A cura do povo cicatriza a nação: A inconstitucionalidade das eleições no Quênia
segunda-feira, 4 de setembro de 2017
Atualizado às 07:53
O modelo triunfante de jurisdição constitucional contemporânea é produto de uma pequena elite das nações. Aqueles que fomentaram guerras, que deram dimensão global à escravidão e que lucraram com a colonização dos países africanos montaram formas de justiça constitucional que têm sido replicadas mundo afora. A primeira, dos Estados Unidos, traz a Suprema Corte. Há a francesa, diversa e de menor apelo. Então, o modelo europeu continental, com destaque para a Alemanha. De repente, nações que impuseram ao mundo crueldades inimagináveis passaram a dar lições de respeito aos direitos fundamentais. Uma grande ironia.
Hoje, lugares reputados por muitos como os mais inóspitos do planeta dão exuberantes demonstrações das virtudes do constitucionalismo. Sexta-feira passada, a Suprema Corte do Quênia declarou a inconstitucionalidade das eleições presidenciais realizadas em agosto desse ano. Novas eleições deverão ocorrer em 60 dias. Foi uma medida que raramente se vê por aí. Precisamos acompanhar, contudo, o seu cumprimento.
Segundo a decisão, a Comissão Eleitoral Independente falhou, negligenciou ou recusou conduzir a eleição presidencial como manda a Constituição. Houve ilegalidades na transmissão de dados de apuração. O fato do responsável pela tecnologia da votação ter sido assassinado uma semana antes das eleições intensificou a desconfiança.
Erros na apuração não são uma exclusividade africana. Nos Estados Unidos, a disputa entre George Bush e Al Gore, no ano 2000, pelos votos da Flórida, terminou na Suprema Corte, a quem compete apontar os erros e corrigi-los. A Corte preferiu tirar um "zerinho ou um" e entregar a George W. Bush a presidência. Aprendemos com a mãe da democracia que ter sido ou não eleito pode ser um detalhe desimportante para se sagrar vitorioso numa disputa eleitoral. Outro paradoxo.
Vale conhecer o contexto no qual a decisão da Suprema Corte do Quênia foi tomada. Em 2002, o país teve a sua mais importante eleição, que alçou ao poder o líder oposicionista Mwai Kibabi da etnia Kikuyu. Raila Odinga, ex-ministro dos Transportes, da etnia Luo, abriu dissidência e se candidatou a presidente no pleito seguinte.
A eleição se deu em dezembro de 2007. As pesquisas mostravam o Movimento Democrático Laranja, liderado por Raila Odinga, à frente do Partido da União Nacional, do presidente Mwai Kibaki.
A expectativa era de que Odinga conquistasse três vezes mais votos para o parlamento do que Kibaki. Segundo Kofi Annan, Nobel da Paz: "Essa expectativa de mudança foi acompanhada não só de uma sensação de direito adquirido, por parte das tribos em desvantagem, como também, no entender delas, de um sentimento de justiça iminente, no qual os recursos apropriados pelos dominadores seriam legitimamente tomados deles. Essa era, particularmente, a esperança dos luos, uma das três maiores tribos, que com frequência tinha sido deixada de fora da hegemonia étnica rotativa da política queniana, que beneficiava principalmente os kikuyus e os kalenjins" (Intervenções: Uma vida de guerra e paz. Companhia das Letras, 2013, p. 228).
No entanto, em 30 de dezembro, depois de atrasos na apuração em regiões nas quais o Partido da União Nacional possuía grande popularidade, uma reviravolta deu a vitória a Kibaki, reeleito por uma larga margem. Aliados de Odinga requereram à Comissão Eleitoral a recontagem dos votos, mas o pedido foi negado. Kofi Annan recorda que "o presidente foi empossado às pressas, durante a noite, em uma cerimônia a que esteve presente um punhado de pessoas".
Rasga o tecido social o fato de grupos injustiçados não terem a chance de ascenderem legitimamente ao poder. A nação explodiu. Milícias étnicas espalharam o terror pelo país, notadamente no Vale do Rift (predominância dos Luo) e no subúrbio de Nairóbi (predominância dos Kikuyu).
Primeiro, os saques aos Kikuyus pelos Luos. Então, "um ciclo ascendente de insegurança e violência, de tribo contra tribo". Kofi Annan diz que "a insegurança conduziu à violência, à brutalidade e, em pouco tempo, ao assassinato em massa de forma sistemática". Na barbárie, "ônibus detidos por gangues armadas com machados que obrigavam os passageiros a exibir seus documentos de identidade. O nome da família e o lugar do nascimento indicavam a que tribo pertencia a pessoa. Se o documento desse a resposta errada, o portador era espancado ou morto". Annan prossegue: "Trinta pessoas tinham sido aprisionadas e mortas numa igreja no Ano-novo. Incendiavam escolas e atacavam aldeias inteiras. Assassinatos e estupros eram praticados contra kikuyus por luos ou kalenjins e vice-versa. Alguns começavam a dizer que os conflitos de tribo contra tribo tinham sido aprofundado demais para que houvesse alguma esperança de detê-los. Os aviões chegavam a Nairóbi completamente vazios, enquanto os veículos que deixavam o país saíam lotados".
O resultado foi perturbador: 2.500 mortos e 250 mil desabrigados. A quantidade de migrações resultantes da crise chegou a 600 mil.
O Quênia estava sendo tragado por um ralo de ódio aberto em seu próprio seio. Foi quando o concerto das nações viu em Kofi Annan, um africano, de Gana, que foi secretário-geral da ONU, a legitimidade para coordenar um processo de paz.
Em 14 de fevereiro de 2008 um acordo foi assinado. Em 4 de março foi criada a Comissão de Inquérito sobre Violência Pós-Eleitoral e a Comissão da Verdade, Justiça e Reconciliação. Também foi criada a Comissão de Coesão e Interação Nacional. Kofi Annan entendeu que "um acordo de poder compartilhado e uma emenda constitucional seria o único caminho para tirar o Quênia daquele atoleiro sangrento".
A Constituição que nasceria, a Katiba, promovera "uma redução progressiva dos poderes do presidente". Ela foi referendada em agosto de 2010. Katiba, na língua suaíli, significa Constituição. O referendo perguntava: "Você aceita a nova Constituição proposta?". 68,55% votaram sim, contra 31,45%, além dos 2,40% dos votos brancos e nulos. Dia 27 de agosto de 2010, a Constituição foi promulgada.
Passados dez anos do massacre, o demônio adormecido despertou: nova fraude eleitoral nas eleições presidenciais. Se, antes, homens fortes tentaram resolver a questão com machados nas mãos, agora, foi essa heroína mansa e generosa, a Katiba, que agiu.
Logo após o anúncio da decisão, o presidente reeleito, Uhuru Kenyatta, disse que acatava o veredicto e pediu que seus apoiadores fizessem o mesmo. As pessoas sentiram os ventos da esperança soprarem a relva de um solo que volta a florir. As diferenças seriam superadas sem que entes queridos tivessem as cabeças cortadas por machados. São os frutos do constitucionalismo. Mas é preciso perseverar para não haver retrocessos.
O Quênia mostra que é capaz de lidar com situações complexas sem se afastar dos caminhos que sua Constituição traçou. Se seguir respeitando o Estado de Direito verá florescer mais liberdade, segurança e um constitucionalismo profundamente transformador.
Em 2012, a Comissão de Implementação da Constituição do Quênia me convidou para ir até o país, no Vale do Rift - onde os conflitos foram mais intensos -, falar na conferência que celebrava cinco anos da Katiba. Discorri sobre o "ativismo judicial das virtudes", quando o Judiciário passa a tomar decisões reforçando os princípios republicanos abandonados pelos políticos. Depois, fui até a sede da Comissão, em Nairóbi, repetir a fala perante os conselheiros.
Estávamos na savana. Do local, a cerca de 7.000 metros, era possível ver as águas do Lago Naivasha, um dos mais belos da África. Também a cratera vulcânica do Monte Longonot e as montanhas de Abedare. A região de safári tem por habitantes leões, rinocerontes, guepardos, hipopótamos, impalas, zebras (inclusive albinas), cervos, vários tipos de antílopes, crocodilos, chacais, hienas, javalis e girafas.
A conferência aconteceu sob a Grande Tenda, no Great Rift Valley Lodge & Golf Resort. É da tradição queniana realizar eventos dessa dimensão em espaços afastados. Em 12 de fevereiro de 2008, por exemplo, Kofi Annan transferiu as reuniões que resultaram na elaboração da Katiba para o Kilanguni Safari Lodge, nas imediações do Parque Nacional Tsavo. O centro dos conflitos, com toda a sua negatividade, foi convertido em positividade e esperança.
O presidente que teve sua reeleição declarada inconstitucional, Uhuru Kenyatta, é filho de Jomo Kenyatta, o fouding father da nação. O Quênia foi colonizado pelo Reino Unido, a partir de 1890. Em 12 de dezembro de 1963, teve sua independência reconhecida. Jomo Kenyatta assumiu como presidente e governou até 1978, quando morreu. Ele dá nome ao aeroporto de Nairóbi, tem uma estátua diante da Suprema Corte, estampa as notas de 100 xelins e dia 20 de outubro é seu dia, feriado nacional.
Hoje, cinco anos depois da conferência, saber da decisão anulando uma eleição presidencial viciada me faz sentir que o constitucionalismo contemporâneo e os princípios que ele exorta são caminhos sem volta. O Quênia ganhou do destino a rara oportunidade de reconstruir o seu passado e pode fazê-lo sem armas nem ódio, mas com a dignidade dos que sabem agir diante dos convites da história. Do coração do continente africano veio uma altiva demonstração de grandeza institucional. É cedo para dizer, mas a reação à decisão leva a crer que o povo curou suas dores e, curando a si, cicatrizou as feridas abertas na alma de uma nação que lhes pertence.
Luminoso o fato de o poder ter sido refreado no país. São sempre os desamparados os primeiros a penarem quando os duelos dos poderosos não encontram limites. É como um provérbio suaíle ensina: "Quando os elefantes brigam quem sofre é a relva".
Suprema Corte do Quênia, que declarou a inconstitucionalidade das eleições presidenciais ocorridas em agosto.
Sob a Grande Tenda, em 2012, na conferência que celebrava cinco anos da Katiba, a Constituição do país.
Os participantes da conferência no Vale do Rift, em 2012, palco dos conflitos mais sangrentos em 2007, quando o país explodiu após uma suspeita de fraude eleitoral. Saul é o segundo da esquerda para a direita.
Na sede da Comissão de Implementação da Constituição, em Nairóbi, falando para os conselheiros.