A disrupção constitucional do Brasil
segunda-feira, 7 de agosto de 2017
Atualizado às 09:48
Conquistas constitucionais tomaram melhor forma com o Iluminismo, movimento que contrapôs várias formas de primitivismo. A Constituição requer, para o seu pleno funcionamento, o cumprimento de acordos a priori, sem os quais a sua implementação jamais se dará. Mesmo com inúmeros comandos dedicados aos direitos e garantias individuais, um projeto consistente de nação exige unidade. Daí se referir ao "povo" enquanto abstração da coletividade, um todo indivisível. Essa acepção colide frontalmente com a ideia de isolamento.
O preâmbulo da Constituição fala em "povo brasileiro", exortando, em seguida, a "harmonia social". Optamos pela solução pacífica das controvérsias. É uma conquista civilizatória. No art. 1o., parágrafo único, diz-se que o poder emana "do povo", do todo. A ideia de federação parte do pressuposto de que todos devemos viver juntos. Por isso, o art. 1o , caput, fala em "união indissolúvel". A forma federativa de Estado é uma cláusula pétrea (art. 60. § 4º, I). Tudo pela unidade enquanto elemento crucial de um projeto de nação.
Cada um de nós tem não só um direito, mas um dever de "cidadania" (art. 1o., II), um dos fundamentos da República. Mas cidadania se associa a deveres com os outros e com a nação. No isolamento, o dever é com o grupo, apenas.
A Constituição adota, como princípio a reger as nossas relações internacionais (art. 4º, IX), a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. Essa oração diz muito. Abraça mais uma conquista civilizatória associada ao Iluminismo. Só prosperaremos se cooperarmos entre nós e com os outros.
Mas o retorno ao isolamento de grupos pode comprometer gravemente as nossas conquistas. Segundo a Constituição, o ensino será ministrado com base na liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber e no pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (art. 206, II e III). O fanatismo político, a propaganda ideológica e a proliferação das superstições erodem esse comando. Num retorno ao isolamento em grupos, nenhum educador será livre. Seus pensamentos serão julgados e, se destoantes dos grupos mais agressivos, condenados. Se o educador, isolado, resistir, ele será destruído. É difícil sobreviver sozinho a investidas de grupos bem organizados e com compromissos claros de lealdade entre seus membros.
Nesse ambiente, as universidades são sempre as primeiras a serem atacadas. Cientistas, pesquisadores e todos aqueles guiados pelo pensamento racional perderão espaço. Com o tempo, serão hostilizados. A conflituosidade será ampliada. A lógica e a argumentação pela razão serão contrapostas por cânticos, mantras, marchas, gritos, invocações ancestrais e violência. Haverá destruição e agressão. Então, muitas universidades entrarão em colapso.
O método cientifico será desacreditado. Professores, pensadores e cientistas serão perseguidos a depender das conclusões de seus trabalhos. Liberdade de expressão só existe na civilização. Fora dela, é uma aspiração infantil. Por isso, num retorno primitivo, o ambiente acadêmico ficará hostil ao dissenso. Comportamentos serão inspirados pela propaganda ideológica, superstições e fanatismo político. Não haverá mais a verdade. Tudo será relativo. Com a destruição dos paradigmas, faltará espaço para o florescimento dos matemáticos, físicos, químicos e engenheiros. As ciências exatas serão abandonadas. O povo verá reduzida a sua capacidade de analisar, planejar e dominar a natureza. Incêndios, enchentes e ventanias matarão pessoas diariamente. Outras morrerão de doenças da idade média cujo combate consiste em higiene e saneamento básico. Estará em risco o art. 218 da Constituição, segundo o qual o Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação. Nada disso floresce no isolamento, pois é preciso cooperação para concretizar esse comando.
Diante da proliferação das tragédias, as superstições terão mais influência sobre as pessoas. Enquanto escolas e universidades entram em colapso, templos são abertos em abundância e suas sedes são cada vez mais faraônicas. Logo os seus rituais, os mais variados, estarão na morada de todas as pessoas, transmitidos em forma de espetáculos públicos de grande adesão social. A cada dia eles se tornarão mais poderosos, reclamando mais exceções das leis e contando com a proteção das autoridades. Na prática, nos tornaremos um estado de superstições, ao contrário do que dispõe a Constituição. A ética médica e o progresso da ciência serão desafiados frequentemente.
O retorno ao primitivismo torna vulnerável todos aqueles que não encontram um grupo para protegê-los. Argumentos racionais serão tomados como ofensas ao grupo, reclamando solidariedade imediata dos seus membros. O espírito coletivo e o dever de lealdade podem resultar em reações desproporcionais. Haverá revanche e nenhum perdão. As pessoas alheias aos grupos passam a ser presas fáceis. Atacadas, não encontram grupos que a elas devam lealdade. Sozinhas, ficam entregues ao barbarismo. Não durarão muito.
A razão, a ciência e o talento humano serão desprezados e, no limite, combatidos. Com a perda dos padrões artísticos, o bizarro se sobressairá. Serão cada vez mais reduzidos os incentivos ao Mecenato, uma prática do Renascimento. Sem suporte financeiro, diante dos conflitos e em razão do recrudescimento da estupidez, poucos conseguirão se dedicar à reflexão e dar vazão a seus talentos. Gênios serão abandonados. Em seu lugar, virá o tolo. Não tardará para que uma juventude sem trabalho aplauda exibições de ânus ou jatos de urina. É a era escatológica. Os novos intelectuais se reunirão, em pequenas rodas, para saudarem montes de fezes. Isolados em seus grupos, excluirão aqueles que não se associarem a seus caprichos. Haverá mais disrupção.
Para evitar conflitos por território, o art. 5o. XXII, da Constituição garante o direito de propriedade. Num retorno ao primitivismo, contudo, grupos expansionistas passarão a invadir territórios. Com o medo e a quebra de confiança recíproca, mais grupos se isolarão e passarão a fazer Justiça com as próprias mãos. Ficará difícil haver um controle estatal sobre os riscos sofridos por tantos grupos numa terra tão vasta. Membros destruirão a ideia de propriedade privada diariamente, à luz do dia, diante de todos. Haverá saques e pilhagens. Quem não se associar a algum grupo não terá a menor chance de se proteger. Milícias e grupos armados surgirão. Guerreiros mercenários encontrarão o seu espaço. Nesse duelo tribal, a selvageria dará as cartas.
Um retorno primitivo combate toda e qualquer forma de unidade. Isso provoca novas formas de disrupção. Exercer o poder uno e indivisível se torna difícil. O Estado perde a capacidade de dirigir comportamentos. Com o esvaziamento do monopólio da força, práticas de linchamento serão frequentes. Grupos passarão a assisti-los e a divulga-los. Eles capturarão não membros e aplicarão suas próprias leis sobre eles. A sociedade deixará de ter empatia com os capturados. Em seguida, celebrará a dor alheia, inserindo o sadismo na estrutura primitiva de vida fora da Constituição. Sem unidade, acostumados com os conflitos, e vivendo uma vida que não terá qualquer valor, abrirá mão da condição humana. A dignidade será uma abstração romântica.
O isolamento em grupos tira da sociedade moderna uma das suas maiores conquistas: a habilidade em cooperar. Perdemos escala e aumentamos a ineficiência. Passaremos mais tempo em conflito do que produzindo. Assim, deixaremos de ter competitividade. Ineficientes e pouco competitivos, virá a escassez. Com ela, o desemprego. Então, o aumento da miséria. Em resposta, mais isolamento. Não tardará para que mesmo os membros desses grupos sejam abandonados pelos seus iguais. É a ruína do progresso que alcançamos.
Diante desse quadro, que mesmo hipotético, soa real, a única forma de superar o que parece ser um cenário de desagregação é resgatando a unidade e os deveres de cidadania consagrados na Constituição. Reafirmando a nossa identidade coletiva e, em substituição ao que parece ser um retorno a um primitivo isolamento em grupos, retomaremos a vivência enquanto "povo". Com a cooperação poderemos ultrapassar esses conflitos insistentes. Reside na Constituição, portanto, a chance de resgatarmos a liga coletiva que parece ter se perdido. É preciso exercitar logo a unidade e a capacidade de cooperar, sob pena de assistirmos a disrupção constitucional do Brasil e de sua ideia de "povo brasileiro".