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Amizades perdidas pela predisposição autoritária

segunda-feira, 22 de março de 2021

Atualizado às 08:56

Em 26 de fevereiro último, a premiada escritora, jornalista e historiadora Anne Applebaum, deu uma entrevista para Marcelo Marthe, nas Páginas Amarelas da Veja. Americana de 56 anos, tendo sido editora das revistas The Economist e The Spectator, ela foi apresentada como "estrela indisputada da intelectualidade conservadora".

A coluna de hoje aborda a sua mais recente obra, "O crepúsculo da democracia: como o autoritarismo seduz e as amizades são desfeitas em nome da política", traduzida por Alessandra Borrunquer e publicada pela Record.

O livro começa com Anne Applebaum narrando os bastidores de uma festa num sobrado da cidade polonesa de Chobielin, oferecida por ela e por seu marido, Radek Sikorski, então vice-ministro do Exterior de um governo de centro-direita na Polônia, na noite do dia 31 de dezembro de 1999, celebrando a chegada do novo milênio.

O grupo de convidados poderia ser colocado "na categoria que os poloneses chamam de direita: conservadores, anticomunistas". Eram "liberais de livre mercado, liberais clássicos, talvez thatcheristas". Todos acreditavam "na democracia, no estado de direito, em freios e contrapesos em uma Polônia que era membro da Otan e estava a caminho de se filiar à União Europeia (EU), uma Polônia integrada à Europa moderna".

Vinte anos se passam. Em agosto de 2019, o casal deu uma nova festa. Os convidados eram outros. Muitos daqueles amigos de 1999 não eram mais bem-vindos. Eles haviam se radicalizado em pelejas ideológicas infinitas, todas elas profundamente desestabilizadoras das crenças anteriores por um mundo mais democrático.

A obra então se desenvolve na História e na Teria Política, com recortes geopolíticos certeiros e atuais. A coluna se concentrará nas conclusões da autora quanto aos riscos que a independência judicial corre no mundo.

O passeio global tem início na experiência polonesa. Ao rememorar a vitória apertada do partido Lei e Justiça em 2015, na Polônia, a obra recorda que o "novo governo violou a Constituição ao inadequadamente indicar novos juízes para o Tribunal Constitucional. Mais tarde, usou uma estratégia igualmente inconstitucional em uma tentativa de dominar a Suprema Corte e criar uma lei para punir juízes cujos vereditos contrariassem as políticas governamentais".

Uma vez no poder, o radicalismo ficou óbvio. "O objetivo das mudanças não era fazer com que o governo funcionasse melhor. Era torná-lo mais partidário, com os tribunais mais influenciáveis e obedientes ao partido", anota a jornalista.

Tendo sido eleito com uma margem de votos que lhe permitia governar, mas não modificar a Constituição, o Lei e Justiça, a fim de justificar a desobediência às leis, "deixou de usar argumentos políticos comuns e começou a identificar inimigos existenciais". Daí o alerta da autora: os autoritários precisam "de pessoas que saibam usar uma sofisticada linguagem legal, capaz de afirmar que agir contra a Constituição ou distorcer as leis é a coisa certa a fazer".

Para que um projeto autoritário de poder possa ser implementado numa nação, com adesão popular a ele, é preciso que pessoas que ficaram para trás, no modelo competitivo e aberto que a democracia plural erige, enxerguem, pelo oportunismo de suas ambições irrealizadas, uma possibilidade de ascensão num mundo indiferente à falta de talento ou preparo. Essas pessoas, ressentidas, buscam causas para darem sentido a megalomanias pessoais ou projetos abortados. Surgindo o líder autoritário disposto a convocá-las, são esses os soldados certos para as missões mais deletérias à própria democracia. Eles sempre existiram. A diferença é que, agora, estão no poder.

A escritora alerta que o mais proeminente ex-comunista na política polonesa hoje é Stanislaw Piotrowicz, indicado do Lei e Justiça para o Tribunal Constitucional. "É, sem surpresa, grande inimigo da independência judiciária". Ou seja, para que o Poder Judiciário seja capturado, é preciso escolher as pessoas certas para a missão e, ao contrário de escondê-las, projetá-las, dando-lhes poder. Foi o caso de Piotrowicz.

Desmoralizar o conjunto de institutos e instituições que dão sustentação ao estado de direito é um projeto que reclama método. Por isso, as Supremas Cortes, a Constituição e o Poder Judiciário costumam ser visados. Eles representam um escudo contra os excessos desse tipo de projeto iliberal, logo, precisam ruir ou, pelo menos, ser tão cotidianamente desmoralizados até que não haja mais qualquer adesão à sua autoridade.

Anne Applebaum lembra do jornalista inglês Christopher Caldwell, que produziu um artigo no Claremont Review elogiando o ataque de Viktor Órban, primeiro-ministro da Hungria, "às estruturas sociais neutras e ao campo de jogo nivelado" -, expressão considerada, por ela, "um eufemismo para tribunais independentes e estado de direito".

Além da Polônia, a obra discorre sobre o fenômeno Brexit: "vencer exigia passos sem precedentes. A Constituição tinha de ser levada ao limite", registra a jornalista.

Em setembro de 2019, o primeiro-ministro Boris Johnson suspendeu o Parlamento inglês, "de modo inconstitucional", diz. Anne lembra que o manifesto do Partido Tory, escrito antes da campanha eleitoral de dezembro de 2019, continha pistas da vingança contra os freios e contrapesos da Constituição. Eis trecho: "Após o Brexit, precisaremos analisar também os aspectos mais amplos de nossa Constituição: o relacionamento entre governo, Parlamento e tribunais; o funcionamento da prerrogativa real; o papel da Câmara dos Lordes e o acesso à justiça para as pessoas comuns".

Sobre a Espanha, aborda uma "controversa decisão judicial sobre um caso de estupro que levou centenas de milhares de mulheres às ruas em grandes e ruidosas manifestações, perturbando muitos católicos tradicionais". Em 2017, o governo regional catalão, fortemente controlado por separatistas, "decidiu realizar um referendo sobre a independência. O Tribunal Constitucional espanhol declarou o referendo ilegal".

Controvérsias variadas, às vezes dirigidas aos tribunais, serviram de insumo para que o discurso político raivoso seduzisse populares contra as intervenções do Poder Judiciário. Nasceu o Vox, partido espanhol que, após patinar em eleições passadas, se coloca hoje como uma agremiação com representatividade parlamentar, disposto a perseverar com pautas incompatíveis com a base de uma democracia liberal.   

Os Estados Unidos não poderiam ficar de fora do livro. No capítulo V, "Prairie fire", Anne Applebaum lembra que o republicano Ronald Reagan pediu que os americanos se unissem em torno não do sangue ou do solo, "mas da Constituição": "Enquanto lembrarmos de nossos primeiros princípios e acreditarmos em nós mesmos, o futuro sempre será nosso", exortou o então presidente.

Ela anota que radicais do Weather Underground (Submundo do Tempo), em 1970, atiraram "coquetéis molotov na casa de um juiz nova-iorquino da Suprema Corte". Para a autora, "(...) a monotonia contrastante da burocracia e dos tribunais; tudo isso tem enervado a parte da população que prefere unidade e homogeneidade".

Anne Applebaum destaca que quando dizemos coisas como "a Rússia é corrupta, mas todo mundo é", o que se faz é uma defesa da equivalência moral, "um argumento que mina a fé, a esperança e a crença de que podemos estar à altura da linguagem da Constituição". Nasce uma carta em branco para que se viole as leis.

A obra segue com erudição - numa linguagem simples - e cosmopolitismo. Num dado momento, aparece Laura Ingraham, que fora assistente de Clarence Thomas, juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, e era advogada de uma firma moderna.

"Seu otimismo reaganista desapareceu e, lentamente, transformou-se no pessimismo apocalíptico partilhado por tantos outros", anota Anne, transcrevendo uma das tantas falas da advogada: "Os Estados Unidos estão condenados, a Europa está condenada, a civilização ocidental está condenada. A imigração, o politicamente correto, o transgenerismo, a cultura, o establishment, a esquerda e os democratas são responsáveis".

A escritora questiona: "O político iliberal quer enfraquecer os tribunais a fim de obter mais poder para si mesmo, mas como persuade os eleitores a aceitarem essas mudanças?". Há muitas formas. O medo é uma delas. O ressentimento, outra.  

Voltando-se para a realidade francesa, diz que o nacionalismo "A França para os franceses", de Marine Le Pen, se opõe à visão mais ampla de Emmanuel Macron sobre uma nação "republicana que ainda defende um conjunto de valores abstratos, entre eles a justiça imparcial e o estado de direito". Esses são os princípios regedores de qualquer democracia liberal no mundo, pouco importa qual a sua inclinação política.

Apesar do cenário, ela não joga a toalha: "a Europa, os Estados Unidos e o mundo estão cheios de pessoas - urbanas e rurais, provincianas e cosmopolitas - com ideias criativas e interessantes sobre como viver em um mundo muito mais justo e mais aberto".

Anne reconhece que "os freios e contrapesos das democracias constitucionais ocidentais jamais garantiram estabilidade", mas enfatiza que "eles sempre exigiram certa tolerância pela cacofonia e pelo caos, assim como certa disposição em reagir às pessoas que criam cacofonia e caos". A democracia reclama reação para que possa se manter viva.  

A obra, todavia, é contundente em suas conclusões: "é possível que já estejamos vivendo o crepúsculo da democracia; que nossa civilização já esteja caminhando para a anarquia ou a tirania, como temiam os antigos filósofos e os fundadores americanos; que uma nova geração de clercs, os defensores de ideais iliberais ou autoritárias, cheguem ao poder no século XXI, assim como fizeram no século XX; e que suas visões de mundo, nascidas do ressentimento, da raiva ou de sonhos messiânicos, possam triunfar".

Nesse particular, ela alerta sobre os efeitos desse tempo em relação ao Poder Judiciário: "não foi por acidente que juízes e tribunais se tornaram objeto de crítica, escrutínio e raiva em muitos outros lugares. Não pode haver neutralidade em um mundo polarizado, porque não pode haver instituições apartidárias ou apolíticas".

A afirmação acima se aplica às relações humanas. Num mundo dividido entre facções raivosas, os moderados precisam ser machucados. São reputados sem opinião, sem posição, sem expressão. Pela sua lucidez e ausência de ódios empedernidos, nada têm a contribuir. Precisam ser subestimados, silenciados e, então, excluídos. Só os autoritários, se alimentando reciprocamente, devem ter voz nesse grande teatro barulhento. Mesmo porque, não é mais uma arena pública. É uma guerra.   

O livro de Anne Applebaum faz uma profecia já realizada. Acurado intelectualmente e repleto de perspectivas sensatas, mostra que tudo pelo o que estamos passando já chegou em nossos telefones, em nossas redes sociais, em nosso ambiente de trabalho, em nossos lares e em nossas famílias. Não dá mais para ignorar. Há uma predisposição autoritária por parte de pessoas muito próximas, pessoas essas que, num outro momento, chegaram a celebrar as conquistas da democracia e de um pensamento ligado à liberdade, aos direitos e às instituições dedicadas à elevação da condição humana.

Para que essa tempestade assombrosa varra do mapa a acepção de democracia liberal que conhecemos, a Constituição e o Poder Judiciário precisam ser feridos. Não se trata de corrigir excessos dos seus integrantes por meio dos órgãos criados para isso, tampouco de aperfeiçoar funcionamentos. O líder autoritário precisa tentar, repetidas vezes, envolver pessoalmente integrantes do Judiciário ou, pelo menos, exibi-los como aliados. Enquanto faz isso, usa o seu poder para, cotidianamente, questionar a autoridade judicial e desmoralizar a instituição. A mão que acena é a mesma que sabota.

Com o registro pessoal das duas celebrações que ofereceu em momentos distintos da história política mundial - a primeira, em 1999, e a segunda, em 2019 - Anne Appleblaum mostra que há colegas, amigos e familiares que simplesmente escolheram um lado que não é o da democracia e que abraçarão todo tipo de pensamento simplista para justificar essa guinada existencial. Eles estão cada vez mais predispostos a uma postura autoritária e os arranjos normativos da democracia lhes deram um título de eleitor.

Por outro lado, há também muita gente que, ilhada e sozinha, embarcou nesse barco, mas, olhando agora, não tem mais fôlego para negar os buracos no casco. Eram amigos e amigas enfastiados pelas disputas passadas que, exauridos, abraçariam qualquer convite que os tirasse dali. Essas pessoas hoje sentem-se perdidas. Devem voltar para o nosso convívio, ver resgatados os fios de amizade esgarçados e retomar a lucidez de antes para que, juntos, ajudem a encontrar soluções para o atoleiro no qual estamos.

Se assim o for - e tudo leva a crer que é -, está na hora de convidarmos novas pessoas para as nossas casas, para as nossas festas e para as nossas vidas. Pessoas comprometidas com a democracia e com tudo o que de edificante e plural que ela abraça. A independência judicial e o estado de direito constituem pilares dessa crença.

Essa é pelo menos uma das muitas lições de "O crepúsculo da democracia: como o autoritarismo seduz e as amizades são desfeitas em nome da política". Vale ler.