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Quando o Ministério Público muda o mundo

segunda-feira, 26 de junho de 2017

Atualizado às 08:51

No fundo, todos sabíamos que não iria demorar. A Suprema Corte brasileira começa a ser instada a definir os contornos constitucionais dos vários e novos instrumentos que têm sido utilizados pela operação Lava Jato. Semana passada, deu o primeiro passo com a petição 7074, sobre os limites de atuação do ministro-relator na homologação de acordos de colaboração premiada. Pelo andar da carruagem, não tardará para surgirem discussões também sobre o papel do Ministério Público, especialmente nas colaborações premiadas e na celebração de acordos de leniência. É difícil imaginar que não aparecerá alguém, em algum momento, questionando as atribuições do Parquet perante o Supremo Tribunal Federal.

Nesse particular, vale a lembrança de que, em 2015, reafirmando entendimento anterior, o STF fixou tese com repercussão geral entendendo decorrer do próprio texto constitucional os poderes de investigação do Ministério Público (RE 593.727, min. Gilmar Mendes, Tema 184). O racional do precedente pode inspirar respostas a eventuais questionamentos futuros. Por exemplo: Qual é o papel do Ministério Público nos acordos de leniência à luz da própria Constituição, e não apenas da Lei Anticorrupção (lei 12.846/2013)? Parece que as idas e vindas da legislação, especialmente a Medida Provisória 703/2015, inserindo e retirando a participação dessa instituição nos acordos, seriam indiferentes, pois residiria, na própria Constituição, e somente nela, a resposta a esse questionamento. É um assunto fascinante.

Mas para falar das competências do Ministério Público, vale muito, considerando-se que ele tem encampado pautas globais, fazer uma breve reflexão sobre um país cujos desafios sociais, de combate à corrupção e de consolidação democrática, se aproximam dos nossos: a África do Sul.

Nesse país, quem faz as vezes de Ministério Público é a Public Protector. A instituição tem expressa previsão constitucional. O capítulo nove da Constituição sul-africana é destinado às "instituições estatais de suporte à democracia constitucional". A Public Protector é a primeira delas. Além do poder de investigação expressamente conferido (art. 182, 'a'), assegura-se a competência para divulgar, após investigações, relatórios oficiais sobre a conduta de agentes públicos e, ainda, "tomar as medidas corretivas apropriadas". Além disso, confere "poderes adicionais", nos termos de lei nacional.

Não há como falar dessa instituição sem falar de Thuli Madonsela. Essa mulher, negra, viúva precoce, que criou sozinha duas crianças, esteve à frente da Public Protector até outubro de 2016. Thuli cresceu em Soweto, a township (algo próximo às nossas favelas) onde morou Nelson Mandela, nos arredores de Johanesburgo. Ela fazia parte do partido de Mandela, o African National Congress (ANC), e ajudou no projeto final de elaboração da Constituição do país. Em 2009, o presidente da República, Jacob Zuma, também do ANC, a apontou para um mandato de sete anos à frente da Public Protector. O nome foi aprovado por unanimidade pelo Parlamento.

Thuli desempenhava plenamente suas funções até que, em 2014, ela divulgou um relatório oficial anunciando que, segundo investigações, o presidente Jacob Zuma, o mesmo que a indicara, havia utilizado, irregularmente, recursos públicos para reformar sua casa de campo, se valendo de uma lei que permitia apenas a inclusão de itens de segurança. Ao contrário de cumprir a lei, o Presidente incrementou o seu galinheiro, fez uma piscina e inseriu, na casa, um cinema, dentre outras malfeitorias. "Segurança no conforto" foi o nome do relatório encaminhado ao próprio presidente e ao Parlamento, determinando a adoção de uma série de medidas, o que incluía a devolução do dinheiro. A África do Sul ainda é um dos países mais socialmente desiguais do mundo. Saber que o presidente da República usa recursos públicos para incrementar sua casa de campo é algo que destrói a esperança de qualquer pessoa.

Foi a partir desse momento que Thuli se viu obrigada a triunfar sobre o medo. Como dizia Nelson Mandela, coragem não é a ausência de medo, mas o triunfo sobre ele. Com a divulgação do relatório, o mundo desabou sobre a sua cabeça. Membros do Parlamento, aliados do presidente, imediatamente sugeriram reformas quanto às competências constitucionais da Public Protector. Diante da forte resistência popular, e do próprio Judiciário, a ideia não vingou. Tentando desqualificar Thuli, o ministro da Defesa e dos Veteranos Militares afirmou que ela trabalhava para a CIA. Depois, pressionado, se retratou.

Enquanto o ambiente político reagia colérico, o presidente Jacob Zuma seguia omisso quanto às medidas determinadas. Paralelamente, ele articulou para que fosse instalada, no Parlamento, uma Comissão para examinar o relatório. Formada por aliados, a Comissão centrava fogo em Thuli. Dizia que ela agia com fins políticos, que era populista e que buscava projeção pessoal. O tempo foi passando sem que o Parlamento, nem o presidente, adotassem as medidas. Foi quando dois partidos de oposição, o direitista Democratic Alliance (DA) e o de extrema-esquerda Economic Freedom Fighters (EFF), decidiram fazer algo. Eles bateram às portas da Corte Constitucional com uma engenhosa interpretação da Constituição.

Além da determinação de que cabe ao Parlamento fiscalizar o presidente da República, consta, no art. 83, 'b', do texto constitucional, que "o presidente deve preservar, defender e respeitar a Constituição enquanto lei suprema da República". Para os partidos de oposição, Jacob Zuma havia violado esse dispositivo ao se omitir na adoção das medidas determinadas pela Public Protector. Além disso, o próprio Parlamento, pela sua Presidente, havia violado a Constituição ao deixar de fiscalizar o Poder Executivo. Contrapondo esse raciocínio, estavam os Poderes Executivo e Legislativo, sustentando que a Constituição não determinava que se desse cumprimento aos relatórios. Eles não seriam vinculantes. Assim, sendo meras "recomendações", poderiam ser cumpridos ou não. Tanto fazia. Um argumento patético.

A Corte aceitou apreciar o caso e, em 31 de março de 2016, julgou o "Nkandla's case". Nkandla é o nome da fazenda onde fica a dita casa de campo do presidente Zuma.

Poucas vezes em sua história a Corte Constitucional viu algo como aquilo. Uma multidão cercava o Tribunal. A imprensa estava presente desde cedo. Militantes dos partidos de oposição se aglomeravam. Os do EFF, com suas roupas vermelhas e boinas sobre a cabeça, mais barulhentos. Os do DA, vestindo azul, mais silenciosos. Dentro da Corte, os ministros e ministras perceberam que aquele dia era um daqueles raros na história do país. Vinte anos depois da promulgação da Constituição, um presidente da República legitimamente eleito era acusado pelo uso indevido de recursos públicos e poderia, verdadeiramente, ser condenado. Além disso, estava em xeque as competências da Public Protector, uma instituição que abria o honroso capítulo nove da Constituição.

Dentro de um plenário lotado, Thuli sentou-se à primeira fileira. Discreta, ela mostrava sutilmente ao advogado papéis que poderiam ajudar na sustentação oral. Estava elegante, sóbria, séria. Sabia que o futuro da instituição que chefiava corria perigo. Era o último ano do seu mandato. Não queria deixar, como legado, uma derrota massacrante como a que o presidente Jacob Zuma, e seus aliados, queriam lhe impor. Mesmo assim, não parecia desesperada. Tinha a calma dos justos. Estava serena.

Durante o dia inteiro advogados se revezaram na tribuna expondo suas defesas e, na sequência, sendo interpelados pelos juízes e juízas da Corte. O patrono da Public Protector sustentava que a Constituição, ao determinar que a instituição "adote as medidas corretivas apropriadas" e, além disso, ao dispor que haviam "funções e poderes adicionais, nos termos de lei nacional", estava, em verdade, abrindo espaço para o reconhecimento do caráter vinculante dos relatórios oficiais preparados após investigações de órgãos ou agentes públicos. Seria uma competência constitucional implicitamente reconhecida. Os relatórios, portanto, vinculavam a Administração, não podendo ser descumpridos. Por isso, falharam tanto o presidente da República como a presidente do Parlamento. Do outro lado, tanto a patrona do Parlamento, quanto o do presidente Jacob Zuma, insistiam que a vinculação não estava explícita na Constituição, razão pela qual nenhum dos dois poderes poderia ser responsabilizado. Assim, nem o presidente da República havia descumprido seu compromisso constitucional de preservar, defender e respeitar a Constituição enquanto lei suprema da República, nem a presidente do Parlamento falhou em não fiscalizar, nem punir, o Presidente.

Depois da deliberação secreta, os ministros e ministras voltaram para anunciar a decisão. Do lado de fora, a multidão dançava e repetia: "Devolva o dinheiro! Devolva o dinheiro!". Como o plenário da Corte fica abaixo da rua onde estavam os manifestantes, todos ali dentro ouviam as músicas cantadas e sentiam a força dos pés pisando o chão e impondo pressão à estrutura do recinto. Vermelhos e azuis, EFF e DA, militantes de ideias políticas tão diversas, estavam unidos em sua diversidade, dançando e cantando juntos, guiados pela necessidade mútua de reafirmação da Constituição, um documento cujo esvaziamento acabaria com a esperanças de ambos. Ali não havia ideologia de direita, nem de esquerda. Tudo o que importava, naquele momento, era a certeza de que uma instituição fundamental ao país seria preservada. No limite, eles estavam investindo imensa energia na preservação da jovial democracia sul-africana.

O presidente da Corte, o chief justice Mogoeng Mogoeng, depois que os outros dez juízes e juízas se sentaram, começou a ler a histórica decisão. Num dado momento, elevou a voz e, eloquentemente, em seu sotaque africano, afirmou: "Nossa democracia constitucional só é verdadeiramente fortalecida quando: há tolerância zero com a cultura da impunidade; as perspectivas de boa-governança são devidamente reforçadas por uma responsabilidade redobrada; há observância ao Estado de Direito; e se respeita todos os aspectos da nossa Constituição enquanto lei suprema da República. No contexto dos poderes de reparação da Public Protector, ela deve ter os recursos e as capacidades necessárias para efetivamente executar seu mandato, para que possa fortalecer a nossa democracia constitucional".

Por unanimidade, a Corte Constitucional definiu que a Constituição assegurava, implicitamente, à Public Protector, o caráter vinculante de seus relatórios frutos de investigações feitas sobre órgão e agentes públicos. Essa conclusão decorria, além da própria vocação da instituição ao combate à corrupção, da leitura combinada dos dispositivos que tanto lhes dava "poderes adicionais" compatíveis com suas competências como também impunham "tomar as medidas corretivas apropriadas". O caráter vinculante vinha da própria Constituição, sendo desnecessário a edição de lei para tal. Além disso, a Corte reconheceu a falta tanto do presidente da República como da presidente do Parlamento. Ao final, decidiu que, sim, o Presidente deveria devolver o valor gasto com a reforma da casa. A decisão inspirou orgulho e dignidade em todos que por ela aguardavam. Simbolizava a decência, a integridade e a correção diante do assédio político intenso promovido pelo Presidente e seus apoiadores. Prevaleceu o raciocínio que justificou, no Brasil, o reconhecimento dos poderes de investigação do Ministério Público, uma lógica interpretativa que encontra sintonia em outras jurisdições no mundo.

Os militantes, as autoridades, os jornalistas, os curiosos e as pessoas em geral foram, pouco a pouco, partindo, descendo a rua principal, depois da proclamação do julgamento. Diante do prédio da Corte Constitucional há um monumento no qual queima initerruptamente uma chama de fogo. Chama-se "chama da democracia" e foi construído no aniversário de 15 anos da Constituição, para inspirar nas pessoas lembranças do passado e sonhos para o futuro. Abaixo da chama há, gravado numa pedra, uma inscrição sobre os direitos fundamentais do país. A "chama da democracia", em sua solidão consciente, depois que todos partiram, e o sol se pôs, seguiu queimando.

Thuli Madonsela, aquela mulher distinta que aceitou o convite da coragem quando inimigos cruéis tentavam destruí-la, havia ganhado uma briga desigual. Sua atitude deu honra e reconhecimento à instituição por ela chefiada. Abriu espaço para que as futuras gerações tenham um exemplo a seguir. Ao cumprir com o seu papel, Thuli não mudou apenas a si, nem à instituição que liderava. Suas lições de equilíbrio, coragem e integridade tocaram as pessoas. Quando conseguimos tocar as pessoas, acreditem, mudamos o mundo. E isso basta.

No Brasil, o art. 127, caput, da Constituição, confere ao Ministério Público o caráter de "instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis". O art. 129, II, impõe-lhe "zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia". O inciso IX do mesmo dispositivo aponta como função institucional "exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade" (comando que se repete no art. 6o, XIV, da LC 75/93).

São dispositivos parecidos com os da Constituição da África do Sul, relativos à Public Protector, cuja interpretação, pela Corte Constitucional, conferiu à instituição o caráter vinculante de seus relatórios conclusivos de investigações de órgãos e agentes públicos. Foi interpretando também esses dispositivos que o STF reconheceu os poderes de investigação do Ministério Público.

O combate à corrupção e a busca por uma boa-governança são pautas globais. Nações em todo o mundo têm tentado incrementar as instituições cuja vocação é preservar a coisa pública. Da leitura da Constituição, novas competências têm aparecido. No Brasil, o poder investigativo. Na África do Sul, o caráter vinculante dos relatórios conclusivos de investigações, com a determinação da adoção de medidas. Não tardará para que, no nosso país, diante do avanço da operação Lava Jato, novas discussões apareçam, como, por exemplo, a relativa à possibilidade de o Ministério Público firmar acordos de leniência. A resposta, como temos visto, está, antes de tudo, na própria Constituição. E ela, ao seu tempo e modo, virá.