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Conversa Constitucional nº 31

segunda-feira, 29 de maio de 2017

Atualizado às 08:52

PEC das Diretas pode tirar a locomotiva dos trilhos

Parece florescer na mente de figuras respeitáveis da política brasileira um desejo talvez pouco refletido de substituir o modelo atual de Estado constitucional - cuja essência reside na atuação contramajoritária do Judiciário viabilizando a proteção de minorias -, por uma democracia popular segundo a qual, pelo "poder ao povo", a Constituição Federal passaria, simbolicamente, a dever obediência à vontade de multidões aglomeradas por aí, com seus discursos, gritos de guerra, cantos e marchas.

Tramitam na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, propostas de emenda à Constituição desfigurando a forma atual pela qual se elege o presidente da República em caso de vacância do posto nos dois últimos anos do mandato. Atualmente, a eleição é indireta, ou seja, os eleitores são os parlamentares, segundo o § 1º do art. 81 da Constituição, em harmonia com o parágrafo único do art. 1º, que diz que todo o poder emana do povo, que o exerce, também, pelos representantes eleitos.

A PEC 227/2016 (deputado Miro Teixeira), que tramita na Câmara, e a PEC 67/2016 (senador Antônio Reguffe), em discussão no Senado, reduzem, em marcos temporais diversos, o espaço para a realização dessas eleições excepcionais indiretas, convertendo-as em diretas, ou seja, com a participação de todo o eleitorado.

As PEC's pretendem barrar os efeitos de eventual declaração de inconstitucionalidade dos § 3º e 4º, do art. 224 do Código Eleitoral, que, na redação da lei 13.165/2015, trouxe novo rito para preenchimento da vacância presidencial ocorrida nos dois últimos anos do mandato. Esses dispositivos estão sendo questionados no STF, por legitimados diversos, em aspectos diferentes, nas ações diretas de inconstitucionalidade 5525 e 5619, ambas de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso já liberadas para inclusão em pauta de julgamento.

O comando das eleições indiretas excepcionais acompanha o nosso constitucionalismo desde a Constituição de 1934 (art. 52, §3º), passando pelas de 1937 (art. 82) e 1946 (art. 79, §2º). A Constituição de 1967, em seu art. 76, previa eleições indiretas pelo Colégio Eleitoral. São quase cem anos de prestígio institucional conferido ao Congresso Nacional para apontar, excepcionalissimamente, aqueles que concluirão mandatos interrompidos pelas armadilhas da história.

Por tudo o que consta nas justificativas das PEC's, e do que se conclui a partir dos debates que lhe dão suporte, fica a impressão de que o recente processo de impeachment deixou cicatrizes dolorosas que não serão curadas sem o empenho de toda a nação. Para muitos que dão suporte às eleições diretas, teria sido, o recente impeachment, um processo de tal forma injusto, que seus supostos artífices não poderiam ficar impunes. Talvez, eleições diretas em caso de vacância presidencial seja um acerto de contas entre os que se sentem vítimas e seus supostos algozes.

Sempre que pessoas, machucadas pelo o que julgam ser trapaças políticas, anunciam um desejo de revanche, vem à mente Nelson Mandela e sua sabedoria em não deixar a pulsão da vingança ganhar curso entre a sua gente. "Nós podemos ter prosperidade ou nós podemos ter vingança. Mas não podemos ter os dois. Vamos ter de escolher"1, dizia ele durante as negociações que asseguraram à democratização do país e a superação do apartheid. Pura sabedoria.

Potenciais traições que não raramente contaminam a democracia não devem servir de combustível para incendiar o constitucionalismo. Na Idade Antiga, o ditador Júlio César, no Senado Romano, levou 23 facadas cravadas por sessenta senadores. Isso mostra que nenhum governante está imune a conspirações. Aos que se sentem vítimas de injustiças, é preciso reagir com espírito elevado e de tal modo que não se mire a Constituição para meter nela o que se supõe ser uma bala de prata.

Vale ceder espaço à razão. Quando chamado à responsabilidade de decidir acerca do preenchimento da vacância do posto do chefe do Poder Executivo num Estado, em 1962, o ministro Victor Nunes Leal, em voto vencido no STF, anotou: "Não sinto, no caso, qualquer emoção especial, porque suponho que não está envolvida neste processo a salus populi. É uma briga de políticos, em que a salvação pública não está em jogo". (Rp 515, Pleno, DJ 9.8.1962). Um "ministro-raiz" ou, usando uma expressão que é do ministro Marco Aurélio, "da velha guarda".

Essa serenidade ganha relevo ao percebermos que, em muitos países da América Latina, e mesmo no Brasil, alterar as formas pelas quais políticos são eleitos, especialmente o presidente da República, são decisões que não raramente anunciam precipícios a partir de onde apenas os inocentes serão arremessados.

Além disso, é preciso ter a consciência de que suprimir competências do Congresso Nacional ao argumento de que não se pode confiar nessa Casa, pode ser perigoso. Trechos de um documento histórico que governou um povo por décadas ajuda a entender a afirmação. "A Assembleia Parlamentar é uma representação enganadora do povo e os regimes parlamentares constituem uma solução enganadora do problema da democracia". Em seguida: "A Assembleia Parlamentar apresenta-se fundamentalmente, como representante do povo, mas esse fundamento, em si, não é democrático, porque a democracia significa o poder do povo não o poder de um substituto". Ao final, uma oração parecida com as trazidas nas justificativas das PECs 227 e 67: "O poder deve ser inteiramente o do povo".

Essas são passagens do Livro Verde, que serviu como base do regime de Muammar Kadhafi, por quase quarenta anos, na Líbia. O "Cachorro-louco" terminou arrancado pelos cabelos de um buraco e morto, entre tiros, chutes, cuspidas, socos e coronhadas, pelo mesmo povo que ele mentirosamente disse defender. É a revolta absoluta do povo contra o regime absoluto de um tirano. "Parece natural que uma revolução seja predeterminada pelo tipo de governo que ela derruba; quanto mais absoluto for o governante, mais absoluta será a revolução que vem a substituí-lo"2, já explicava, profeticamente, a extraordinária Hannah Arendt.

Se a lógica de Hannah Arendt estiver correta, aqueles que se julgam vítimas de um golpe, reagirão contra os que reputam golpistas, promovendo novos golpes, em um acerto de contas sem fim. Se for isso mesmo, acreditem, estamos todos condenados. Enquanto a peleja não acaba, a nossa juventude busca formas de construir a nova vida longe daqui. Ou, então, segue desesperançosa. Isso, quando não adere aos desejos de revanche. Esses meninos e meninas não merecem isso.

Não se quer, com as menções ao Livro Verde, estereotipar os apoiadores das eleições diretas em caso de vacância presidencial. São irmãos e irmãs que têm investido energia em buscar alternativas a tudo o que temos visto no país, um país, frise-se, que pertence a todos nós. A apresentação das propostas é legítima e o debate em torno das PECs 227 e 67 tem sido de bom nível. A menção apenas mostra os riscos do raciocínio segundo o qual o Congresso é inconfiável e o povo deve se substituir à Constituição. Essa conclusão coloca o nosso futuro em risco. Isso é preocupante, porque, como sabemos, o futuro é onde todos nós passaremos o resto de nossas vidas.

Além disso, está-se privando os próximos parlamentares de uma competência que há muitas décadas lhes foi dada. A esse respeito, a voz influente de H. L. A. Hart diz: "o Parlamento não pode, mediante lei por ele editada, subtrair irrevogavelmente nenhum tópico do âmbito da atividade legislativa futura do próprio Parlamento"3.

O Congresso Nacional pode muito mais do que apontar os eleitos em um "mandato-tampão". Ele participa da declaração de guerra e da celebração de paz. Isso, por meio de seus membros, senadores e deputados. Confiar, a esse corpo eleito, a missão de eleger aqueles que conduzirão o país numa situação excepcional não é indigno à democracia. Essa é uma conclusão a que se chega também por Ronald Dworkin, para quem "nenhuma pessoa ou grupo sofre suspeita de indignidade quando uma decisão importante é atribuída a um Parlamento eleito em vez de ser deixada a cargo do povo em geral num referendo. Se essa decisão é uma negação parcial do direito de sufrágio, ela o nega igualmente a todos os grupos e pessoas não eleitos"4.

Também não é tão convincente o argumento de que a Constituição precisa ser mudada, e o Congresso necessita perder uma de suas mais nobres competências, pelo fato de vivermos tempos de sopapos políticos. Moisés Naím lembra que a Holanda passou quatro meses sem governo em 2010. A Bélgica, em 1988, demorou 150 dias para ver seus políticos formarem uma coalização capaz de governar. Em 2007-2008, por tensões entre as regiões dos flamengos, de fala holandesa, e dos valões, de fala francesa, o país ficou nove meses e meio sem governo. Em fevereiro de 2011, a Bélgica superou o Camboja sendo o país a passar mais tempo sem governo no mundo. Em 6 de dezembro de 2011, após 541 dias, "foi empossado um novo primeiro-ministro"5. Alguém dirá que são, Holanda e Bélgica, "Repúblicas de Bananas" pelo fato de terem, em sua história recente, episódios de instabilidade política?

Por fim, as eleições indiretas não têm espantado o Judiciário. Em 2009, julgando o RCED 698, o TSE decretou a perda de mandato do governador de Tocantins e de seu Vice, determinando a realização de eleição indireta pela Assembleia Legislativa. No mesmo ano, o STF, apreciando a ADI 4298 MC/TO, examinou a lei 2.154/2009, do Tocantins, que previa a eleição excepcional indireta. Reputando-a constitucional, o ministro Cezar Peluso, relator, anotou: "a própria regra da eleição indireta, no âmbito federal, traz em si mesma, na ratio iuris, a demonstração de sua razoabilidade e proporcionalidade, enquanto constitui sensata resposta normativo-constitucional às demandas de uma excepcional conjuntura que, por seu decisivo ingrediente temporal, desaconselharia realização de eleição direta, com todos os seus pesados e intuitivos custos ao aparato administrativo e à própria sociedade".

Um ano antes, ao julgar a ADI 2709, a Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade da Emenda Constitucional 28, que alterou o § 2º do art. 79 da Constituição de Sergipe, por suprimir a eleição indireta para governador e Vice, realizada pela Assembleia em caso de vacância nos dois últimos anos do mandato.

Em 2001, ao apreciar a ADI 1057 MC/BA, analisando a Lei 6.571/94, da Bahia, acerca da mesma hipótese, o STF definiu, preliminarmente, tanto que as condições de elegibilidade (CF, art. 14, § 3º) e as hipóteses de inelegibilidade (CF, art. 14, § 4º a 8º), inclusive aquelas decorrentes de legislação complementar (CF, art. 14, § 9º), aplicam-se à eleição indireta. Também que a votação seria aberta.

Faz sentido essa deferência judicial. Trata-se, inclusive, de uma postura presente em outros lugares do mundo. Aharon Barak, que foi juiz da Corte Constitucional de Israel, anota: "Sem a regra da maioria, como refletido no Poder Legislativo, não há democracia. Como juízes e juristas, muitas vezes esquecemos este princípio fundamental. (...) Minar o Poder Legislativo prejudica a democracia"6.

De fato, é difícil imaginar Cortes Supremas, em Estados constitucionais contemporâneos, retrocedendo rumo às democracias populares do passado, onde, sob a invocação de "poder ao povo", Constituições nasciam para ser violadas. Numa democracia constitucional, o povo é o poder desde que em harmonia com a Constituição. É, como Peter Häberle fala, a substituição da velha ideia de "soberania popular" pelo conceito atual de "soberania da Constituição"7.

Em suma, a locomotiva brasileira está andando. Há trilhos obstruídos, mas muita gente de boa-fé tem tentado arrumá-los. Não é uma viagem fácil, como jamais o é para os que são pioneiros. Vez ou outra há sopapos e eles nos assustam, é verdade. Até nos machucam. Mas isso é coisa de quem está tentando ser dono do próprio destino e, com a sua gente, realizar os remendos que esses trilhos, e essa locomotiva, precisam.

Se a viagem ainda está sendo dura - e eu acho que está - serve de alento saber que, se fizermos a nossa parte, as futuras gerações gozarão de mais conforto. Eles passarão menos apertos e irão encarar poucos solavancos.

A Constituição Federal de 1988 traçou um curso, lançou as regras e apontou as exceções. Não tem mistério. Agora, é se segurar firme, e seguir a marcha. Pode até ter alguma emoção, e deve ter, mas, no final, tudo vai dar certo.

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1 Os elementos da justiça. Tradução de William Lagos; revisão da tradução Aníbal Mari. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 322.

2 Sobre a revolução. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 205.

3 O conceito de direito. Pós-escrito organizado por Penelope A. Bulloch e Joseph Raz; tradução de Antônio de Oliveira Sette-Câmara; revisão da tradução Marcelo Brandão Cipolla; revisão-técnica Luiz Vergílio Dalla-Rosa. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. p. 194.

4 A Raposa e o Porco-Espinho: Justiça e Valor. Tradução Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014, p. 601.

5 O Fim do Poder. Tradução Luis Reyes Gil. São Paulo: Leya, 2013. p. 133.

6 The judge in a democracy. Princeton University Press, 2017, p. 226.

7 Conversas Acadêmicas com Peter Häberle. Organizador Diego Valadés, traduzido do espanhol por Carlos dos Santos Almeida. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 4. Entrevista de César Landa.