Rede de Ódio
segunda-feira, 3 de agosto de 2020
Atualizado em 4 de agosto de 2020 07:21
Estreou semana passada, na Netflix, "Rede de Ódio", obra polonesa desse ano dirigida por Jan Komasa e escrita por Mateusz Pacewicz. Não é um filme. É uma profecia.
Ele começa com a cena de uma bela sala repleta de alunos atentos a seus laptops, em suas mesas, dedicados aos estudos na faculdade de Direito de Varsóvia.
Tomasz Giemza, contudo, está sozinho, disperso e aflito. O jovem estudante tem que dar explicações à professora de Direitos Humanos, Hoff-Studnicka, e a outro professor do departamento. A acusação é grave: plágio.
Confrontado, ele tenta convencê-los da sua própria interpretação sobre o incidente. É um jovem manipulador, mas, ali, seus truques retóricos não têm poder algum. "Plágio não é interpretação", diz a professora. "Você violou a lei na faculdade de Direito", encerra o professor. Tomasz é expulso. Assunto encerrado.
Em seguida, aparece a jovem Gabriela Krasucka, a "Gabi", seu eterno amor, filha de Robert e Zofia, que têm Tomasz como um sobrinho pela ligação com seus pais, que eram moradores de uma vila distante onde a família Krasucka costumava passar as férias. A família paga a faculdade e não faz a menor ideia da sua recente e vexatória expulsão.
Gabi estava atrasada para o jantar. Ficou presa por conta de uma manifestação. No trajeto, escuta gritos: "Mortes aos inimigos da Pátria!". Em seguida, lê uma faixa: "Europa branca ou nenhuma Europa!".
Quando chega, todos já estão à mesa. Zofia, Robert e Tomasz. "É difícil imaginar que no século XXI os fascistas viriam para as ruas", desabafa Robert, dando início à noite.
O apartamento elegante, com música de bom gosto aclimatando a ambiência da sala decorada, tem uma mesa bem-posta. Taças de vinho branco harmonizam o camarão preparado por Zofia.
Tomasz tem dificuldade de cortá-lo. Mastiga e engole a cauda, que deveria ser deixada de lado. Com um gole d'água, faz um bochecho. Gabi olha, constrangida. Há sete anos Tomasz espera dela uma resposta ao seu convite para serem amigos na rede social.
Quando ele parte, os três zombam da sua falta de habilidade à mesa. A lembrança que ele havia dado para a família - um pote de geleia de morango -, é doada para a empregada Oksana: "Ela é gulosa, gosta de coisas doces", diz Robert. Os três gargalham. Perguntada por Zofia se conhece o dormitório da universidade onde Tomasz reside, Gabi responde: "Por quê? Eu sei como é. Homens suados, sopa instantânea e uma longa fila na porta do banheiro". A gargalhada se repete.
Depois, noutra cena, o manipulador Tomasz está saindo de uma boate e encontra Beata Santorska. Ele sabe quem ela é. Insatisfeito com seu emprego de moderador de rede social, com salário atrasado, Tomasz vê no encontro uma grande oportunidade. Ele estava disposto a tudo. Havia tocado o fundo do seu poço particular.
Beata foi demitida da agência de publicidade onde trabalhava. Perdeu o primeiro filho. Criava, sozinha, uma criança. Expulsa do seu nicho de mercado, restou-lhe o comando da Best Buzz, uma agência de assassinato de reputações. Destruiria pessoas, violaria a lei e infringiria a ética. Não titubeou em aceitar.
"Eu lhe mostro o que um millennial é capaz de fazer", diz Tomaz.
O primeiro job dizia respeito à FitAneta, celebridade fitness das redes sociais que ganhava dinheiro com produtos detox. A Best Buzz havia sido contratada para organizar uma campanha de perda de popularidade para reduzir o perfil público da jovem.
Tomasz propõe a estratégia: espalhar que o suco dela é prejudicial. A cúrcuma (açafrão-da-terra) excederia o limite de betacaroteno (pigmentos amarelo-alaranjados de frutas e vegetais), o que faria com que as pessoas ficassem com partes do corpo amareladas. Não tendo percorrido os níveis mais elevados de educação formal, Tomasz descobriu tudo na internet. Assim montou seu plano. Era o que lhe bastava.
Na reunião na Best Buzz, ele mostra a mão maquiada. "Vamos criar a hashtag '#FiqueiAmarelo', plantar informações e fazer uma bola de neve disso". Beata topa.
A garota fitness é rapidamente destruída. Quando vê um vídeo dela desesperada, Beata vibra e agradece a Tomasz. Eles tinham liga. Fariam, a partir dali, o mal, juntos.
Gabi reaparece. Era o aniversário de Natália, sua irmã. O buffet da recepção orgulhosamente anuncia que a comida é "vegetariana e sem glúten".
Na recepção, ela diz que o jovem Staszek Rydel, que trabalha na fundação de sua mãe, havia estagiado no MoMa, Museu de Arte Moderna, em Nova Iorque. Pergunta a Tomasz se ele conhece o MoMa. "A Mãe? Claro!". Não fazia ideia. Gabi percebe.
Rapazes tocam piano e violoncelo. Zofia avisa que Robert fará um discurso. Todos se aproximam. "Tribalismo, nacionalismo, autoritarismo....", discursa Robert, segurando a taça de champanhe. Ele enaltece a filha aniversariante, Natália, seu orgulho. Frisando que ela era uma estudante de Oxford, confere à moça a grave missão de lutar por um futuro melhor. "Uma filha assim é uma benção para seus pais", finaliza. Aplausos.
Já Gabi, a irmã, é apresentada como "uma menina muito talentosa e sensível". "Um dia ainda vai nos surpreender", fecha Robert. Sem mais. Nada mais.
Gabi havia passado o ano anterior afundada em depressão e terapias, lutando contra a dependência química. Na noite na qual Tomasz conheceu Beata, ela havia capotado num sofá, drogada. Tomasz a resgatou e a levou para casa a salvo.
No aniversário, Gabi chama Tomasz para um quarto, uma espécie de depósito. Lá, mostra-lhe droga e o convida a usar. Robert, o pai, vê. Nada diz. Depois, para Gabi e Zofia, responsabiliza Tomasz, chama-o de mentiroso compulsivo. "Isso é de família!", bufa. Tomasz ouvia tudo, chorando escondido. Gabi não revela a verdade. Deixa Tomasz levar a culpa. Depois disso, se afasta dele completamente.
Na Best Buzz, Beata mostra o site do candidato a prefeito de Varsóvia, Paweł Rudnicki, o bem-intencionado gay liberal contrário aos populistas nacionalistas. Esse será o segundo job. Rudinicki precisa ser destruído e o caminho é conhecido: as redes sociais.
Beata ordena a compra de 80 perfis falsos de jovens entre 20 e 25 anos. Tomasz inicia a campanha de desinformação, associando o candidato à "islamização da Europa" e à "vinda em massa de refugiados". Ele cria a página "Parem a Islamização!". Um fluxo inimaginável de vídeos, fotos e posts ganha impulsionamentos. A campanha não apanha apenas radicais estúpidos. Pessoas esclarecidas também se permitem alienar. Tudo é monitorado, estudado, capitalizado e serve de base para as novas estratégias da agência.
O candidato lamenta os ataques anônimos, mas diz que "tentativas de censura na internet prejudicam o debate e violam a liberdade de expressão". Melhor para Tomasz.
Certo dia, ele pede comida por delivery. Quando vai à porta do apartamento, vê que o entregador estrangeiro está com um grande hematoma no rosto. Tinha sido agredido. Havia um marginal de um lado do computador manipulando anonimamente as pessoas, e, nas ruas, bandidos dispostos a, pela violência, dar asas ao seu próprio radicalismo. Tomasz vê que sua campanha estava dando certo.
Num dado momento, Beata lhe entrega o audiolivro "A Arte da Guerra". Nele, diz-se que para vencer uma guerra é preciso ter um espião, um agente duplo que seja manipulado segundo a vontade do líder.
Tomasz precisa encontrar o seu. Ele começa a procurar num clube de tiro. Não encontra. Junto com os homens com quem lá estivera, vai ao bar. Vê o candidato Rudnicki na televisão. Pergunta a um dos colegas o que acha. "Eu lhe daria um tiro na cara", responde. Tomasz completa: "Viado idiota! Puta esquerdista!". Todos riem.
Aparece Stefan Guzek Guzkowski, o "Guzek". "Um idiota, um anormal", alerta um dos jovens.
Guzek queria viralizar os vídeos que fazia. No passado, havia escondido explosivos num porão, tendo sido apanhado pela polícia, mas sem consequências. Agora, passava o dia inteiro, todos os dias, no computador, jogando MMO (no qual jogadores, de seus computadores, interagem entre si).
Ele lidava com a sua baixa autoestima e com uma vida sem sentido exibindo-se nas redes sociais atirando com armamento pesado. Num dos vídeos, elogia uma AK-47 e pede um like ao final.
"É o colapso da nossa civilização", diz, diante de uma manifestação pacífica em Varsóvia. Em seguida: "Querem enterrar o velho continente cristão". Ao final, pede: "Precisamos de grandes homens, de grandes feitos".
Guzek não fazia nada de grandioso na vida. Mesmo assim, em seu quarto escuro no pequeno apartamento onde vivia com a avó, entendia que ele seria o grande homem que salvaria o continente europeu e a civilização.
"Na Europa, abundam hordas islâmicas que ameaçam os valores fundamentais sobre os quais o nosso mundo foi construído", afirmou. Numa cena, tenta medicar a avó doente. Ela o despreza. Depois, estapeia o rosto de Guzek com grande violência. Ele volta para o quarto. Coloca as mãos sobre a cabeça, desesperado.
Era tudo o que Tomasz precisava. Ele, valendo-se do anonimato, cria um personagem sedutor no jogo e passa a conversar com Guzek. Elogia seus feitos, credencia-o como homem eleito para salvar a Europa e passa a lhe dar pequenas missões desestabilizadoras da candidatura de Rudnicki.
Na exposição Neuropea, realizada na fundação de Zofia, Guzek tenta formular uma pergunta ao candidato Rudnicki. Robert - enfiado num elegante cachecol -, intervém. Guzek, sem ter talento sequer para articular ideias, argumentos e perguntas, é retirado do ambiente. "Porco comunista! Fora o comunismo!", grita. Tudo é gravado e espalhado na internet. Beata vibra uma vez mais. E ganha dinheiro com isso.
O cliente, um candidato opositor, faz uma nova encomenda: um escândalo social. A missão cabe a Tomasz. Ele droga Rudnicki, o atrai para um bar gay, beija-o e, ao vê-lo dançando com outros homens, parte. Guzek filma e espalha nas redes sociais. "Pervertido", escreve. O vídeo viraliza e desestabiliza novamente a campanha.
Tomasz cria, pelas redes sociais, eventos antagônicos para o mesmo dia, hora e local. Um contra e o outro a favor do candidato. Atrai centenas de pessoas para ambos. Ninguém fazia a menor ideia de onde aquela iniciativa havia partido. Mas, no dia e hora marcados, estavam lá, manipulados pelas fabricações virtuais da Best Buzz.
Chega a hora de Tomasz dar a última missão para Guzek. Tudo é arquitetado por meio dos jogos de computador. Guzek não sabia quem era Tomasz. Mesmo assim, recebe a missão do personagem do jogo. A ele caberia salvar a civilização e impedir a Europa de tombar diante das "forças do mal". Para isso, a solução: armas de fogo.
Num momento de hesitação, porém, escuta de Tomasz, que queria convencê-lo a não desistir: "Para eles - as elites -, você será sempre um Zé Ninguém! Um Zé Ninguém!". Posteriormente, Guzek retruca: "O que vocês sabem sobre como é viver nesse buraco? Voltar para casa e não ter nada, exceto quatro paredes?". Chorava.
Tomasz tinha uma vida familiar colapsada, havia perdido a mãe, sido expulso da faculdade, foi um moderador medíocre de rede social e teve de suportar o desprezo de Gabriela, o amor da sua vida. Beata, demitida da agência de publicidade da qual fazia parte, perdera um filho e tentava criar, sozinha, outro. Passara a ganhar dinheiro destruindo pessoas. O limitado Guzek era maltratado pela avó, desprezado por todos e vivia uma vida vazia, tentando, sem êxito, ser notado na internet.
Do outro lado, a família Krasucka, cujas virtudes intelectuais eram eclipsadas por uma certa empáfia, defendia valores elevados enquanto negava a verdade de que tinha em casa uma filha dependente química que precisava de ajuda, dividia as irmãs dando mais afeto a uma em detrimento da outra, e agia com preconceito contra Tomasz, mesmo ajudando-o materialmente.
Essa era a matéria-prima da rede de ódio.
Por anos, radicais nacionalistas armados ou jovens simplesmente perturbados diziam que seus países sucumbiriam à matança vinda de fora, de inimigos externos. Pediam que as pessoas se armassem para combater o mal estrangeiro. Mas, na verdade, eles próprios é quem matariam seus concidadãos. Eram eles os assassinos.
Foi assim na Noruega, em 2011, quando o militante nacional da extrema-direita Anders Behring Breivik matou 77 pessoas (69 jovens integrantes do Partido Trabalhista Norueguês em Utøya e 8 pedestres em Oslo).1
No Brasil, também em 2011, na Escola Tasso da Silveira, no Município do Rio de Janeiro, o brasileiro Wellington Menezes de Oliveira matou doze alunos, com idade entre 13 e 16 anos. Foi o Massacre do Realengo.2
O mesmo em 2019, em Christchurch, Nova Zelândia, quando Brenton Tarrant, militante de extrema-direita, assassinou pelo 51 pessoas que frequentavam a mesquita Al Noor e o Centro Islâmico Linwood.3
No filme, Guzek é mais um desses. Ele vai à convenção eleitoral de Rudnicki e, munido de uma submetralhadora roubada por Tomasz do clube de tiro, promove uma matança em seu país, contra os seus próprios concidadãos.
Esse é, no filme, o resultado de uma jornada que se iniciou com um jovem de má índole, frustrado, sozinho num dormitório, diante do computador. Ele enxergava naquela tela o portal aberto para que, alheio a qualquer responsabilidade ética ou jurídica, fizesse o que quisesse para conquistar a atenção que jamais obteve seguindo as regras do jogo. Aliado a uma empresária inescrupulosa, Tomasz criou o seu próprio gabinete do ódio, para amealhar prestígio, poder e dinheiro. Ele queria ir à forra. E foi.
O filme convida à reflexão. A Constituição brasileira pressupõe a ideia de consciência, cuja liberdade está assegurada no art. 5º, VI. Garante ainda a convicção filosófica ou política (inciso VIII do art. 5º).
Mas como construir a sua consciência, a sua convicção, a partir da mentira ou do delírio? Como erguer um conjunto ordenado de ideias de base racional a partir das quais você tomará uma decisão, se, a matéria-prima dessas ideias, é pura alienação repassada por meio das múltiplas fontes de informação das quais você se abastece diariamente?
O filme também coloca em xeque o trabalho de agências como a Best Buzz. Fala de assassinato de reputações nas redes sociais. É daí que vêm alguns dos cancelamentos?4 É de onde partem as campanhas para dislikes? Os comentários odiosos? As hastags alavancadas? Essa é uma atividade lícita? O que tem de intelectual nesse tipo de trabalho? De artístico? De científico? De comunicação? Uma Best Buzz poderia fazer o que fez no filme, independentemente de censura ou licença, em nosso país?
O mesmo se diga do processo eleitoral. Segundo o art. 14, § 10, da Constituição, nenhum mandato eletivo pode ser obtido com base em fraude. Mas a mentira nas redes sociais é a grande fraude do nosso tempo. No filme, fica claro que a legitimidade do processo eleitoral ao qual o candidato Paweł Rudnicki se submeteu era uma quimera. O eleitor de Varsóvia votaria segundo a sua consciência e a sua convicção. Mas a consciência e convicção seriam formadas a partir do que chegaria até eles vindo de Tomasz, que não mostrava a cara, não jogava limpo e tinha lado na disputa. O seu jogo era sujo e dessa sujeira emergiria o resultado da eleição para prefeito da cidade.
Rede de Ódio é mais do que um filme. É um aviso, uma antevisão, uma profecia. Mostra a tendência de que muitos fatos da vida contemporânea deixem de ter qualquer espontaneidade. Eles perderam a sua própria verdade. É como se nada mais fosse real.
Seja a ascensão e queda de celebridades das redes, seja a glória e o fracasso de candidatos na internet, sejam os eventos agendados online, seja a competição entre empresas concorrentes no ambiente virtual, seja o valor de companhias no mercado..., tudo pode ser muito facilmente manipulado por interesses não revelados, diretamente influenciados por aspirações desconhecidas, em prejuízo dos cidadãos ou dos consumidores, da democracia ou da livre concorrência, com consequências verdadeiramente perigosas. Há dinheiro envolvido. Também há busca por prestígio e poder. Somos todos apenas marionetes nesse grande teatro? É isso o que nos restou?
O filme mostra jovens excitados, em desprezo à ética e ao Direito, brincando com nossas vidas e com conquistas granjeadas ao longo dos séculos, a partir da internet, como se vivessem um game, mas, nele, os personagens somos nós.
Gente inescrupulosa, cansada do fracasso e percebendo a disposição dos voluntários, arregimentam seus exércitos, organizam os procedimentos, precificam os feitos e criam um novo mercado: a rede de ódio.
Estamos em perigo. Contudo, pelo menos no filme, não nos damos conta disso. O game precisa continuar e quem quer que se oponha a isso será destruído na velocidade de um clique. Que fim lamentável é esse reservado a todos nós. Que seja apenas no filme. Oxalá.
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1 A obra definitiva a respeito é "One of Us: The Story of a Massacre in Norway - and Its Aftermath", da extraordinária jornalista norueguesa Åsne Seierstad. Há tradução para a língua portuguesa da Editora Record. Baseado na obra, há o filme "22 de julho", na Netflix, do diretor inglês Paul Greengrass.
2 A imprensa brasileira tem vasto material a respeito. Apenas para ilustrar: clique aqui . Caso haja interesse em ler a carta deixada pelo assassino: clique aqui.
3 O assassino australiano se declarou culpado. Disponível em: clique aqui.
4 A BBC Brasil, numa longa matéria de Mariana Sanches, explica a cultura do cancelamento. Disponível em: clique aqui. John McDermott, do The New York Times, também escreveu a respeito: clique aqui.