros"17, a diáspora de cientistas, intelectuais e acadêmicos que deixam o país em busca de melhores condições de trabalho, rejuvenescendo a máxima: "Brasil, ame-o ou deixe-o!". O país perde seus cérebros e, a nação, os seus maiores talentos.
O quadro revela intensa judicialização de uma crise que se abateu na educação superior no país, a partir do Ministério da Educação, alcançando as universidades.
A solução não pode ser outra que não seja ela, a Constituição. A esse respeito, inclusive, Konrad Hesse que desde há muito já alertava: "se também em tempos difíceis a Constituição lograr preservar a sua força normativa, então ela configura verdadeira força viva capaz de proteger a vida do Estado contra as desmedidas investidas do arbítrio. Não é, portanto, em tempos tranquilos e felizes que a Constituição normativa vê-se submetida à sua prova de força. Em verdade, esta prova dá-se nas situações de emergência, nos tempos de necessidade".18
O Supremo Tribunal Federal, guardião que é da Constituição, há de seguir zelando pelas garantias institucionais voltadas para a educação, notadamente a superior.
Isso porque, a vida cívica, a formação política, a elevação intelectual e a consolidação científica de uma nação começam nas universidades. Nos Estados Unidos, o desmantelamento da segregação racial imposta pelas leis Jim Crow19 teve as universidades como um dos seus celeiros. Na África do Sul, a retirada da estátua que cultuava um supremacista branco no campus da Universidade da Cidade do Cabo acendeu a fagulha que se espalhou levantando uma pergunta fundamental: para quem uma nação democrática, diversa e inclusiva deve render homenagens?20 Uma greve dos estudantes nas universidades de Pequim resultou na reação autoritária do governo que culminou com o Massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989. No Brasil, a política de cotas foi reputada constitucional pelo STF, por unanimidade, a partir de uma experiência da UnB.21 Em Israel, Albert Einstein e Sigmund Freud se deram as mãos para, depois do Holocausto (Shoah), ajudarem a construir, para todos, um novo amanhã. O primeiro passo foi a fundação, por eles, da Universidade Hebraica de Jerusalém.22
O Universo está nas universidades e o STF há de assegurar as bases constitucionais que conferem a essa essencial instituição todas as condições para cumprir os seus propósitos. Propósitos esses que, como demonstrado, não podem ser engolidos por essa profunda crise na educação que tem resultado na judicialização aqui explicitada.
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1 Apud, Abboud, Georges. Processo constitucional brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 274.
2 Apud, Abboud, Georges. Processo constitucional brasilei... São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 278.
3 Ribeiro, Darcy (Abril de 1995). "1961 - 1995: a invenção da Universidade de Brasília" (PDF). Senado Federal. Márcia Quarti, Maria Letícia Correia e Elizabeth Dezouzart (2018). "BUARQUE, Cristovam". Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. Fundação Getúlio Vargas.
4 Melo, Lucas Fonseca e. Normas constitucionais não escritas. A&C - Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 211-239, abr./jun. 2020. DOI: 10.21056/aec.v20i80.1263.
5 Melo, Lucas Fonseca e. Normas constitucionais não escritas. A&C - Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 211-239, abr./jun. 2020. DOI: 10.21056/aec.v20i80.1263.
6 Hesse, Konrad. Força Normativa da Constituição. Tradução: Gilmar Mendes. Sergio Antonio Fabris Editor. Porto Alegre: 1991, p. 24.
7 A decisão no INQ nº 4781 se baseou no laudo da Polícia Federal produzido no âmbito do INQ nº 4831, de relatoria do ministro Celso de Mello.
8 HC nº 186.296, Rel. Min. Edson Fachin (DJe 08/07/2020): "(...) Não cabe pedido de habeas corpus originário para o Tribunal Pleno contra ato de Ministro ou outro órgão fracionário da Corte. 2. Não conhecimento do habeas corpus. Decisão O Tribunal, por maioria, não conheceu do habeas corpus, nos termos do voto do Relator, vencido o Ministro Marco Aurélio. Impedido o Ministro Alexandre de Moraes".
9 Em sua decisão, o ministro Celso de Mello reconheceu a cessação da competência do STF para processar e julgar o caso, pois, com a exoneração do cargo, o ex-ministro perdeu o foro por prorrogativa de função.
10 A Portaria Normativa nº 13/2016 foi revogada pela Portaria Normativa nº 545/2020, do MEC.
11 Na ADPF, a Rede sustenta que, segundo noticiado pela imprensa, o comandante do Colégio Militar de Brasília determinou o afastamento de um professor de Geografia e a instauração de um PAD para apurar suas manifestações durante uma aula para o nono ano do ensino fundamental. O professor, que é major da Polícia Militar (PM), teria dito aos alunos que a PM agiu com "dois pesos e duas medidas" na manifestação ocorrida em São Paulo no dia 31/05 que a situação "remete a um fascismo, que a gente não quer mais isso no mundo".
12 O STF, por maioria, julgou procedente o pedido para declarar inconstitucional a integralidade da Lei nº 7.800/2016 do Estado de Alagoas, nos termos do voto do Relator, vencido o ministro Marco Aurélio.
13 A ADPF nº 722, ajuizada pela Rede, questionou investigação sigilosa aberta pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública contra quem era identificado, pelo Estado, como integrantes do "movimento antifascismo".
14 O STF, por maioria, referendou a liminar para suspender a eficácia do Decreto nº 10.502/2020, nos termos do voto do relator, vencidos os ministros Marco Aurélio e Nunes Marques. O ministro Roberto Barroso acompanhou o Relator com ressalvas.
15 Ajuizada pelo partido Cidadania.
16 O STF, por maioria, julgou procedente o pedido para declarar a inconstitucionalidade do parágrafo único e do caput do art. 7º-A do decreto 4.877/2003, acrescentado pelo Decreto nº 9.908/2019, nos termos do voto da Ministra Relatora, vencido o ministro Nunes Marques, que julgava parcialmente procedente o pedido. Eis os comandos centrais do decreto 9.908/2019: "Art. 1º O Decreto nº 4.877, de 13 de novembro de 2003, passa a vigorar com as seguintes alterações: 'Art. 7º-A O Ministro de Estado da Educação poderá nomear Diretor-Geral pro tempore de Centro Federal de Educação Tecnológica, de Escola Técnica Federal e de Escola Agrotécnica Federal quando, por qualquer motivo, o cargo de Diretor-Geral estiver vago e não houver condições de provimento regular imediato. Parágrafo único. O Diretor-Geral pro tempore será escolhido dentre os docentes que integram o Plano de Carreiras e Cargos de Magistério Federal com, no mínimo, cinco anos de exercício em instituição federal de ensino.'"
17 Disponível aqui.
18 Hesse, Konrad. Força Normativa da Constituição. Tradução: Gilmar Mendes. Sergio Antonio Fabris Editor. Porto Alegre: 1991, p. 24.
19 As leis Jim Crow foram leis locais que impunham a segregação racial no sul dos Estados Unidos. Há exemplos. Em 1963, o Alabama era o único estado cuja segregação racial, a despeito da decisão da Suprema Corte, era mantida. O governador George C. Wallace Jr proclamara que ficaria em frente da porta de qualquer escola do Alabama que tivesse de acabar com a segregação. "Eu digo: segregação agora, segregação amanhã, segregação para sempre", afirmava em seus discursos. Depois de resistir diante da Universidade, o Governador viu o General Henry Graham se aproximar e afirmar, sem alterar o tom de voz: "É meu grave dever pedir-lhe que se afaste do caminho para que sejam cumpridas as ordens do presidente dos Estados Unidos". O país era comandado por John Kennedy. O governador Wallace saiu da frente e os corajosos jovens James Hood e Vivian Malone se tornaram os dois primeiros negros a se matricularem na universidade do estado. Cf.: C. Vann Woodward. The Strange Career of Jim Crow: A Commemorative Edition. Oxford, 2001.
20 Disponível aqui.
21 ADPF nº 186, de relatoria do ministro Ricardo Lewandowski.
22 45 Disponível aqui.