O papel constitucional da polícia em tempos de pandemia
segunda-feira, 31 de agosto de 2020
Atualizado às 07:19
A Constituição Federal de 1988 tem por uma de suas características ser um conjunto amplo de normas que asseguram direitos fundamentais e regulam as principais estruturas de organização da República Federativa do Brasil.
No entanto, no que diz respeito à segurança pública, em si, e aos órgãos incumbidos de sua tutela, essa mesma Constituição Federal diz pouco. Por isso, os mais de trinta anos de vigência da constituição cidadã não são suficientes para sanar questões que ainda hoje se mostram tão importantes quanto polêmicas, mostrando-se ainda nebulosa a delimitação de fronteiras juridicamente seguras de atuação dos órgãos policiais.
Certo é que a segurança é um direito fundamental, previsto no caput do art. 5º da Constituição Federal, que, ao longo de seus incisos, traz um rol exemplificativo de direitos e garantias do cidadão. Ainda de acordo com o texto constitucional, o art. 144 trata da segurança pública como um direito e responsabilidade de todos voltado à preservação da ordem pública e da incolumidade da pessoa e do patrimônio, bem como elenca os órgãos incumbidos de tal tutela.
A ordem pública pode ser conceituada como o normal, previsível e regular funcionamento das instituições públicas e privadas, bem como dos comportamentos dos indivíduos dentro de um Estado Democrático. Incolumidade, por sua vez, significa isenção de perigo, sendo incólume aquilo ou alguém que não corre risco.
Conforme se verifica pelo teor do art. 144, interpretado conjuntamente com o caput do art. 5º da Constituição Federal, a segurança pública é um direito instrumental. Isso porque, trata-se de um direito que assegura o exercício e o gozo de outros direitos fundamentais, previstos ou não expressamente no texto constitucional. A título exemplificativo, seria impossível o pleno gozo do direito à vida, liberdade, patrimônio e tantos outros oriundos do texto constitucional, caso estiverem em constante risco de violação, ante uma ineficiência do sistema de segurança pública e dos órgãos policiais incumbidos de sua tutela.
Da leitura conjunta do art. 5º e do art. 144 da Constituição Federal, a primeira premissa que devemos ter como norte é que, ao contrário do ideário popular, a razão de existir das polícias públicas gravita em torno da proteção de direitos, não de um famigerado "combate" a delinquentes. O conflito entre o direito de punir estatal e a liberdade de quem violou eventual lei penal é apenas uma consequência (e não causa) do papel protetivo da segurança pública, efetivado por meio da atividade policial.
Atualmente, com a pandemia do novo coronavírus (Covid-19), se torna ainda mais relevante a proteção do direito fundamental à saúde e a avaliação do papel da atividade de segurança pública, uma vez que, obviamente, impedir a proliferação do vírus é a principal estratégia na preservação da incolumidade das pessoas. Soma-se a isso o fato de o direito penal apresentar especial preocupação com a proteção da saúde pública, criminalizando algumas condutas que colocam em risco tal bem jurídico tutelado.
Desta forma, a pandemia do novo coronavírus não se apresenta apenas como fator de crise econômica e do sistema de saúde pública, mas também se mostra como fonte de condutas delitivas e consequente aumento dos índices criminais, seja por meio de infrações penais que ofendem diretamente a saúde pública, seja por delitos que ofendem outros bens jurídicos, mas que apresentaram aumento após o isolamento social imposto pelo Covid-19.
A título de exemplo de crime contra a saúde pública pode ser citado o delito de infração de medida sanitária preventiva previsto no art. 268 do Código Penal, que pune aquele que descumprir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa. De antemão vale adiantar que o STF decidiu em caráter cautelar que, tanto a União, quanto os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, têm competência comum para estabelecer normas de prevenção na proteção à saúde pública1. Portanto, atendendo ao princípio da legalidade e considerando estarmos diante de norma penal em branco, desde que editadas leis ou atos normativos que passem pelo crivo de constitucionalidade e legalidade, estabelecendo e descrevendo quais as medidas preventivas a serem tomadas diante da pandemia - seja por uso de máscaras em locais públicos, seja restringindo a circulação de pessoas em determinados lugares ou mesmo a abertura de estabelecimentos comerciais - o descumprimento de tais normas pode ensejar a incidência do delito previsto no art. 268 do Código Penal, merecendo, portanto, atuação dos órgãos de segurança pública tanto no aspecto de prevenção quanto de apuração e repressão2.
Outro aspecto que merece ser observado é a possível ocorrência de outros crimes, não necessariamente em detrimento da saúde pública, mas que podem vir a surgir tanto em decorrência de abordagens policiais na fiscalização do cumprimento de medidas sanitárias, quanto pelo impacto psicológico das medidas de isolamento ou confinamento social. Exemplos disso podem se verificar em condutas que configuram o crime de desobediência3 ou mesmo do aumento considerável de delitos cometidos no âmbito de violência doméstica, que ensejou inclusive a edição da lei Federal 14.022/2020, estabelecendo medidas preventivas e de enfrentamento de delitos cometidos contra crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência durante a pandemia da Covid-19. O art. 3º desta mesma lei, inclusive, afirma o caráter essencial dos serviços públicos e atividades essenciais de atividades relacionadas ao atendimento a mulheres em situação de violência doméstica e familiar, nos termos da Lei Maria da Penha, a crianças, a adolescentes, a pessoas idosas e a pessoas com deficiência, todas vítimas de crimes tipificados no Estatuto da Criança e do Adolescente, Estatuto do Idoso, Estatuto da Pessoa com Deficiência, Código Penal.
Assim, cumpridos estes requisitos de legalidade, a atuação policial tanto na abordagem preventiva quanto na investigação de delitos cometidos em razão direta ou indireta da pandemia se mostra não somente legítima, mas essencial. No entanto, vale destacar que toda e qualquer atuação policial (seja em circunstâncias excepcionais ou não) deve respeitar a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1, III, da Constituição Federal), em ações e condutas integralmente garantistas e pautadas pela proporcionalidade4.
Portanto, as abordagens de fiscalização de cumprimento de medidas sanitárias devem ter por norte as técnicas de solução pacífica de conflitos e, apenas em caso de desobediência ou escalada de comportamento agressivo do abordado, os agentes públicos devem recorrer ao uso racional de força e posterior condução à autoridade de polícia judiciária5.
*Luiz Gustavo de Oliveira Santos Aoki é mestre em Direito Penal pela PUC/SP, professor, especialista em Direito Penal; Processo Penal e em inteligência Policial; oficial Substituto do 10 Registro de Títulos e Documentos de São Paulo.
**Alexandre Marcondes Monteiro é delegado de Polícia de São Paulo. Especialista em Direito Penal e Processo Penal.
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1 Medida Cautelar na Ação Direita de Inconstitucionalidade 6.341 - Distrito Federal - Decisão do Min. Relator Marco Aurélio.
[2] A título de ilustração, no âmbito federal, foi editada a lei Federal 14.019/2020, que estabelece uso obrigatório de máscaras. No Estado de São Paulo, foi editado o decreto Estadual 64.959, cuja interpretação se mostra elucidativa a respeito do papel das polícias na contenção do novo Coronavírus. Em apertada síntese, este ato normativo, em seu art. 1º, estabelece a obrigatoriedade do uso de máscaras, sob pena de sanções administrativas de advertência, multa e interdição parcial ou total do estabelecimento, seções, dependências e veículos previstas no Código Sanitário do Estado de São Paulo (Lei Estadual nº 10.083/1998), sem prejuízo da configuração dos crimes de infração de medida sanitária preventiva e desobediência, previstos nos arts. 268 e 330 do Código Penal, respectivamente.
3 Art. 330 do Código Penal: Desobedecer a ordem legal de funcionário público:
Pena - detenção, de quinze dias a seis meses, e multa.
4 O garantismo integral implica na observância dos postulados de proibição de excessos na atuação e proibição de uma atuação que não proteja suficientemente os bens jurídicos constitucionalmente protegidos. Este conceito apresenta uma íntima relação com os chamados elementos da proporcionalidade: "adequação", "necessidade" e "proporcionalidade em sentido estrito".
5 Conforme lei 13.060/2014.