Roberto Campos contra a Constituição
terça-feira, 4 de junho de 2019
Atualizado às 09:06
Na oligarquia dos mentecaptos, a ausência sentida dos eruditos é a centelha que risca a mudança ou a revolução. É que o saber cativa, a leitura empodera, a fina ironia envolve, as artes elevam..., e esses elementos de um intelecto apurado parecem ter simplesmente se ido no rebotalho do poder atual no Brasil.
No ecossistema daqueles de pouca leitura e muitas certezas, é demasiado esperançoso cogitar haver "um deserto de ideias". Não há desertos. Tampouco ideias. Todos estão perdidos no vazio abundante de sua própria ignorância. Por isso, tem sido pelo brilho de estrelas já partidas que insistimos resistindo, sozinhos, nessa noite escura de um inverno sombrio que parece ter engolido boa parcela da esfera pública nacional.
Uma dessas estrelas é Roberto Campos. Ele já partiu, mas seu brilho intelectual segue sendo apreciado nesse grande cortiço de ideias povoado por nós, pobres mortais.
Disciplinado pelo seminário católico, refinado pela diplomacia, escaldado como ministro de Estado e encouraçado por um mandato de senador da República (Mato Grosso) e outros dois de deputado Federal (Rio de Janeiro), o cuiabano Roberto de Oliveira Campos brilha agora na obra "A Constituição contra o Brasil: ensaios de Roberto Campos sobre a constituinte e a Constituição de 1988", organizado por Paulo Roberto de Almeida e publicado pela LVM Editora. A obra "reúne artigos elaborados durante aproximadamente uma década - a partir de meados dos anos 1980".
Roberto Campos não veste a carapuça do erudito que não sabe se fazer compreender. Ao expressar suas opiniões sobre a Assembleia Nacional Constituinte, ele o faz com didatismo superior. "Um misto de panaceia e paixão". "Catálogo de utopias". "Uma nova panaceia jurisdicista". "Carnaval cívico". "Desastre ecológico". Consegue até encontrar essa altaneira reflexão: "Se Gorbachev expusesse a 'perestroika' aos nossos constituintes, eles o chamariam de 'testa de ferro das multinacionais'". Fez-se claro?
Lembrando que Miguel Reale teria reputado o produto da Comissão de Sistematização da Assembleia Nacional Constituinte uma "patifaria", Roberto Campos disse que uma patifaria "exigiria uma coerência volitiva superior". Segundo ele, "trata-se apenas de um besteirol incrementado. Ou seja, um superbesteirol". E arrebenta: "É uma mistura de tudo: mesquinharia, xenofobia, irracionalidade econômica, corporativismo, pseudonacionalismo e vários outros 'ismos' infectos".
Roberto Campos sobre os notáveis: "ninguém acusará a obra dos notáveis de notável bom senso...". Pessimista - ou realista -, vaticina: "É óbvio que a Constituinte começou mal". Então, categoriza o material humano da Assembleia: "sumidades, mediocridades e nulidades". Expressa, ainda, o conhecimento que a população tinha do processo antes dele começar: "71% da população paulista, à véspera das eleições, não sabia o significado da palavra 'Constituinte'". Aponta o porque de o texto não ter saído com qualidade: "Não é democrático obrigar ao raciocínio aqueles que não querem pensar". Rememorando que Ulysses Guimarães a chamava de "a Constituição dos miseráveis", Roberto Campos a define como uma "favela jurídica onde os três poderes viverão em desconfortável 'promiscuidade'". Dando-se por satisfeito, conclui: "Essa peça tragicômica tornará o país ingovernável".
Para ele, a Constituição de 1988 é permeada por "uma espécie de 'democratice', essa perversão do conceito de democracia, que garante a todos e a cada um o direito ao seu pequeno absurdo". Tancredo Neves teria cometido um imperdoável erro: "se esqueceu de formular um mandato para os notáveis: 'É proibido sonhar'".
Campos se refere ao texto como "a desastrosa Constituição de 1988". Diz que "a nova Constituição é um camelo desenhado por um grupo de constituintes que sonhavam parir uma gazela...". Chama-a de Carta Magna, mas ressalva: "apenas no tamanho". É, segundo ele, "a Constituição dos 559 patetas", um "dicionário de utopias de 321 artigos", a "Constituição besteirol". Esse é Roberto Campos, como o fogo: ilumina e queima.
Ele recorda o primeiro-ministro do trabalhismo inglês, James Callaghan, para quem "nada mais perigoso do que a feitura de textos constitucionais. Isso desperta o instinto utópico adormecido em cada um de nós". Sobre o futuro, Roberto Campos aconselha: "Ou o Brasil acaba com essa Constituição ou ela acaba com o Brasil!...". Não.
O intelectual explica porque foi contra a ideia de uma Constituinte exclusiva: "Duvido que houvesse candidatos dispostos a exaurir-se, física e financeiramente, só para partejar, em sete meses, um texto constitucional, retornando depois ao escritório, à forja ou ao arado...Seria um caso de patriotismo potenciado ao nível de masoquismo...".
E quanto ao duro trabalho dos constituintes? "Os constituintes não podem senão sentir-se como pianistas no Titanic, arranjando a partitura e ajeitando a banqueta, enquanto o navio afunda...". Metáforas eruditas. Um jardim florido delas.
Recorda o então primeiro-ministro português, Cavaco Silva, que, segundo Campos, amargou "a penosa experiência de consertar a Constituição da República dos Cravos". Para Cavaco Silva, "o problema das Assembleias Constituintes é que fazem besteiras por maioria absoluta e depois são precisos dois terços para corrigi-las".
Para Roberto Campos, "a nova arquitetura constitucional pode esperar. A crise econômica, não...". Ele explica: "A Constituição é um problema de estrutura, que pode esperar. A inflação e a insolvência são problemas de conjuntura, que não podem esperar".
A Constituição de 1988 teria nascido velha, pois "é obsoleto falar em reserva de mercado num momento em que o mundo todo fala em integração de mercados. É obsoleto falar-se em faixa de fronteira, em nome da segurança nacional, quando a Europa e a Norte-América se apresentam para eliminar fronteiras. É absurdo hostilizar a presença de capitais estrangeiros na mineração quando a poupança nacional escasseia, o risco da pesquisa é ingrato (...)".
Roberto Campos explica a razão de os estadunidenses amarem a sua Constituição e nós não termos - segundo ele - o mesmo sentimento pela nossa: "ela é um desenho arquitetônico, e a nossa um regulamento enxundioso".
São muitos os dispositivos constitucionais comentados. O art. 165 que constava em uma das versões do projeto, garantia "ao trabalhador salário-mínimo, 'capaz de satisfazer suas necessidades normais e de sua família', assim como acesso a 'colônias de férias e clínicas de repouso', mantidas pela União". Campos comenta: "Isso a rigor pressupõe uma economia sem desemprego nem inflação, e equivale a declarar 'inconstitucional' nossa própria condição de subdesenvolvimento".
Antevendo os efeitos colaterais do hiperpartidarismo, anotou: "A única esperança restante para elidir as 'disfuncionalidades' da proliferação partidária seria distinguir-se entre a 'formação' de partidos, que deveria ser livre, e sua 'representação' no Congresso, que exigiriam um contingente eleitoral de pelo menos 5% dos votos na primeira eleição subsequente à implantação da liberdade partidária". Prossegue: "Dar a quaisquer partidos o direito de participação no Legislativo é transformá-lo num comício permanente". Naquele tempo, já profetizava: "Passamos subitamente de um extremo ao outro. Do bipartidarismo constrangido para o pluripartidarismo caótico". Então, anuncia: "Estamos construindo um 'multipardidarismo anárquico'". Ao final, arremata: "A representação parlamentar de minúsculos fragmentos da população é 'democratice'. O processo decisório passa a ser refém de coalizões instáveis". Profético ou não?
Campos almeja escapar "do sinistro rodízio latino-americano entre o populismo e o militarismo, para desembocarmos, afinal, no estuário da democracia social". Mesmo assim, alerta para o surgimento de líderes populistas, que, nulificando o Congresso Nacional, tentam governar construindo contato direto - às vezes divino - com as multidões. "A democracia plebiscitária utilizada pelos líderes carismáticos para contatos diretos com as massas acaba quase sempre em ditadura". Atentai bem.
Sobre os relatores arranjados pelo então senador Mário Covas (PMDB) para as Subcomissões da Constituinte, diz que, salvo honrosas exceções, "convergem na exibição de três qualidades desamoráveis: (a) agressividade ideológica; (b) desinformação econômica; (c) carência de sense of humor - esse doce pudor diante da vida de que falava o poeta". E conclui: "Quando abrem a boca contribuem para reduzir a soma total de conhecimentos à disposição da humanidade...". Genialmente ferino.
Roberto Campos rechaça o que chama de glorificação do absurdo. Como exemplo de "surrealismo", traz a "constitucionalite". Explica: "uma nova Constituição criaria condições mágicas para a resolução de vetustos problemas - a consolidação democrática, a retomada do desenvolvimento, a correção das injustiças sociais".
Ele lembra que, "segundo o professor americano Keith Rosen, os países latino-americanos já fabricaram, desde sua independência, 277 Constituições. Ou seja, uma média de 13 por país. Como o Brasil está partejando sua oitava Constituição, estamos ainda abaixo da média continental. O que significa a probabilidade de sofrermos novos ataques de 'constitucionalite', doença endêmica nos países subdesenvolvidos".
Roberto Campos criticava o nosso presidencialismo. Dizia: "Nesta 'Nova República', conseguimos reunir o pior dos dois mundos: um presidencialismo de jure, em que o presidente edita decretos-leis, e um parlamentar de facto, de vez que a maioria parlamentar se considera com direito a ratear entre si ministérios e cargos do Executivo". Defendia o Parlamentarismo, com condicionantes: "Qualquer ensaio parlamentarista exigiria, além de partidos estruturados, um Banco Central independente a uma burocracia profissionalizada". E arrematava: "Sinto-me em relação ao parlamentarismo como Santo Agostinho se sentia em relação à castidade: Dê-me, senhor, mas não já".
Sobre o projeto da Comissão de Notáveis, presidida por Afonso Arinos, diz o seguinte da parte que tratava da área econômica e social: "Contém coisas tão bizarras como o art. 343, III, que objetiva assegurar a todos o 'direito a uma fonte de renda que possibilite existência digna', como se a sociedade estivesse obrigada a financiar vagabundos e beberrões". Roberto Campos, uma vez mais, Roberto Campos.
O diálogo insistente entre direitos negativos e positivos é por ele categorizado como "garantias não onerosas" e "garantias onerosas", "que devem ser cuidadosamente medidas para não se confundir o desejo com a realidade, e as aspirações da sociedade com sua capacidade efetiva de prover satisfações".
Sobre o Estado, e seus servidores públicos, adverte: "o Estado não é composto de missionários apaixonados pela prioridade do social, mas de funcionários em carne e osso, que também operam sob o princípio do lucro; não o lucro obtido pela eficiência do mercado, mas o lucro representado pelo desfrute do poder e de suas mordomias".
Conceitua o povo: "aquela parte da sociedade que não sabe o que quer...".
Há mais. A Constituição trouxe o art. 225, que diz: "Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações". Roberto Campos chama o dispositivo de "ensaio de voluntarismo paranoico".
Ele passa a comentar dispositivos do projeto. O art. 342, III (direito a uma fonte de renda que possibilite uma existência digna), teria, na hermenêutica cortante de Roberto Campos, essa redação: "A sociedade deve financiar os bêbados e vagabundos". O art. 342, VI (direito à moradia... adequada, em condições de higiene e conforto) ganharia a seguinte: "Ficam abolidas as favelas". Na sequência, o art. 343, XII (garantia de manutenção, pelas empresas, de creches para os filhos até um ano de idade e escola maternal até quatro anos): "É melhor só contratar empregados solteiros". Em seguida, o art. 343, XVI (estabilidade no emprego): "É melhor comprar máquinas e robôs, pois ninguém pode garantir às empresas a estabilidade da receita ou vendas". O art. 345, § 20 tinha a seguinte redação: "As categorias profissionais de serviços essenciais que deixarem de recorrer ao direito de greve farão jus aos benefícios obtidos pelas categorias análogas ou correlatas". Roberto Campos o traduz para o seguinte: "Fica estabelecido o 'salário contágio', sem sequer o esforço de fazer greve". Mordaz. Mordaz demais.
Para ele, o Título "Da Ordem Econômica" converte o empresário em funcionário. Já a sucessão de dispositivos introdutores da ordem econômica seria um "ensaio de pornografia econômica dos notáveis".
Campos diz que fica proibida a transferência a estrangeiro das terras onde existam jazidas, minas, outros recursos minerais e potenciais de energia elétrica, "o que significa uma extensão da tese do 'petróleo é nosso' para todo o reino mineral".
Sobre o Capítulo "Da Ciência e Tecnologia", afirma se tratar de "um sápido coquetel de nacionalismo-obscurantista e intervencionismo-cartorial", pois "permite ao tecnocrata estabelecer 'reserva de mercado', nos casos em que exija o desenvolvimento tecnológico'". E, uma vez mais, deita sarrafos no servidor público: "É ele - o tecnocrata - que não dirige fábricas nem paga contas, quem decide sobre o produto e os mercados do empresário". E arremata: "O Estado não é tripulado por missionários e sim por um misto de funcionários e corsários". Pois não.
Sobre o capitalismo brasileiro e a livre iniciativa assegurada pelo art. 170 da Constituição, adverte: "Boçal engano!". Explica: "Características essenciais do capitalismo são a liberdade de preços e o livre ingresso no mercado. Nosso sistema de preços é controlado (e às vezes congelado), monopólios e cartéis proliferam".
O art. 219 da Constituição diz que "o mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de lei federal". Para Roberto Campos, é "o encapsulamento de três asneiras em quatro linhas", pois "se cada nação considerasse seu mercado interno patrimônio nacional, extinguir-se-ia o comércio internacional. (...) Ora, o mercado é um ente secular e impessoal onde milhões de indivíduos decidem simultaneamente, não podendo ser ordenado senão pela lei da oferta e procura".
Sobre os direitos dos trabalhadores, qualifica-os como "uma viagem ao seio da utopia". Recordando que a Comissão de Ordem Social havia restaurado a estabilidade de emprego - instituto getulista - aos três meses, Roberto Campos disse que o tempo era "suficientemente curto para que um beberrão possa fingir sobriedade, um cleptomaníaco, desamor à propriedade alheia, e um vagabundo, incansável operosidade...". Segue: "é impossível garantir estabilidade no emprego se ninguém garante às empresas estabilidade no faturamento. E as empresas brasileiras são anormalmente instáveis. Não enfrentam apenas os caprichos do mercado. Enfrentam os caprichos do governo".
Ele já alertava: "Do ponto de vista dos empregados, entretanto, a demissão será sempre imotivada, abrindo-se imediatamente um contencioso na Justiça do Trabalho, hoje sobrecarga, e psicologicamente despreparada para aceitar a aspereza no mercado competitivo". Profético uma vez mais?
Sobre a licença paternidade, (art. 7º, XIX c/c § 1º do art. 10 do ADCT), ele cruza a linha: "A comédia final do dia 2 de fevereiro foi a aprovação de emenda que garante ao marido parturiente 8 dias de descanso, após o parto. Trata-se de prática conhecida na tribo dos Carajás e em algumas culturas polinésias". Virou galhofa.
Sobre os direitos trabalhistas das mulheres, diz: "Só um antifeminista poderia punir as mulheres com as conquistas que as esquerdas lhe oferecem, e que tornara a contratação de mulheres uma insensatez econômica".
Vale notar, todavia, o firme vigor com o qual defende o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. Para ele, "permanece uma conquista real, muito mais tangível e concreta que a ilusória estabilidade do emprego da era getulista". E diz mais: "o empregado não precisava escravizar-se à empresa, à espera da estabilidade, mas poderia escolher melhores empregos, carregando consigo o pecúlio financeiro do FGTS. A indenização de despedida no regime anterior era um prêmio pagável somente no desastre do desemprego. O FGTS era um patrimônio crescente do empregado, disponível para várias finalidades". Sim. Sim. Um intelectual acima de tudo.
Roberto Campos também divide suas impressões sobre a Comissão de Ordem Social. Diz que ela oferece uma solução simplíssima para a Reforma Agrária. Dispõe, no art. 39 de seu relatório, que todos os "sem terra passam a ter direito assegurado à propriedade na forma individual, cooperativa, condominial, comunitária ou mista", cabendo ao Estado promover as necessárias desapropriações. A partir desse ponto, Roberto Campos novamente: "Talvez por esquecimento, os Constituintes não garantiram ao trabalhador urbano o direito de ter sua própria fábrica, aos carpinteiros de possuírem uma carpintaria, as costureiras de conseguirem uma boutique...".
Para ele, no capítulo da Reforma Agrária (Capítulo III, Título VII - Da Ordem Econômica e Financeira), "desapropriação e reforma agrária se tornaram sinônimos". Acontece que "a desapropriação é apenas um - o mais dispendioso e conflitivo - dos instrumentos de reforma". E conclui: "ao contrário dos bem-sucedidos projetos de colonização privada, os assentamentos do Incra são um rosário de derrotas".
Roberto Campos diz que o projeto da Constituição "declarou incompatível a incompatibilidade". Exemplifica: "O art. 304 veda taxativamente 'a vinculação ou equiparação de qualquer natureza, para o efeito de remuneração do servidor público'. Nos arts. 238 e 239 diz-se precisamente o contrário. Os membros do Ministério Público e Defensores Públicos são equiparados, em garantias e vantagens, ao Poder Judiciário".
Ele advertiu que "os orçamentos dos estados explodiriam cada vez que fossem aumentados os vencimentos dos ministros do Supremo Tribunal Federal".
Quanto à educação superior, disse: "À parte o ensino primário, gratuito, a educação nos demais níveis deveria ser paga pelos alunos ricos, dando-se aos pobres, que provassem suficiência acadêmica e insuficiência econômica, bolsas que os habilitassem a optar livremente por escolas públicas, privadas ou confessionais". Recorda que as Universidades públicas são "suntuosas em seus campi e franciscanas em seus laboratórios de pesquisa". E fecha: "os filhos ricos, dispensados de trabalhar, e capazes de pagar cursinhos, se qualificam para aterrissar, em automóvel próprio, nas universidades públicas, enquanto os pobres pagam seu ensino noturno em universidades privadas".
Ele sapateou sobre o direito à saúde: "O capítulo sobre saúde é risível". Ao fundamentar, exagera: "Diz o art. 349, 'saúde é direito de todos e dever do Estado'. Só que as bactérias e os vírus não foram informados que ao infectarem os brasileiros estarão violando a Constituição...". De hábitos moderados, Campos era dado a excessos verbais.
Diz: "promete-nos uma seguridade social sueca com recursos moçambicanos".
No capítulo dos índios, também não mostra otimismo: "Da crueldade em relação aos indígenas, passaremos no novo texto constituinte a um indigenismo romântico".
Sobre a função social da propriedade, um dos princípios da ordem econômica (art. 170, II), comenta: "Não faltarão advogados trabalhistas, pseudoambientalistas, ou 'teólogos' da libertação incapazes de pegar na enxada, mas perfeitamente capazes de habilitar o burocrata e questionar a observância da função social".
Há quem repute as garantias sociais cláusulas pétreas. Mas, para Roberto Campos, "isso é confundir pedra com paçoca". Resume as conquistas sociais assim: "foram um plantio de dragões para uma colheita de pulgas, como diria Heine".
Ele distingue patriotismo - o amor ao seu país -, do Nacionalismo, "espécie de sarampo infantil da humanidade, de que falava Einstein em seu continente; ou essa cultura dos incultos, como diz Vargas Llosa sobre a América Latina".
Sustentou que a definição de empresa nacional (revogada pela Emenda Constitucional nº 6/1995) era "de uma patriótica cretinice", pois se destina "a afugentar o capital estrangeiro e reforçar os cartórios nacionais". Com o resultado final ao qual chegou a Comissão, o Brasil teria virado "um mendigo orgulhoso".
O art. 199, § 3º veda "a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no País, salvo nos casos previstos em lei". Roberto Campos vaticina: "No campo da saúde, ficam proibidos os hospitais estrangeiros, o que significa que a doença é nossa, e os pacientes só poderão morrer em mãos tupiniquins".
Campos indaga se, pela versão original do art. 37 da Constituição (alterado pela Emenda Constitucional no. 19/1998), "nem Einstein, nem qualquer Prêmio Nobel de Ciência poderia ser professor de nossas universidades, transmitindo-nos conhecimentos científicos, a não ser que se naturalizasse brasileiro?".
Ao ler o art. 133 da Constituição - originalmente apelidado de "Cabralão II" - que diz que "o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei", Roberto Campos afirma que a Constituição "singulariza criaturas especiais", pois há "desigualdade em favor dos professores, médicos, advogados, e, a prevalecerem tendências atuais, garimpeiros e seringalistas". A partir daí, as rosas são atiradas sobre os advogados. Cravam, contudo, apenas os espinhos. "O campeonato do corporativismo cabe à profissão de advogado, pois ele é declarado indispensável à administração da justiça. Nem mesmo um desquite amigável (com secreta troca de insultos) será possível sem um rábula...".
Na sequência, os membros do Ministério Público. "Obtiveram os privilégios da magistratura, convertendo-se o Ministério Público numa espécie de quarto poder". Ele puxa o barbante e a lâmina desce: "O professor Octávio Bulhões, atazanado pelas delongas processuais na liberalização de empréstimos externos, indispensáveis a caixa de um tesouro falido, costumava murmurar: 'O Brasil não se conserta enquanto não extinguirmos a carreira de procurador, criando em seu lugar a profissão de achador'".
Roberto Campos tenta identificar uma razão para o que chama de "furor corporativista". "Nada menos que 186 constituintes, ou seja, 1/3 do total, são advogados. Somente 115 constituintes, ou seja, 21% do total, provém de profissões diretamente vinculadas ao processo produtivo - empresários, industriais, administradores e agropecuaristas. O restante é composto de jornalistas, professores, servidores públicos, bancários, militares ou políticos profissionais, que se somam aos advogados para formar uma burguesia intelectual". Segundo Campos, essa "burguesia intelectual" não hesita "em ditar regras para a distribuição da riqueza alheia e decretar as conquistas sociais, dispensando-se, naturalmente, de se explicar quem vai pagar a conta".
Mas como ser uma pessoa pública de alto gabarito no Brasil? Campos responde: "É preciso ter o couro duro de elefante, que Adenauer considerava o presente supremo de Deus ao estadista". Avisa, contudo, que o exercício do poder depende do ele chama de quarteto maravilhoso: "caneta, Diário Oficial, chave do cofre e a sombra da baioneta".
A derradeira profecia de Roberto Campos é de arrepiar. Afirmando que seria necessário, no ministério da Fazenda, "homens capazes de repelir o irracionalismo xiita, sem submissividade aos políticos e sem interesses enraizados no estamento burocrático", Roberto Campos escolhe como um dos representantes do que chama de "a brilhante e jovem geração emergente" ele, Paulo Guedes. Esse seria um dos homens a corrigir "o sinistro legado do PMDB: perda de credibilidade externa e incredulidade interna". Paulo Guedes é, hoje, o lustroso ministro da Economia. Profecia uma vez mais?
No § 3º do art. 217 da Constituição, consta que "o Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social". Roberto Campos exorta a ética do trabalho, mas adverte: "tudo indica que estamos mais preparados para a ética do lazer".
Roberto Campos excomunga o controle de constitucionalidade por omissão. "Estabelecer-se-á um permanente contencioso sobre a adequação do salário mínimo às necessidades básicas", anotou. Sustenta que "o cidadão comum poderá, na falta de normas regulamentadoras, pleitear no Judiciário 'direitos', liberdades e prerrogativas constitucionais. O Judiciário deixará assim de ser o intérprete e executor das normas para ser o feitor das normas confundindo-se a função judiciária com a legislativa". E mais. "O país será quintessencialmente um país litigante. Os causídicos encontraram afinal seu paraíso...". Despede-se deixando o seguinte post scriptum: "Logo após a promulgação pedirei, como idoso, um mandado de injunção para que o Bom Deus seja notificado de que tenha garantia de vida, mesmo na ocorrência de doenças fatais (art. 233), sendo, portanto, inconstitucional afastar-me de meus contatos terrestres...".
O art. 177, I da Constituição (monopólio da União a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos) não passa incólume. "Com o bom senso que caracterizada os founding fathers norte-americanos, abstiveram-se na Constituição da Filadélfia de mencionar a lenha, e nenhuma das Constituições europeias do século passado mencionou o carvão. (...) Coube ao Brasil esse pioneirismo ridículo de entronizar hidrocarbonetos na Carta Magna".
Ele explica, com pedagogia, a razão pela qual diverge do monopólio do petróleo (art. 177, I a IV, da Constituição). "O monopólio de petróleo é mero fetiche, típico de países subdesenvolvidos, que aliam ao subdesenvolvimento financeiro um bocado de subdesenvolvimento mental".
O caráter analítico da Constituição também o toca. "Teremos uma Constituição de 156 artigos, o que dará mais emprego a bacharéis, mais desemprego aos trabalhadores, mais desilusão para todos e uma advertência para que outros países não se entreguem a exercícios de besteirol". O descumprimento, ou o ato consciente de ignorá-la, é, para Campos, "tratamento que a história habitualmente destina aos reservatórios de utopias".
Roberto Campos, então, abre o jogo: "Já tivemos sete Constituições, enquanto os americanos só tiveram uma e os ingleses, nenhuma. Não costumamos consultar e muito menos cumprir qualquer de nossas Constituintes, sejam as votadas, sejam as outorgadas". E conclui: "o problema nunca foi de Constituições e sim de instituições". Resumiu mais de 500 anos de história do Brasil.
Diz que a Constituição brasileira pouco ou nada se parece com as constituições civilizadas que conhece. "Seu teor socializante cheira muito à infecta Constituição portuguesa de 1976, da qual Portugal procura agora desembarcar-se a fim de embarcar na economia de mercado da Comunidade Econômica Europeia. O voto aos dezesseis anos dizem copiado da Constituição da Nicarágua. A definição de empresa nacional parece só existir na Constituição de Guiné-Bissau. Em ambos os casos, nem o mais remoto odor de civilização...". Roberto Campos teima em enxergar o meio copo vazio.
Ele persevera: "Elencam-se 34 'direitos' para o trabalhador, e nenhum 'dever'. Nem sequer o 'dever' de trabalhar, pois é irrestrito o direito de greve. Obviamente, ninguém teve a coragem para incluir, entre 'os direitos fundamentais', o direito do empresário de administrar livremente a sua empresa". Tem mais. Roberto Campos lembra que "a palavra produtividade só aparece uma vez no texto constitucional; as palavras usuário e eficiência figuram duas vezes; fala-se em garantias, 44 vezes, em direitos, 76 vezes, enquanto a palavra deveres é mencionada apenas quatro vezes".
Segundo ele, "ao contrário dos países civilizados, no Brasil, as interpretações dos tribunais superiores não vinculam as instâncias inferiores. Há tantas normas quantos são os intérpretes". E adverte: "A previsão das consequências certamente não tem sido o esporte preferido dos constituintes". Se a ciência é simplesmente a previsão das consequências, "a Assembleia Nacional Constituinte é a catedral da anticiência", finaliza.
Não parece que Roberto Campos queria outra Constituição para o Brasil. Talvez quisesse apenas um outro Brasil, com Constituição ou não. Tanto que chegou a confidenciar: "Sempre defendi a tese de que é melhor não ter constituição escrita".
Um homem dessa envergadura não deixaria de refletir sobre a felicidade. "Jefferson falou no direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade (pursuit of happiness)". Mas, a partir daí, fez-se Roberto Campos uma vez mais: "Nossa Comissão da Ordem Social não faz por menos. A felicidade passa a ser não apenas um objetivo buscado pela sociedade, mas uma garantia constitucional, pois, segundo o artigo 1º, inciso II: 'Todos têm direito à moradia, alimentação, educação, saúde, descanso, lazer, vestuário, transporte, e meio ambiente sadio'".
Reputando a Constituição uma "loucura de primavera", diz que ela "programa a felicidade, com frequentes bodocadas no bom senso. É saudavelmente libertária no político, cruelmente liberticida no econômico, comoventemente utópica no social...".
A sua conclusão, no tema da felicidade, é essencialmente utilitarista: "O mérito da democracia não é necessariamente assegurar o governo melhor, mas apenas garantir, pela regra da lei, o afastamento de um governo mau. Idealmente, a sociedade deveria maximizar a felicidade; mas já seriam bom se conseguisse minimizar o sofrimento...".
Roberto Campos, mesmo liderando, como protagonista, um lado diverso da bancada das ideias na qual me sento com a discrição de um modesto jovem observador, merece cada instante de atenção que a ele dedico na coluna de hoje. Tudo vem do livro "A Constituição contra o Brasil: ensaios de Roberto Campos sobre a constituinte e a Constituição de 1988", organizado por Paulo Roberto de Almeida, da LVM Editora.
Fala de um brasileiro. Um erudito. Uma pessoa de coragem. Alguém que prosperou graças aos estudos. Isento dos privilégios de um berço de ouro, viveu a verdade e percorreu o caminho. E fez ao seu modo. Sempre. Na oligarquia dos mentecaptos, como fazem falta esses estadistas. Parabéns ao organizador da coletânea, Paulo Roberto de Almeida e parabéns, in memoriam, a Roberto Campos.