A judicialização do poder em Israel
segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019
Atualizado às 07:47
No trajeto de Jerusalém para Masada, a sudoeste do Mar Morto, na região da Judeia, um deserto infinito se impõe sobre as vidas que ali resistem. Penhascos, cavernas e crateras são fiéis companheiros. Enxergar um rasgo de água pura serpenteando a estrada seria uma ilusão. Não há. Animais, pessoas, árvores, plantas, frutas, borboletas..., não se vê nada. É o encontro da solidão com o infinito.
Mas, antes que a esperança escape, o inesperado aparece. Grandes, fortes, verdes, belas, imponentes..., milhares de árvores fazem no horizonte o desenho de um tapete verde inalcançável à vista. Canos preenchidos pela mais cristalina das águas irrigam um solo que parecia morto. Como se fosse leite e mel. Pessoas trabalham, veículos entram e saem. Há produção, há atividade, há energia humana. É vida. Vida em abundância.
Como é possível, logo ali, florescer aquilo? É um contraste. Escassez e abundância uma ao lado da outra. Israel parece ser formada de contrastes. Tristeza e felicidade. Queda e triunfo. Ponto e contraponto. Guerra e paz. Medo e esperança.
Essa dialética também acontece no Direito Constitucional. Como pode florescer um vasto campo para direitos constitucionalmente protegidos num país onde não há propriamente uma Constituição formal? Em Israel isso aconteceu. E não foi um milagre.
Em 14 de maio de 1948, poucas horas depois do fim do Mandato Britânico sobre a Palestina, David Ben-Gurion, um founding father, declarou o estabelecimento do Estado de Israel.
A Declaração foi promulgada pelo Conselho do Povo, o parlamento dos Yishuv. Os Yishuv são a comunidade judaica na Palestina. O Conselho do Povo, todavia, atribuiu a si a designação de Conselho de Estado Provisório e escolheu 13 dos seus membros para servir como Administração Popular.
O novo Estado teve a sua primeira eleição em 25 de janeiro de 1949. Os cidadãos de Israel escolheram uma Assembleia Constituinte de 120 membros, responsável por elaborar uma Constituição. Contudo, uma vez reunida, a Assembleia resolveu mudar seu nome e suas responsabilidades. Virou Knesset, o Parlamento de Israel. A Constituição ficou para depois.
Um ano mais tarde, o Knesset aprovou a Resolução Hahari, que conferiu à Comissão de Constituição, Direito e Justiça do Knesset o dever de elaborar uma série de leis básicas que, juntas, formariam a Constituição. Essa compilação não aconteceu.
Em 1992, o Knesset aprovou a Lei Básica: Dignidade Humana e Liberdade. Em 1995, num julgamento emblemático ("Banco Mizrahi v. The Minister of Finance"), mesmo tendo sido, a Lei Básica Dignidade Humana e Liberdade, aprovada sem um quórum especial, a Suprema Corte a reconheceu como materialmente constitucional. Qualquer outra lei que a contrarie deve ser declarada inconstitucional. A decisão correspondeu, para a jurisdição israelense, a um Marbury v. Madson (1803). Nas palavras de Aharon Barak, que presidiu a Suprema Corte por mais de uma década: "Uma revolução constitucional".
Como, ao longo de 45 anos, o Knesset havia aprovado onze Leis Básicas em matérias variadas, então mesmo sem o procedimento formal estipulado pela Resolução Hahari o país ganhou a sua própria Constituição, formada pelas referidas leis. A partir daí, a Suprema Corte começou a usar esse fabuloso insumo como matéria-prima de uma robusta produção coletiva de direitos, o que incluiu, também, casos polêmicos fruto de uma intensa judicialização das atividades do Poder Executivo. Vamos a alguns desses casos.
"No Direito Privado, o indivíduo pode se comportar com certo 'capricho', embora tal 'capricho' não seja o que deveria ser. Mas, no domínio do Direito Público - Direito Constitucional e Administrativo - o 'capricho' é uma doença terminal"1. Esse trecho ilustrou a discussão travada, em 2003, na Suprema Corte, no caso "The Movement for Quality Government in Israel v. Attorney-General" (HCJ 7367/97).
O Movimento por um Governo de Qualidade em Israel levou o Primeiro-Ministro Ariel Sharon à Suprema Corte. A razão? Uma controvertida escolha para o Ministério da Segurança Pública. Judicializou-se a indicação antes da posse do indicado.
Tzahi Hanebi havia sido o apontado. Em 1982, jovem, ele foi condenado por se envolver numa confusão na universidade. Posteriormente, já uma figura pública, viu seu nome pululando em três investigações sem que tivesse sido condenado em nenhuma delas.
O Movimento entendia que Hanebi não poderia servir ao Governo, pois apesar de não ter sido condenado, todos os rumores que seu nome despertava estilhaçavam o cristal da confiança pública no Ministério, o que terminava gerando obstruções dos populares. Essas obstruções, somadas a toda a mídia que o indicado atraía e ao burburinho de que novas investigações poderiam surgir atrapalhavam a continuidade do serviço público prestado pelo Ministério e pareciam limitar a capacidade do próprio Hanebi de executar legitimamente uma agenda ministerial.
O Justice Mishael Cheshin, proferindo o seu voto, arrematou: "Aqueles que exercem autoridade em nome do Estado ou de qualquer outra autoridade pública - no nosso caso, o Primeiro-Ministro e o Ministro da Segurança Pública - devem estar conscientes de que suas questões não são suas. Trata-se de questões que dizem respeito a outros e eles são obrigados a conduzirem-se com justiça e integridade, em estrita conformidade com os princípios da administração pública"2. Cheshin ficou vencido.
A Suprema Corte de Israel concluiu não haver razão para impedir que Ariel Sharon empossasse Tzahi Hanebi no Ministério da Segurança Pública. Vetar a assunção ao posto sem que houvesse taxativa previsão a respeito ou, pelo menos, que o conjunto dos fatos indicasse evidências mais robustas, poderia se tornar um hábito caprichoso de juízes moralistas. Melhor não abrir essa Caixa de Pandora.
O racional acima esteve presente na decisão da Suprema Corte no caso "Women's Lobby v. The Minister of Labor and Welfare", (HCJ 2671/98). Ficou registrado: "Ao agir no domínio do direito público, a autoridade investida do poder de nomeação opera na qualidade de administrador público. Assim como um administrador fiduciário não possui nada próprio, também a autoridade que nomeia não possui nada dela. Deve conduzir-se à maneira do administrador: agir com integridade e equidade, considerando apenas fatores relevantes, atuando com razoabilidade, igualdade e sem discriminação"3.
No já citado "The Movement for Quality Government in Israel v. Attorney-General" (2003), o Justice Eliezer Rivlin, relator, registrou em seu voto-vencedor: "Tanto a decisão do Primeiro-Ministro de nomear uma pessoa e sua decisão de não exonerar um indicado ao seu gabinete estão sujeitas a padrões de razoabilidade, integridade, proporcionalidade, boa-fé e ausência de arbitrariedade ou discriminação"4.
Em 2016, a Suprema Corte apreciou o caso "Movement for Quality Government in Israel v. Prime Minister" (HCJ 232/16), no qual se questionava a indicação do membro do Knesset, Rabbi Aryeh Machlouf Deri, para o posto de Ministro do Interior. Deri havia sido condenado por corrupção na década de 1980.
O Justice Salim Joubran anotou: "a intervenção deste Tribunal, na discricionariedade das pessoas autorizadas a remover um Ministro ou Vice-Ministro do cargo, deve ser limitada às situações em que a gravidade da infração não pode ser conciliada com a continuidade do serviço público"5.
A discussão é rica. O poder que chefes do Executivo têm hoje não é nem de longe o que um dia já tiveram. Moisés Naím, especialista, é peremptório: "O poder está em degradação". Para ele, "no século XXI, o poder é mais fácil de obter, mais difícil de utilizar e mais fácil de perder".
Naím explica que os governantes estão cada vez mais com dificuldades de exercer o poder que sonhavam ter. As democracias têm requerido dos poderosos mais e mais tolerância com o controle diário do seu poder. Sua derradeira frase é: "De Chicago a Milão e de Nova Délhi a Brasília, os chefes das máquinas políticas irão prontamente admitir que têm bem menor capacidade de tomar as decisões unilaterais que seus predecessores davam como certas"6.
Num único dia, em Jerusalém, é possível ouvir o cântico Islâmico de megafones na Dome of the Rock, a oração enfática dos judeus no Muro das Lamentações e, por fim, a badalada dos sinos nos templos cristãos. Em Acre, ao Norte, um trabalhador árabe vive na casa que pertence a sua família há 800 anos. No Sul, beduínos dividem sua refeição no deserto mostrando que, em ambientes hostis, resistir é a única possibilidade. Em Tel Aviv, jovens converteram as cicatrizes e os conhecimentos adquiridos no tempo do exército em tecnologia e inovação que, juntas, amenizarão o sofrimento do semelhante. No Mar Morto sente-se vida em abundância. Trilhos percorrem a borda do desenho do mar, engolidos por túneis que se ajoelham para as colinas da Terra Sagrada. Tudo isso em Israel. Num solo onde uma Constituição não foi plantada nasceram os mais valiosos frutos de uma verdadeira democracia constitucional. Quem poderia imaginar?
Se, dos penhascos secos da Judeia, o tirocínio humano fez nascer um tapete verdejante de prosperidade tal como montanhas de leite e mel, a decisão da Suprema Corte de Israel, em 1995, reconhecendo sua competência para aferir a constitucionalidade de leis, abriu espaço para o florescimento de uma cultura verdadeira de revisão judicial.
Isso faz com que o constitucionalismo israelense seja uma genuína demonstração de um feliz acaso. Ninguém poderia imaginar que num país sem uma Constituição nasceria um exuberante campo de estudo sobre o Direito Constitucional. Mas aconteceu.
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2 Consta do parágrafo 24 (p. 400) do acórdão: "Those exercising authority on behalf of the state or any other public authority - in our case, the Prime Minister and the Minister of Public Security - must constantly be aware that their affairs are not their own. They are dealing with matters that concern others and are obligated to conduct themselves with fairness and integrity, in strict compliance with the principles of public administration".
3 Consta do parágrafo 24 do acórdão: "When acting in the domain of public law, the appointing authority operates in the capacity of a public trustee. Just as a trustee possesses nothing of his own, so too, the appointing authority possesses nothing of its own. It must conduct itself in the manner of the trustee: acting with integrity and fairness, considering only relevant factors, acting with reasonableness, equality, and without discrimination".
4 No parágrafo 17 do acórdão consta: "Therefore, both the Prime Minister's decision to appoint a person and his decision not to remove one from office are subject to the accepted standards of reasonableness, integrity, proportionality, good faith, and the absence of arbitrariness or discrimination".
5 Consta do parágrafo 28 do voto-vencedor no acórdão: "(...) the boundaries of the Court's intervention in appointments is limited to those instances in which an appointment might seriously harm the standing of the institutions of government and the public's confidence in them".
6 Naím, Moisés. O fim do poder: nas salas da diretoria ou nos campos de batalha, em Igrejas ou Estados, por que estar no poder não é mais o que costumava ser?/ Moisés Naím; tradução Luis Reyes Gil. - São Paulo: LeYa, 2013.