O reconhecimento da dignidade humana em Israel
quinta-feira, 11 de janeiro de 2018
Atualizado às 08:44
No trajeto de Jerusalém para Masada, a sudoeste do Mar Morto, na região da Judeia, um deserto infinito se impõe com toda a autoridade sobre as vidas que ali resistem. Penhascos, cavernas e crateras são fiéis companheiros. Enxergar um rasgo de água pura serpenteando a estrada seria uma ilusão. Não há. Animais, pessoas, árvores, plantas, frutas, borboletas..., não se vê nada. É o encontro da solidão com o infinito. Tudo se esvai ali.
Mas, antes que a esperança escape, o inesperado aparece. É algo que os olhos nordestinos demoram a aceitar. Grandes, fortes, verdes, belas, imponentes..., milhares de árvores carregadas de frutas fazem no horizonte o desenho de um tapete verde inalcançável à vista. Canos preenchidos pela mais cristalina das águas irrigam um solo que parecia morto. Como se fosse leite e mel. Pessoas trabalham, veículos entram e saem. Há produção, há atividade, há energia humana. É vida. Vida em abundância.
Como é possível, logo ali, florescer aquilo? É um contraste. Escassez e abundância uma ao lado da outra. Israel parece ser formada de contrastes. Tristeza e felicidade. Queda e triunfo. Ponto e contraponto. Guerra e paz. Medo e esperança.
Essa dialética também acontece no Direito Constitucional israelense. Como pode florescer um vasto campo para direitos constitucionalmente protegidos num país onde não há uma Constituição? Em Israel isso aconteceu. E não foi um milagre.
Em 14 de maio de 1948, poucas horas depois do fim do mandato Britânico sobre a Palestina, David Ben-Gurion, um founding father, declarou a independência do Estado de Israel. Ali, ele abria a larga comporta do inesperado.
A Declaração de Independência foi promulgada pelo Conselho do Povo, o parlamento dos Yishuv. Os Yishuv são a comunidade judaica na Palestina. O Conselho do Povo, todavia, atribuiu a si a designação de Conselho de Estado Provisório e escolheu 13 dos seus membros para servir como Administração Popular.
O novo Estado teve a sua primeira eleição em 25 de Janeiro de 1949. Os cidadãos de Israel escolheram uma Assembleia Constituinte de 120 membros, responsável por elaborar uma Constituição. Contudo, uma vez reunida, a Assembleia resolveu mudar seu nome e suas responsabilidades. Virou Knesset, o Parlamento de Israel. A Constituição, todavia, ficou para depois. Um depois que jamais chegou.
Um ano mais tarde, o Knesset aprovou a Resolução Hahari, que conferiu à Comissão de Constituição, Direito e Justiça do Knesset o dever de elaborar uma série de leis básicas que, juntas, formariam a Constituição. Essa compilação, e ulterior aprovação, não aconteceu.
Em 1992, o Knesset aprovou a Lei Básica: Dignidade Humana e Liberdade. A Seção 2 da Lei Básica diz: "2. Não deve haver violação da vida, corpo ou dignidade de qualquer pessoa como tal". A Seção 4 da Lei Básica adiciona: "4. Todas as pessoas têm direito à proteção de sua vida, corpo e dignidade".
Israel, o país do empreendedorismo, da inovação, de maneira inesperada, recebe do Knesset a tecnologia humanista que precisava para fundar a sua mais primordial startup: uma democracia constitucional vinculada à dignidade de sua gente. Essa é a startup de todas as startups. A startup-mãe da nação.
Esse insumo logo foi percebido pela Suprema Corte. Em 1995, num julgamento emblemático (Banco Mizrahi v. The Minister of Finance), mesmo tendo, a Lei Básica: Dignidade Humana e Liberdade, sido aprovada sem um quórum especial, o Tribunal a reconheceu como materialmente constitucional. Qualquer outra lei que a contrarie deve, pois, ser declarada inconstitucional. A decisão correspondeu, para a jurisdição israelense, a um Marbury v. Madson (1803) dos Estados Unidos. Uma revolução sem armas. Nas palavras de Aharon Barak, que presidiu a Suprema Corte por mais de uma década: "Uma revolução constitucional".
Como, ao longo de 45 anos, o Knesset havia aprovado onze Leis Básicas em matérias variadas, então mesmo sem o procedimento formal estipulado pela Resolução Hahari o país passou a ter a sua própria Constituição, formada pelas referidas leis.
A partir daí, a Suprema Corte começou a usar esse fabuloso insumo como matéria-prima de uma robusta produção coletiva de direitos. Em razão do reconhecimento da materialidade constitucional da Lei Básica, direitos variados passaram a ser reconhecidos à luz da dignidade humana: da personalidade, a uma subsistência humana digna, à reputação, à vida familiar, à igualdade, à liberdade de expressão, à liberdade de consciência e religião, à liberdade de movimento, à educação, ao emprego e ao devido processo legal.
Num solo onde uma Constituição não foi plantada nasceram os mais valiosos frutos de uma verdadeira democracia constitucional. Quem poderia imaginar isso?
A Suprema Corte anotou que "a Lei Básica não meramente declara 'políticas' ou 'ideais' (cf. art. 20(1) da Lei Básica da Alemanha). A Lei Básica não meramente delineia 'um plano de operação' ou um 'propósito' para os órgãos do governo (cf. art. 27(2) da Constituição da África do Sul; art. 39 da Constituição da Índia). Ela não meramente oferta um conceito guarda-chuva para guiar a interpretação..., as Seções 2 e 4 da Lei Básica trazem um direito - o direito que garante a dignidade humana. Esse direito impõe aos órgãos do governo o dever de respeitá-los" (s. 11).1 Como Aharon Barak disse: "dignidade humana em Israel não é uma metáfora".
Mas o país vive dos seus paradoxos. O que poderia ser visto como um triunfo coletivo - o reconhecimento da possibilidade de a Suprema Corte declarar leis inconstitucionais - passou a ser enxergado como um atrevimento contra o Knesset.
Em junho de 2000, teve início no Parlamento a tramitação de uma proposta introduzida por Eliezer Cohen (Israel Beytenu Party) criando uma Constituição. A proposta dava ao Knesset o poder de criar um documento constitucional uno e harmônico. Dos 120 membros, 44 apoiaram a proposta. Em novembro, os parlamentares Cohen e Igail Bibi (Partido Nacional Religioso - Mafdal) propuseram um plano complementar para criar uma Corte Constitucional. A proposta foi apoiada por 52 membros, dos 120. Em janeiro de 2002, depois de amargar uma notável oposição, o Knesset rejeitou as propostas.
Não parou por aí. Em 2007, o então Ministro da Justiça propôs uma lei que institucionalizaria o poder de declarar a inconstitucionalidade de leis pela Suprema Corte. Todavia, se a Corte anulasse uma lei, o Knesset poderia reverter essa anulação por uma maioria de 61 membros. A proposta também não vingou.
A Suprema Corte de Israel persiste independente. A Lei Básica: Dignidade Humana e Liberdade também. Diariamente, cidadãos e cidadãs batem às portas do Tribunal vindicando direitos constitucionais. Fazem isso mesmo não havendo uma Constituição formal no país. Elas simplesmente acreditam. Por isso, seguem adiante.
A necessidade do povo gozar direitos constitucionais muitas vezes não é reconhecida em pedaços de papéis. Ela pode não estar escrita. Mas é sentida. Somos seres emocionais. Negligenciar isso é recusar a nossa própria humanidade.
Se, dos penhascos secos da Judeia, o tirocínio humano fez nascer um carpete verdejante de prosperidade tal como montanhas de leite e mel, a decisão da Suprema Corte de Israel, em 1995, reconhecendo sua competência para aferir a constitucionalidade de leis, abriu espaço para o florescimento de uma cultura verdadeira de reconhecimento de direitos essenciais a todas as pessoas.
Isso faz com que o constitucionalismo israelense seja uma genuína demonstração de um feliz acaso. Ninguém poderia imaginar que num país sem uma Constituição nasceria um exuberante campo de estudo sobre a dignidade humana reconhecida como um direito constitucional. Parece um milagre, mas não é. A conquista é fruto da coragem das pessoas que requereram direitos que sentiam possuir. Uma conquista talvez combinada, quem sabe, com um empurrão dos céus.
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1. São muitos os precedentes que reconheceram direitos implícitos nas cláusula geral da dignidade humana. Apenas para ilustrar: HCJ 366/03 Commitment to Peace and Social Justice v. Minister of Finance, IsrLR 335, 347 (Barak J) (2005). CA 294/91, Jerusalem, Chevra Kadisha v. Kestenbaum, IsrSC 46(2) 464, 524 (1992). HCJ 6427/02 The Movement for Quality Government in Israel v. Knesset, IsrSC 61(1) 619, 681 (2006).